
A região da Cracolândia foi uma das mais afetadas pela pandemia do novo coronavírus. Talvez não em questão de números, pois dados sobre a situação do vírus no lugar não são precisos e é impossível afirmar, mas em relação à negligência do governo estadual e municipal com os moradores do local, é possível fazer observações qualitativas.
Para James Midgley, professor do departamento de Bem-Estar da Universidade da Califórnia e autoridade internacional no que diz respeito ao tema, o Estado de Bem-Estar Social é alcançado quando as “necessidades de todas as pessoas estão atendidas, os problemas gerenciados e as oportunidades maximizadas”. Esse Estado está presente no Brasil, traduzido principalmente em políticas de transferência de renda, tem se mostrado de extrema importância no momento atual. No entanto, na Cracolândia, a realidade é outra.
Desnecessário dizer que a situação dos moradores em situação de rua da região já era de extrema vulnerabilidade mesmo antes de março de 2020. Com a pandemia, eles foram uma das parcelas da população mais expostas ao vírus, uma vez que, sem ter moradia onde passar o isolamento, as aglomerações nunca deixaram de ser uma realidade e o uso de drogas dificulta, em vários sentidos, a prevenção à contaminação. Esperava-se, ao menos, uma intervenção das diferentes esferas do poder público para auxiliar essas pessoas.
A realidade foi que, logo no início da aplicação das medidas de reclusão e mudança de rotina, quando a situação do COVID em São Paulo começava a se complicar, a prefeitura fechou o Atende 2, equipamento de assistência social localizado na Cracolândia, sem dar nenhum tipo de explicação. Os acolhidos foram transferidos para um novo espaço, a cerca de 3km do local, em um ônibus lotado, sem que fossem distribuídas máscaras. Ao mesmo tempo em que incentivava o resto da população a evitar aglomerações, a prefeitura foi responsável por uma, sem motivo aparente.
A única ação tomada para ajudar a população local foi a instalação de banheiros químicos. A gestão Dória-Covas parece estar se aproveitando do momento em que a atenção popular está voltada para a crise sanitária para pôr em prática o projeto de gentrificação do centro da cidade. Esse plano não é de hoje e vêm sendo parte dos diferentes governos do PSDB que já passaram por São Paulo. Com uma lógica higienista, que há anos vêm tentando “limpar” o centro da cidade, removendo os moradores em situação de rua para transformar a região em uma área nobre novamente, as ações dos governadores e prefeitos PSDBistas são marcadas por violência e pelo caráter repressivo. Entre muitos outros exemplos, é possível citar o acontecimento de julho de 2017, na gestão do então prefeito João Dória, quando habitantes da Praça da Sé foram despertados com jatos de água fria em uma ação de limpeza da região após a madrugada mais gelada do ano.
Além do fechamento do último equipamento público que ainda funcionava na área, os moradores relatam um aumento significativo das ações policiais. O prefeito também chegou a confirmar que o projeto de desocupação e remoção dos usuários de drogas da região do centro não parou com a pandemia. “Não é possível se prevenir da COVID-19 enquanto seu território é diariamente atacado”, afirma Ana Luiza, comunicadora de uma ONG que atua na Cracolândia.
Nesse sentido, em 2 de dezembro de 2020, o juiz Antonio Augusto Galvão de França, da 4ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo, proibiu remoções na Cracolândia enquanto perdurar a pandemia. A decisão atendeu um pedido do Ministério Público de São Paulo, que alega que o Programa Redenção, implementado em 2017 com enfoque em políticas de assistência social aos usuários de álcool e outras drogas, desvirtuou-se de seu objetivo inicial, tornando-se um projeto "que mira a valorização territorial mediante a expulsão da população carente". Segundo o juiz, "As remoções e imissões de posse estão sendo implementadas no contexto da pandemia da Covid-19, sendo que as próprias autoridades sanitárias, tanto municipais, quanto estaduais, determinaram maior rigor nas medidas de isolamento e circulação de pessoas por conta da chegada da 'segunda onda".
Uma vez que quase não se vêem tentativas do Estado em atender as necessidades dos indivíduos da região, algumas organizações sociais assumiram a responsabilidade. O Centro de Convivência É de Lei atua no território há 22 anos, promovendo ações coletivas e mitigando danos. Com a pandemia, a organização da sociedade civil incluiu nos kits de higiene distribuídos para a população de rua máscaras e cartilhas informativas de prevenção ao novo coronavírus - função que deveria ser desempenhada pelos órgãos de saúde pública ou pela assistência social.
Para as mulheres da região, a situação, que já era delicada, com falta de acesso a procedimentos e objetos de higiene e proteção, agravou-se. A crise ecônomica gerada pela pandemia fez com que muitas das mulheres que perderam suas fontes de renda passassem a trabalhar na prostituição - principalmente mulheres transsexuais. A profissão, em determinados contextos, e sem o devido acesso à informação, pode favorecer a exposição às infecções sexualmente transmissíveis. Além disso, há maior vulnerabilidade ao coronavírus.
Com os acessos à saúde e à assistência social prejudicados, e com a segurança pública desempenhando um papel oposto do que deveria ser o seu, atacando a população em vez de protegê-la, os moradores da Cracolândia foram deixados à própria sorte diante do Coronavírus, e a pandemia acabou se tornando apenas mais um problema dentre os diversos enfrentados diariamente por eles. De fato, o Estado de Bem-Estar Social não pode ser visto na região, ainda mais em um momento tão delicado.
Revisão: Cedric Antunes e Glendha Visani
Imagem de capa: Carolina Daffara
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