
O Conceito
Um tempo atrás estava conversando com alguns amigos e um deles acabou soltando a seguinte frase: “às vezes queria ser apenas um conceito”. Uma típica conversa de bar não é mesmo?
Na hora eu ri, mas entendi o que ele quis dizer. O grande problema dos seres humanos é que tentamos transformar até os conceitos mais abstratos em representações concretas demais, o que acaba fazendo com que eles percam todo o significado. Somos seres rígidos, constantemente querendo transmitir mensagens dinâmicas. É por isso que ninguém se entende.
Seguindo essa lógica, se fôssemos apenas um conceito, como sugerido pelo meu amigo, conseguiríamos então transmitir mensagens mais maleáveis com maior facilidade, e seríamos compreendidos de maneira mais íntegra por uma maior audiência. O maior exemplo disso está não em uma pessoa, mas em um conceito. O conceito de Elena Ferrante.
O Sucesso
Elena Ferrante é o pseudônimo de uma das maiores escritoras italianas da contemporaneidade, com mais de 16 milhões de livros vendidos em mais de 45 idiomas e diversas adaptações para a televisão e cinema. Seu primeiro livro, Um estranho amor (L’Amore Molesto) foi publicado em 1991, e ainda naquele ano foi considerado um sucesso de vendas.
Entretanto, foi só em 2012 que a autora ganhou grande repercussão internacional com a publicação de “A Amiga Genial” (L’Amica Geniale), o primeiro romance de uma série que viria a se tornar conhecida como Tetralogia Napolitana, com o resto dos volumes sendo publicados nos anos seguintes. Seu último trabalho data do ano de 2019 e se trata de A Vida Mentirosa dos Adultos (La Vita Bugiarda degli Adulti), que recentemente foi adaptada para as telas pela Netflix.
O Mistério
Mas afinal, quem é Elena Ferrante? O que causa maior estranheza aqui não é nem o uso de pseudônimos, já que isso está longe de ser algo incomum na literatura. Mas em tempos nos quais a separação entre a vida privada e a vida pública está cada vez mais tênue, com quase cada experiência das nossas vidas sendo constantemente registrada nas redes sociais, fica difícil de acreditar que ainda seja possível que alguém mantenha o anonimato de uma forma tão bem-sucedida como Elena. Ou até mesmo que alguém tenha o direito a tamanha privacidade.
É em meio a esse debate que, durante anos, muitos se sentiram no direito de ir contra o desejo de Ferrante e começaram a buscar um rosto para atribuir aos livros tão brilhantes, mesmo com a escritora deixando claro que deixaria de escrever caso tivesse seu verdadeiro nome revelado.
Aqui vale ressaltar dois casos interessantes. Um deles ocorreu em 2016, quando o jornalista italiano Claudio Gatti resolveu iniciar uma investigação para encontrar a verdadeira identidade de Elena – apesar de não ter oferecido nenhum argumento que justificasse tamanho intrometimento. Para isso, ele examinou as contas bancárias da editora italiana Edizione e/o, responsável pela publicação dos livros de Ferrante, além de rastrear as compras de várias propriedades na região da Toscana. Tais instrumentos o ajudaram a concluir que o nome por trás da misteriosa escritora italiana seria a tradutora Anita Raja, esposa do escritor Domenico Starnone, que também já foi apontado como um possível nome. Tal notícia abalou o mundo literário e foi recebida com grande represália, tendo em vista que muitos ainda prezam pela vontade da autora que tanto admiram. No que diz respeito a Raja, apesar desta já ter vindo a público diversas vezes negando ter qualquer relacionamento com a escritora, seu nome continua sendo levantado sempre que essa discussão vem à tona.
O segundo grande caso começou como a maioria deles começa: com um rumor. Acreditava-se que a escrita de Elena Ferrante era boa, e até complexa demais, para pertencer a uma mulher, levantando a hipótese de que talvez ela se tratasse de um homem. Tais ideias ganharam força no mundo literário através de um artigo publicado em 2018 que utilizou um algoritmo para codificar o estilo de escrita de Ferrante e, comparando-o com outros escritores italianos, concluiu que ela provavelmente se tratava de um homem. Tanto Elena, através de e-mails, como seus próprios editores, vieram a público comentar sobre a inveracidade de tais acusações.
E caso alguém queira saber o que eu acho sobre essas acusações, basta ler o artigo “Those like us” de Dayna Tortorici. Segundo ela, tais ideias não podem ser verdade pois, “Nenhum homem que conheço escreveria tão bem sem receber crédito por isso”. E honestamente, faço de suas palavras as minhas.
A Mensagem
O conceito de Elena impõe aos seus leitores alguns desafios, e é isso que a torna tão única. É impossível, por exemplo, atribuir qualquer significado aos acontecimentos de seus livros através de uma análise da vida pessoal da autora. É uma obra completamente separada do artista, fazendo com que os livros se tornem então completos meio a si mesmos. Em uma entrevista concedida ao The Paris Review, a escritora diz que ao removermos o indivíduo, descobrimos que o texto contém muito mais do que imaginávamos.
Nesse sentido, ao retirarmos as barreiras impostas por uma visão focada quase que exclusivamente no indivíduo, o leitor se torna livre para focar na mensagem, e é nesse instante que a magia acontece. De certa forma, ler Elena Ferrante é o mais próximo que conseguimos chegar de ser um conceito, nem que seja só por algumas horas.
Nota da Autora:
Um grande amigo, que também calhou de ser um dos revisores deste texto, me incentivou a pesquisar mais sobre a teoria literária “The Death of the Author”, que cabe perfeitamente no tema aqui abordado. Fica aqui então a dica para todos que se interessaram por esse texto e queiram saber mais sobre.
Autoria: Victorya Pimentel
Revisão: Artur Santilli e André Rhinow
Imagem de capa: hysteria.etc.br
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Referências/Fontes (se houver)
FERRI, S. The Art of Fiction No. 228. Disponível em: <https://www.theparisreview.org/interviews/6370/the-art-of-fiction-no-228-elena-ferrante>. Acesso em: 11 out. 2023.
ARJUNA TUZZI; CORTELAZZO, M. A. What is Elena Ferrante? A comparative analysis of a secretive bestselling Italian writer. Digital Scholarship in the Humanities, v. 33, n. 3, p. 685–702, 19 jan. 2018.
AGUILAR, A. A verdade sobre o caso Elena Ferrante. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/03/cultura/1475489430_113758.html>. Acesso em: 11 out. 2023.
ENRICA MARIA FERRARA. Elena Ferrante: a vanishing author and the question of posthuman identity. Disponível em: <https://theconversation.com/elena-ferrante-a-vanishing-author-and-the-question-of-posthuman-identity-118138>. Acesso em: 11 out. 2023.
MANOV, A. How did Elena Ferrante get away with it? Disponível em: <https://unherd.com/2022/04/has-elena-ferrante-betrayed-women/>. Acesso em: 11 out. 2023.
NEWS, B. Why is the exposure of Elena Ferrante causing such outrage? Disponível em: <https://www.bbc.co.uk/news/magazine-37556183>. Acesso em: 11 out. 2023.
SCHAPPELL, E. The Mysterious, Anonymous Author Elena Ferrante on the Conclusion of Her Neapolitan Novels. Disponível em: <https://www.vanityfair.com/culture/2015/08/elena-ferrante-interview-the-story-of-the-lost-child>. Acesso em: 11 out. 2023.
TORTORICI, D. Those Like Us. Disponível em: <https://www.nplusonemag.com/issue-22/reviews/those-like-us/>. Acesso em: 11 out. 2023.
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