Em meio a todas as crises e manifestações políticas que vêm acontecendo por toda a América Latina, nossa redatora, Luiza Castelo, e o Matheus Cadedo, nos trouxeram uma análise, contextualizando os eventos ocorridos neste momento de instabilidade
Nos últimos meses, a América Latina pareceu ter entrado em colapso. Na Bolívia, ocorreram protestos violentos após a vitória eleitoral do atual presidente, Evo Morales. No Equador, protestos ocorreram devido ao anúncio do presidente Lenín Moreno quanto ao fim de um subsídio aos combustíveis, o que causou um aumento de até 123%. No Haiti, manifestantes saem às ruas desde setembro, buscando a renúncia do presidente Jovenel Moïse. E o Chile, mais recente integrante da lista, protestos que já vinham acontecendo em pequena escala se intensificaram violentamente após um aumento de meros 30 pesos (R$ 0,17) nas tarifas de metrô em Santiago. No Haiti e no Chile, a situação tem mostrado particularmente violenta. No último mês, ao menos 20 pessoas morreram devido aos protestos no Haiti e quase 200 ficaram feridas. No Chile, 19 morreram durante as manifestações, e mais de 6.000 foram detidas. Apesar de intensos, os protestos no Equador e na Bolívia não chegaram a esse ponto.
Os protestos chilenos, que começaram entre estudantes, desencadearam uma explosão social como não ocorria desde a ditadura de Pinochet, acompanhada pelo primeiro estado de emergência declarado em mais de 30 anos. De forma muito semelhante ao que aconteceu no Brasil, em 2013, um protesto que teve origem no aumento de tarifas do transporte público transbordou para diversas outras reivindicações sociais, que incluíam melhorias nos sistemas de educação e saúde, a questão do desemprego e a situação da previdência social.
Já no Haiti, o que uniu os manifestantes foram os pedidos de renúncia do presidente Jovenel Moïse, acusado de estar envolvido em esquemas de corrupção. Os manifestantes tentaram invadir a residência do presidente e entraram em um confronto com a polícia. A violência aumentou depois que o repórter que cobria as manifestações foi encontrado morto. Posteriormente inúmeras demandas por produtos básicos, que estão em falta no país, foram agregadas. A questão da inflação também entrou no foco dos protestos.
Para a Organização dos Estados Americanos (OEA), o “padrão de desestabilização” que tomou os países da América Latina, primeiro na Colômbia e no Equador e agora no Chile, se inspirou nos eventos da Venezuela e Cuba; contudo transferir a responsabilidade para esses países seria certamente uma afirmação reducionista. Os protestos não têm uma causa única, mas decorrem de uma sobreposição de problemas que não foram enfrentados ao longo de décadas. Como afirmou o professor Oscar Vilhena, em um artigo para a Folha de São Paulo, trata-se de sociedades com “muitos fios desencapados”, ou seja, sociedades em que, a partir de “uma pequena fagulha”, o risco de incêndios e desastres é muito grande.
Uma característica similar entre os protestos é que parecem ter como pano de fundo as mesmas insatisfações: desigualdade e precariedade de serviços públicos. Essa questão é particularmente gritante no Haiti, onde problemas com o abastecimento de combustível afetaram o funcionamento de hospitais, abastecimento de água e de outros produtos básicos.
Outro ponto comum é que os protestos não possuem uma liderança bem definida e delimitada. Os governos não acham um representante com que possam negociar, e isso faz com que as manifestações muitas vezes saiam do controle ou se tornam violentas, como aconteceu em mais de um dos países mencionados. Sem negociação, é mais difícil vislumbrar os ganhos reais a longo prazo.
Esses movimentos surgem e se desfazem rapidamente. Não há uma organização para encampá-los e levá-los para frente. Algo muito semelhante aconteceu no Brasil, tanto com a chamada greve dos caminhoneiros, quanto com os protestos de 2013. Esse novo tipo de movimentação nasce na internet, nas redes sociais. É uma nova forma de organização e convocação das massas. O problema é que, por causa da amplitude das redes, as muitas demandas da população ficam polarizadas.
Um terceiro ponto de convergência é o descontentamento com todo o sistema político e com a democracia representativa em geral. A população não sente ouvida ou representada por seus líderes. Aos poucos surge um sentimento de que nem a esquerda nem a direita podem resolver os problemas, e nasce uma ideia generalizada de que não há candidatos ou partidos que representem os interesses da população. A Bolívia, historicamente, sofreu com décadas do liberalismo e com governos de direita, tendo terror aos mesmos. A esperança em Evo Morales também está claramente se esvaindo. No Chile, o Liberalismo de Pinera não resolveu as insatisfações populares, bem como a política mais à esquerda de Michele Bachelet (que acabou o mandato com uma reprovação enorme no país). O único que parece negar os fracassos econômicos do país é o ministro Paulo Guedes, que pretende implementar no Brasil justamente o modelo de previdência social que levou uma boa parte dos chilenos às ruas.
Para os que estavam nas ruas, não havia para onde fugir. Tudo representa o velho. No Chile, Bachelet e Pinera se revezam no poder a cada 4 anos. Na Bolívia, a disputa também é entre um ex-presidente e outro que já esteve no poder. Mesmo na Argentina, que teve eleições recentemente, os protagonistas eram personagens já bem conhecidos. Buscando romper com esses ciclos viciosos, muitas vezes o eleitorado se deixa seduzir por aqueles que negam a política e a própria democracia, como Bolsonaro ou Witzel, ou aqueles que fogem do sistema político-partidário tradicional.
O desenho político vem se mostrando cada vez mais insuficiente para lidar com os problemas sociais e responder às demandas da população. Resta às novas gerações, nesta era de hiper conectividade, saber como atualizar suas instituições sem destruir a própria política e os princípios democráticos no processo
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