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ODE AO PINÓQUIO

Por que mentimos? Viver a verdade é fácil? Até que ponto conseguimos mascarar a realidade? Nossa redatora Loreta Guerra traz uma reflexão sobre as mentiras de Pinóquio e sua relação com o ambiente político e social que nos cerca.

Sim, o título é uma paródia de Mário de Andrade e seu “Ode ao Burguês”, um dos inúmeros ícones da Semana da Arte Moderna em 1922. O jogo sonoro entre “ode ao” e “ódio ao” é o empréstimo que faço do poeta, quem sabe um dos maiores críticos da burguesia brasileira, elegantemente militando através da arte. Mas fique tranquilo, leitor, eu não odeio Pinóquio! Aliás, era um dos meus filmes favoritos quando criança ... e, mais tarde, passei a admirar a mensagem transmitida. Contudo, reavaliando o filme da Disney, agora como adulta, fiquei um pouco indignada. Novamente, esse meu sentimento nada tem a ver com a personagem ou sua história, mas, sim com uma pergunta: por que Pinóquio mente? A maioria das pessoas tem uma barreira moral natural que desestimula a mentira. Já Pinóquio, além disso, tem um agravante: seu nariz cresce ao contar lorotas. Então por que ele mente? Percebi, a partir dessa indagação, que a seguinte reflexão pode ser aplicada à vida real: Pinóquio continua mascarando a verdade mesmo sabendo que seu nariz vai crescer porque, ao fazê-lo, ele cria uma ilusão para si mesmo de um mundo melhor, sem problemas.


Todas as vezes que a personagem inventa o que comunica, seu objetivo é se desviar das consequências negativas de seus atos, fabricando uma versão alternativa da realidade que o protegerá. Consequência para a vida real e que, confesso, me indignou: fazemos isso o tempo inteiro, e gostamos.


O que você acha das pichações que preenchem os muros de São Paulo? Não os belos grafites, como as pinturas do artista Kobra, mas aquelas que incomodam os olhos, cuja mensagem não conseguimos compreender devido às letras estranhas e indecifráveis. Feias, não? Pois eu também achava, tanto que quando o prefeito de São Paulo, na época João Dória, decidiu apagá-las, minha primeira reação foi “Sensacional! A cidade vai ficar mais limpa, mais bonita”... até que eu entendi o que eu estava comemorando. Limpar as pichações de São Paulo não é nada diferente das mentiras de Pinóquio: é uma forma de construir uma imagem muito mais bonita da nossa cidade. Sem desenhos feios nos muros! Sem crianças que vivem sozinhas nas ruas e deixam de ir à escola para rabiscar frases sem sentido no bem alheio. Sem pessoas que não têm voz na sociedade e decidem expor suas críticas à política nos paredões das grandes avenidas paulistanas. Apagar os rabiscos ilegais espalhados pela cidade é apagar todos os problemas que eles representam. E por que apoiamos esse “apagamento”? Será que é para vivermos numa cidade bonita e limpa, numa cidade sem adversidades? Parece que uma realidade alternativa e ilusória se faz muito mais conveniente aos olhos de qualquer um.


Nós gostamos de viver mentiras que atenuam as inconveniências. Quantas vezes já não li comentários na internet como “Eu prefiro ignorar que meu presidente é corrupto e deixar que a justiça tome conta de puni-lo sem eu saber”. É profundamente preocupante esse tipo de pensamento. Afinal, é muito mais fácil controlar alguém que escolhe viver sem compreender as adversidades que permeiam sua vida, pois, dominada, essa pessoa nunca vai contrariar as decisões de quem lida com seus problemas, até porque ela não os conhece. Aplicando tal crítica à política, fica bem mais simples subjugar uma sociedade que opta por não perceber todas as calamidades do cotidiano ao invés de resolvê-las. Veja, não quero dizer que o Estado não deva apagar as pichações que “sujam” a cidade, simplesmente acredito que, antes de serem apagadas, devemos observá-las, nos incomodar com a realidade “suja”, incorporá-la e limpá-la não só dos muros, mas, especialmente, da realidade social.


Precisamos aprender a viver a verdade, por mais grosseira e incômoda que ela possa ser. Devemos enxergar os problemas e não os maquiar com versões ilusórias da realidade. No âmbito pessoal, as mentiras não levam muito longe, meramente enganam seu próprio criador por um tempo e, eventualmente, são desmascaradas. Já no âmbito político-social, não há nada mais antidemocrático que a sociedade recusando-se a utilizar todos os seus direitos e deveres para sanar suas falhas e aprimorar o país, em troca de pintar com mais cinza uma selva de concreto que claramente tem algo a dizer por meio das outras cores.


A história de Pinóquio marcou a minha vida. Contudo, está na hora de parar de maquiar nossos narizes para fazê-los parecer menor e enfrentar a dura, feia e triste realidade. Afinal, nossos narizes de Pinóquio nunca deixarão de crescer, a não ser que não tenhamos mais motivos para nos iludir com mentiras. A não ser que confrontemos nossos problemas.

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