Através de nossa parceria com a Gazeta Arcadas, a revista estudantil oficial da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, o texto de hoje é de Mateus Bernardes, aluno de Direito na USP. No artigo, é debatida a importância adquirida pela Coréia do Sul ao conquistar espaço na atual conjuntura geopolítica utilizando-se do soft power, em que a cultura foi a principal ferramenta para sustentar a relevância do país no cenário global.
Quem assistiu à cerimônia do Oscar até o final, na noite do dia 9 de fevereiro, pode dizer que testemunhou um momento verdadeiramente histórico. Contrariando a maioria das expectativas e prognósticos, o filme sul-coreano Parasita se consagrou como o grande vencedor da noite, levando as estatuetas de Melhor Filme Internacional, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Direção e o grande prêmio da noite, Melhor Filme, entregue pela primeira vez na história a um longa em língua não-inglesa. A vitória de Parasita representou também a quebra de uma barreira que parecia intransponível na Academia, bem como a coroação do sucesso de todo um projeto de soft power que a Coreia do Sul vem implementando em sua cultura.
Antes de prosseguir, é preciso dizer: o Oscar é um prêmio de Hollywood para Hollywood. Seus votantes, os membros da tal Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, são profissionais de destaque na indústria do Cinema norte-americano, abrangendo desde técnicos de som até atores, passando por roteiristas, diretores e produtores. A demografia dos membros da Academia, naturalmente, sempre refletiu o tipo de gente que predominava no ramo: homens brancos. Em razão disso, minorias nunca tiveram muito espaço no Oscar. Cineastas arrojados e subversivos também não. Esse conservadorismo chegou a um ponto insustentável quando, na edição de 2016, nenhuma pessoa negra foi sequer indicada em alguma das 24 categorias. Tal vexame, em pleno século XXI, desencadeou o movimento do #OscarSoWhite e uma avalanche de críticas por parte da imprensa e das redes sociais. Em decorrência disso, desde 2016, a Academia convidou mais de 1000 novos membros e sua imensa maioria é pertencente à minorias. Nesse contexto, a vitória de Parasita representou mais um passo rumo a uma premiação mais inclusiva.
A trajetória do filme de Bong Joon-Ho foi triunfal desde a sua primeira exibição. O longa estreou em maio de 2019 no Festival de Cannes, onde levou a Palma de Ouro num ano de acirrada competição contra filmes como Bacurau e Dor e Glória na competição oficial. De fato, a história é intrigante, pois começa parecendo uma comédia, mas modula de maneira febril para um thriller psicológico com pitadas de terror e muito suspense. Mais do que tudo, tece uma contundente crítica social, expondo a problemática da abissal desigualdade social sem cair em maniqueísmos tolos. E é justamente esse o diferencial da obra: apesar de ser um produto profundamente marcado pela cultura coreana, ela se comunica com pessoas do mundo todo, pois todas vivem no “mesmo país” chamado Capitalismo.
Depois de sair do principal festival de cinema do planeta com o maior prêmio e muitas avaliações impressionadas, Parasita construiu seu hype nos Estados Unidos. Chegou ao Festival de Nova York como grande sensação do público, ofuscando nada menos que O irlandês, projeto do lendário Martin Scorsese que era aguardado há anos. Depois foi para o Festival de Toronto onde também lotou salas e arrebatou corações. A cada passagem por um festival, o filme aumentava a sua fama e criava em torno de si uma aura de evento. Quando finalmente fez sua estreia junto à Academia, foi um dos três únicos filmes a ter a sessão lotada com os votantes do Oscar. Os outros dois foram o já citado O irlandês e Era uma vez… em Hollywood de Quentin Tarantino.
Àquela altura já se sabia que o fenômeno sul-coreano estaria com toda a certeza entre os indicados a Melhor Filme. Mas ganhar? Aí parecia um sonho distante demais.
O Oscar é uma grande eleição. Como em toda eleição, um candidato precisa de dinheiro para fazer sua campanha. São mais de 8.000 votantes espalhados pelos quatro cantos do mundo. A logística para fazer com que seu filme seja ao menos visto por todos os membros da Academia é colossal e envolve a realização de sessões especiais, distribuição de screeners (aqueles DVDs exclusivos com o filme que sempre vazam na época das premiações), eventos com o elenco da produção e outros esforços. Tudo isso movimenta grana, e não é pouca. Estima-se que, atualmente, os estúdios gastem cifras que chegam à casa dos US$ 30 milhões com suas campanhas para promover apenas um filme na temporada de premiações. Para se ter uma ideia, Parasita custou cerca de US$ 11 milhões. Como um filme independente sul-coreano poderia competir de igual pra igual na campanha com colossos bancados por empresas do quilate de Disney ou Netflix? O início da temporada de premiações parecia mostrar que não teria competição. 1917, épico de guerra da Universal, emergiu como favorito, arrebatando o Globo de Ouro e a maior parte dos prêmios dos Sindicatos de Categorias de Hollywood (que por terem membros da Academia entre seus votantes, são considerados os principais termômetros do Oscar).
Foi então que entrou em cena uma personagem chamada Mikey Lee. Quem assistiu à cerimônia do Oscar deve se lembrar de que quando a “família” Parasita foi receber o prêmio final de Melhor Filme, uma velhinha apareceu no microfone ao final e falou por alguns bons minutos (a ponto da transmissão quase a cortar, inclusive). Essa figura que para muitos, inclusive este autor, era absolutamente incógnita até aquela noite, é nada menos que a grande magnata do entretenimento sul-coreano atual. Mikey Lee é herdeira da família que controla o Grupo Samsung. Ela, Mikey, está à frente de um conglomerado denominado CJ Group. Esse império de mídia avaliado em cerca de US$ 4 bilhões é a pedra angular de praticamente tudo que tem saído da Coreia em matéria cultural recentemente. Séries de TV assistidas por milhões nos serviços de streaming, grupos de K-pop que lotam estádios pelo mundo e, é claro, filmes aclamados em festivais e sucessos de bilheteria pelo mundo. Se uma pesquisa atenta for feita, é possível encontrar as impressões digitais de Lee e do CJ Group em tudo isso. Pois bem, além de o próprio conglomerado de Lee ter sido um dos financiadores do longa de Bong Joon-Ho, o apoio financeiro pessoal da magnata possibilitou que a campanha de Parasita pudesse competir de igual para igual com os outros filmes. O resto, como se diz, é história.
Alguns e algumas de vocês podem estar incomodados enquanto leem isso, afinal, não soa contraditório que um filme coreano que denuncia as mazelas do capitalismo tenha sido tão ativamente financiado por uma mulher que é literalmente bilionária? Pode ser que sim, mas o que está em jogo aqui, do ponto de vista de quem está investindo, se chama soft power. Esse termo, bastante em voga na teoria política contemporânea, faz referência à conquista de territórios por meio da língua, do esporte, da religião e de outras formas culturais. Pensem, por um momento, na própria Hollywood. É imensurável a quantidade de propaganda e ideologia pró-Estados Unidos que sua indústria cinematográfica difundiu ao longo do século XX. A hegemonia norte-americana sobre o Ocidente jamais existiria sem todo o aparato cultural que ela utilizou para colonizar outras terras com seus ideais. Agora, voltemos à Coreia do Sul. Não parece que o país asiático de uma hora pra outra se tornou onipresente na cultura pop? Seus grupos musicais arrastam legiões por onde passam, o catálogo da Netflix deve ter centenas de produções do país que fazem cada dia mais sucesso e o país acabou de fazer a conquistar as principais categorias do Oscar. Tudo isso ao mesmo tempo não é coincidência. Há muito dinheiro sendo investido na indústria cultural sul-coreana por pessoas como Mikey Lee e os resultados disso são variados, abrangendo desde ganhos políticos até bilhões de dólares como retorno na forma de turismo e consumo desses produtos. O Oscar de Parasita é a grande joia na coroa desse projeto de soft power que avança a passos largos na península coreana.
Obviamente, não podemos falar num projeto nacional sem falar do papel do Estado, que também foi fundamental para o Cinema sul-coreano chegar ao seu apogeu. Desde 1973, a Coreia do Sul conta com o Korean Film Council (KOFIC), um conselho subordinado ao Ministério da Cultura, Esporte e Turismo do país, responsável por elaborar políticas de apoio ao mercado audiovisual coreano, por meio de investimentos, pesquisa e capacitação, além da promoção dos filmes no mercado interno e no exterior. Por meio da arrecadação de 3% do valor de todos os ingressos de cinema vendidos no país, o KOFIC investe em um fundo de incentivo ao mercado cinematográfico que financia produções artísticas, bem como a distribuição e formação de profissionais para a indústria. Além disso, o país conta com reservas de tela dispondo que produções nacionais ocupem no mínimo 30% dos cinemas do país. A dominação predatória de blockbusters norte-americanos é, dessa forma, limitada, e quem ganha é o Cinema sul-coreano. Essa proteção ao mercado local e as políticas de incentivo estatal fizeram com que a indústria cinematográfica sul-coreana se tornasse a quinta maior do mundo, com faturamento de R$ 6,7 bilhões.
Em tempos como o que vivemos atualmente no Brasil, em que a cultura é tratada como um produto de quinta categoria, deliberadamente sucateada pelo Estado e publicamente difamada pelo Presidente da República, o exemplo sul-coreano mostra como é possível movimentar bilhões e expandir sobremaneira a influência geopolítica de um país a partir do investimento cultural. O Oscar de Parasita é histórico, abriu caminho para mudanças ainda inimagináveis no panorama cinematográfico global e é apenas a ponta do iceberg num projeto de difusão cultural, política e econômica que certamente será muito estudado nos anos ainda por vir.
Ilustração da capa: Aléxia Rosa / Gazeta Arcadas
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