O meu quarto na casa dos meus pais me parece mais e menos meu do que o meu quarto no meu apartamento em São Paulo a cada dia que passa. Mais por bichos de pelúcia, livros favoritos de infância, cadernos antigos que preciso jogar fora, desenhos bobos do Ensino Médio que ainda guardo em estantes bagunçadas. Menos porque tenho outros livros favoritos e o armário não tem nem metade de todas as minhas roupas.
A minha casa na casa dos meus pais conta com a presença de ilustres personagens: os meus pais, o meu irmão, os gatos e os vasinhos de planta que eu tive que trazer de volta para cá, porque eu sempre rego minhas plantas demais, com medo de deixá-las morrer por escassez, e, então, mato-as por exagero. Eu já matei um número preocupante de cactos e suculentas por excesso de água e, céus, por que será que eu sou sempre muito? Sempre muito, sempre demais, sempre em excesso.
Sinto que não tenho noção de medida. Água demais nas plantas, sal demais no arroz, palavras demais em conversas com outras pessoas, sono demais em dias nublados, desculpas demais, culpa demais, preocupações demais. Já ouvi dizer que sou super competente. Não sei como explicar para os outros que é tudo falta de autocontrole e que eu queria ser de menos — mas uma diminuição na produtividade me causaria um ataque de nervos e eu teria tempo demais para pensar em como falei isso no lugar daquilo ou na possibilidade de todas as pessoas que me conhecem me odiarem em segredo.
Em qualquer outro texto que tive que deletar por configurar excesso de vulnerabilidade, escrevi certa vez que um sentimento de culpa me persegue e apavora, culpa por não ser excessivamente boa em nada além do próprio excesso. Sinto que existe um buraco enorme no meio do meu torso, atravessado, e todo mundo ao meu redor consegue vê-lo e senti-lo e passar a mão no meio e rir enquanto eu tento enfiar dentro do buraco qualquer coisa que caiba, qualquer coisa que esconda o vácuo ali presente e não transborde. Tudo transborda. Tenho a suspeita de que tenho esticado o buraco tentando encaixar coisas grandes demais dentro dele.
A primeira planta que eu tive foi um cacto pequenininho, bem bonitinho, desses que a gente compra no supermercado. Minha mãe me disse para sentir a terra de vez em quando para verificar se ele precisava de água e para deixar ele no sol pelo menos um pouquinho todos os dias. Eu peguei uma canetinha e escrevi um nome pra porra do cacto no vasinho de cerâmica barata. É engraçado o quanto a gente se apega às coisas, não é? O quanto a gente procura por conforto, carinho e companheirismo em tudo. Mas é a minha sina: morte por afogamento. Morte por afogamento.
Morte por afogamento. Será que é isso que eu faço com os outros, também? Será que o meu excesso assusta? Será que o meu excesso apavora do jeito que a minha culpa me apavora — ou será que sou a única que fica aqui, morrendo de medo, torcendo para ninguém descobrir que sou uma fraude, escondendo noites de insônia e plantas mortas e buracos atrás de mais compromissos do que há espaço na minha agenda, mais reuniões do que há horas no dia, falsa competência, falsa segurança? Será que o meu irmão mais novo me culpa por ir embora? Será que ele sente falta das minhas músicas altas demais, das nossas brigas, das minhas reclamações? Será que qualquer um sente falta dos meus excessos quando eu não estou por perto, quando eu me fecho feito planta carnívora e colapso em excesso de paranoia e cansaço? Já ouvi dizer que planta carnívora é difícil demais de cuidar, que exige muito trabalho. Tenho receio de ser uma pessoa cansativa.
Tem uma única planta viva no meu apartamento em São Paulo, dessas que ficam direto na água, em vaso transparente. Quando voltei das férias de dezembro desse ano, encher o vasinho até o topo foi a primeira coisa que eu fiz. É um daqueles bambus-da-sorte. Ele tem sobrevivido aos meus excessos por mais de um ano, então talvez seja questão de acertar na planta, não na quantidade de água. Não sei. Como muitos outros que permanecem perdidos no meu Google Drive ou nas minhas notas do celular ou em páginas aleatórias de cadernos que preciso jogar fora, este texto configura excesso de vulnerabilidade. Sorte que ninguém lê hoje em dia, pelo menos eu não fico parecendo tão problemática para muita gente.
Autoria: Anna Cecília Serrano
Revisão: Luiza Parisi e Gabriela Veit
Imagem de capa: Potted Plants, de Paul Cezanne
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