Há uma sensação estranha que permeia todo o caminho entre minha casa e a faculdade. Alguns dias, sinto-a de modo mais sutil, outros, como uma dor crônica e pulsante. De todo modo, há, todas as manhãs, uma sensação renitente. Equilibrado em um limiar delicado de questionamentos, eu caminho com passo ligeiro e desatento. Nesses momentos, a vida ao meu redor e qualquer coisa que eu religiosamente escuto nos fones de ouvido se unem em uma dimensão amorfa. Evitando quaisquer pensamentos, eu conto as estações até que... “próxima estação, Trianon-Masp”.
Sempre me pareceu adequado fazer esse percurso com fones de ouvido, afinal, é sempre bom manter a cabeça ocupada. Escutar uma música ou um podcast qualquer é suficiente para uma rota prescrita: minhas pernas me conduzem por entre as pessoas na baldeação, enquanto eu percebo algumas frases soltas ou notas musicais que ornam perfeitamente com os barulhos da estação. Nos dias em que a agitação da rotina me faz esquecer dos fones, a sensação estranha vem inevitavelmente à tona, ainda mais forte. Não há como não a sentir em meio ao silêncio ensurdecedor do vagão lotado. Não há como não se perder em rodopios mentais interrompidos por sons de “próxima estação”. Essa sensação me abala, torna o caminho rumo ao Trianon-Masp mais difícil, menos automático. Talvez seja o medo de somente se escutar, a sensação de estar à deriva com os próprios pensamentos. Talvez o medo de olhar para si e não achar nada, ou ter a certeza de, quando encontrar, encontrar apenas mais perguntas. “Devo fazer isso ou aquilo? Devo trocar de faculdade? Quem sabe ser mais honesto? Falar menos? Pensar menos? Sim, definitivamente pensar menos.” E assim meu passo se torna mais célere para abreviar minha chegada.
Evito pensar, evito escolher e, decerto, evito-me. Seja por conversas banais, seja por atividades pelas quais pouco me interesso, estou sempre comprometido com a fuga. Quando, pela primeira vez, escutei a frase “Torna-te quem tu és” acho que não dei a devida importância. Torna-te quem tu és! ..., mas, afinal, quem eu sou? Quem sou para além das coisas que eu faço para não precisar saber quem sou? Ao buscar constantemente novas experiências, fujo de mim, evito me conhecer e me resguardo de não gostar de quem eu efetivamente sou.
Já tentei descrever minha sina para alguns, mas sempre termino fugindo do assunto. Certa vez, tive uma conversa com um amigo pincelada de tons filosóficos dignos de um botequim. Na ocasião, ele mencionou Kierkegaard e me disse a seguinte frase: “faça ou não faça — você vai se arrepender de ambos”. Acho que ele estava certo. A dor e o arrependimento são inerentes à escolha. Evitar escolher é evitar se conhecer, se definir. Talvez aceitar a dor do arrependimento como natural e necessária seja o único caminho, e talvez um dia eu esteja pronto para tirar os fones de ouvido. Enquanto isso, prefiro seguir ao lado da estranha sensação no périplo cotidiano rumo à Trianon-Masp. Quem sabe um dia eu perceba que a fuga é um caminho ingrato? Ou não, talvez eu nunca perceba. Talvez esse texto também seja parte da minha fuga.
Autoria: Giovanni Tortorella
Revisão: Gabriela Veit Barreto, Enrico Recco e Anna Cecília Serrano
Imagem da capa: imagem retirada do Diário do Transporte
Yorumlar