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A Constituição Federal determina que o Congresso Nacional contará com comissões permanentes e temporárias. Sua função primordial é discutir, refinar e votar projetos de lei antes que estes sejam apreciados pelo plenário da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal. Essas comissões podem, inclusive, convocar audiências públicas para que a sociedade opine sobre a legislação proposta.
Dentre as comissões previstas no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), destaca-se a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). A CCJ é considerada por muitos a comissão mais importante de cada casa legislativa, uma vez que todas as iniciativas legislativas, que não tramitam em regime de urgência, precisam ser aprovadas por ela.
Assim, de acordo com o RICD, compete à CCJ, entre outras atribuições, realizar o controle de constitucionalidade preventivo – ou seja, verificar se os projetos de lei e as emendas à Constituição não violam a Lei Fundamental – e analisar assuntos referentes aos direitos e garantias fundamentais, à organização do Estado, à organização dos Poderes e às funções essenciais da Justiça.
Em síntese, a CCJ deve analisar o projeto de lei, interpretar a Constituição Federal e discutir se o primeiro fere ou não a segunda. Trata-se de um papel de extrema relevância, pois pode até mesmo poupar o Supremo Tribunal Federal (STF) de ser provocado a declarar constitucionalidade ou não de uma lei após sua aprovação pelo Congresso Nacional e sanção pelo presidente da República.
No entanto, nem só de Direito e técnica se faz uma CCJ. Como uma comissão vinculada ao Poder Legislativo – um poder sobretudo político –, a política está profundamente presente nos trabalhos desse órgão. E política é algo que o atual presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), sabe fazer muito bem.
Lira foi eleito para a liderança da Casa Legislativa pela primeira vez em fevereiro de 2020, com apoio do então presidente Jair Bolsonaro. Como presidente da Câmara dos Deputados desempenhou um papel fundamental na manutenção da governabilidade do “capitão”, impedindo que 158 pedidos de impeachment avançassem.
Dois anos mais tarde, impulsionado pelo poderoso “orçamento secreto”, Lira foi reeleito presidente da Câmara dos Deputados em votação recorde. Com apoios do PL de Bolsonaro ao PT de Lula, Lira obteve 464 dos 513 votos possíveis. Para isso, o deputado precisou firmar diversos acordos com os partidos que apoiaram sua empreitada. Entre esses está, justamente, a presidência da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
Comandar a CCJ significa ter o poder de acelerar ou bloquear diversas discussões na Câmara, visto que, em trâmites normais, todos os projetos passam por ela. Diante disso, as duas maiores bancadas dessa Casa Legislativa desejavam presidir a Comissão. Em 2023, a tarefa foi concedida ao PT, por meio de seu deputado Rui Falcão. Neste ano, contudo, o acordo entre Lira e o PL entregou a liderança da Comissão à deputada Caroline de Toni (PL-SC).
Desde então, a deputada parece ter dado férias à Constituição Federal nos trabalhos na CCJ. Utilizando seu poder de determinar a pauta das discussões na Comissão, a catarinense abriu as portas para o debate e a aprovação de uma série de projetos populistas de extrema direita, quando não inconstitucionais, ou que buscavam apenas a afronta os demais Poderes, especialmente o Judiciário, na figura do STF.
Somente neste ano, a CCJ aprovou: o voto impresso para recontagem de votos (medida já declarada inconstitucional pelo STF em 2020); a dispensa de ordem judicial para a retirada de “invasores de propriedade privada”; a proibição de qualquer tipo de aborto no país, até mesmo nos casos de estupro e risco de vida – permitidos desde 1940 pelo Código Penal; a permissão para que o Congresso Nacional derrube decisões do STF; e a ampliação das possibilidades de impeachment de ministros do STF, caso se considere que um ministro “usurpou” a competência do Poder Legislativo “criando norma geral e abstrata”.
Nesse sentido, o avanço do bolsonarismo na Comissão de Constituição e Justiça representou um ataque claro ao voto secreto, às garantias individuais penais, à dignidade da pessoa humana e à separação dos Poderes – todos assegurados na Constituição Federal em suas cláusulas pétreas, isto é, sem que haja possibilidade de alteração. Assim, o diagnóstico não poderia ser outro: a Comissão, que deveria prezar pela Constituição, rasga-a cotidianamente como parte de seu trabalho e estratégia eleitoral.
Além disso, outro projeto que ocupou os esforços da CCJ foi a anistia aos investigados e condenados pelos atos de 8 de janeiro de 2023. Para a deputada Caroline de Toni, o perdão àqueles que depredaram os edifícios dos Três Poderes enquanto pediam por uma intervenção militar, que romperia com o Estado Democrático de Direito, representa um “anseio nacional”. Estranho. Em 30 de outubro de 2022, os brasileiros pareciam almejar outra coisa.
Desse modo, a atual Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados não demonstra qualquer compromisso sério com a Constituição ou a Justiça. A aprovação de projetos que afrontam diretamente direitos, garantias e o Judiciário representa apenas mais uma dimensão do bolsonarismo, que está muito mais preocupado com os populismos penal e autoritário que alimentam seus eleitores.
Porém, com o fim do mandato de Arthur Lira na presidência da Câmara se aproximando, surge a dúvida se os acordos selados pelo futuro presidente da Câmara dos Deputados irão manter o atual cenário. Não é viável que, por mais um ano, a Comissão se dedique apenas a ataques à cidadania dos brasileiros e ao Poder que se opõe a isso.
No país em que 80,5 milhões de pessoas vivem com até R$ 637,00, não faz sentido que a CCJ esteja tão distante das discussões que verdadeiramente possuem o potencial de melhorar a vida da população. O próprio documento que essa Comissão deveria zelar, a Constituição, estabelece a erradicação da pobreza como um dos objetivos fundamentais da República. Uma pena que atacar o aborto legal gere mais likes.
Autoria: Erick Martins Rosario
Revisão: Giovana Rodrigues
Imagem de Capa: Bruno Spada/Câmara dos Deputados
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Referências
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