Um dos pontos de maior discussão na semana passada foi o decreto do Presidente Jair Bolsonaro, que abria margem para que houvesse uma eventual concessão das Unidades Básicas de Saúde (UBSs) à iniciativa privada. Com isso, suscitou-se uma discussão nacional sobre a possibilidade de se privatizar o SUS (Sistema Único de Saúde). Nesse texto não se pretende destrinchar todas as potenciais implicações de uma eventual privatização, até porque isso necessitaria de um estudo mais aprofundado, mas ressaltar a importância da proteção do SUS.
O decreto e principais críticas
Publicado no Diário Oficial da União na terça-feira (27), e assinado por Paulo Guedes e Bolsonaro, o Decreto nº 10.530, simplificadamente, permitiu que o Ministério da Economia estudasse a possibilidade de incluir as UBSs no Programa de Parceria de Investimentos da Presidência da República (PPI).
As UBSs são a porta de entrada para o SUS, oferecendo coleta de exames laboratoriais, consultas médicas, curativos, inalações, injeções, medicamentos, vacinas e tratamento odontológico em diversas áreas da medicina como Clínica Geral, Ginecologia, Odontologia e Pediatria. Assim, as UBSs fornecem o atendimento primário à população, enquanto o SAMU 192 (Serviço de Atendimento Móvel as Urgência), das Unidades de Pronto Atendimento (UPA), oferece o serviço intermediário, e os hospitais realizam atendimentos de maior complexidade¹.
Rapidamente surgiram críticas ao decreto. A principal preocupação era se ele não seria um primeiro passo em direção a uma privatização completa do SUS. Outro ponto de questionamento foi o fato de nenhum agente do Ministério da Saúde o ter assinado, além da inexistência de qualquer menção à pasta no decreto. Além disso, Daniel Dourado, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), criticou a redação do decreto, descrevendo-a como “obscura”, uma vez que já existem parcerias público-privadas no âmbito da saúde, logo, o governo teria de estar buscando por um novo modelo de parceria², daí o medo de haver uma privatização mais extensa e voltada à obtenção de lucro.
Dada a repercussão negativa, no dia seguinte, quarta-feira (28), Bolsonaro revogou o decreto. Logo após, tanto ele quanto Guedes se pronunciaram no sentido de que nunca houve a intenção de privatizar o SUS, no entanto, o presidente afirmou existir ainda a possibilidade de reedição do decreto³.
O SUS pode ser privatizado?
Por mais que o decreto de Bolsonaro não visasse a privatização do SUS como um todo, surgiu o questionamento sobre a possibilidade de que isso seja feito. Legalmente, a resposta parece ser negativa.
O SUS está previsto no art. 196 da Constituição Federal, que traz a saúde como um direito de todos, devendo ser provido pelo Estado de forma igualitária. Assim, permitir a privatização do SUS é, por si só, inconstitucional, uma vez que a própria CF explicita o dever Estatal no seu provimento. Ressalta-se que, o art. 199 da Constituição, assim como a lei que regula o SUS (Lei nº8.080/90), permitem que a iniciativa privada o integre de forma complementar, tanto que já existem parcerias com entes privados, especialmente na administração das UBSs. O problema seria permitir uma privatização que ultrapassasse esse caráter de complementaridade e suprisse o papel que o Estado deve ter na saúde brasileira.
Além disso, a CF traz, no §4º do art. 60, as cláusulas pétreas, previsões constitucionais que não estão sujeitas a alteração nem por meio de emenda constitucional. Dentre essas, encontram-se os direitos individuais, que incluem o direito à saúde. Nesse sentido, dado que o SUS está intrinsecamente atrelado à saúde dos brasileiros, qualquer tentativa de modificar a administração desse sistema ou de restringir seu acesso ou funções poderia ser vista como uma afronta à cláusula pétrea. Portanto, a menos que fosse aprovada uma nova Constituição, não seria possível, a princípio, privatizar o SUS.
Cumpre ressaltar que essa resposta é válida contanto que haja respeito ao disposto na Constituição. Vale lembrar que o Executivo, nos moldes atuais, não detém poder para decretar a privatização sem os outros dois poderes, dado que seria necessário uma aprovação do legislativo à proposta de privatização, provavelmente por meio de uma emenda constitucional - os decretos têm validade limitada, e devem ser aprovados pelo Congresso para que integrem efetivamente o ordenamento jurídico brasileiro. Além disso, com a probabilidade de que houvesse uma judicialização da discussão, o Supremo Tribunal Federal (STF) também teria que declarar a constitucionalidade do dispositivo para que o mesmo fosse mantido.
Assim, preliminarmente, existem diversos entraves institucionais que impedem a privatização do SUS, sendo muito difícil que, na prática, um projeto desse tipo venha a ser aprovado e implementado.
Por que devemos defender o SUS?
Conforme dados do IBGE referentes a 2019, 150 milhões de brasileiros, por volta de 70% da população, dependem exclusivamente do SUS para os seus tratamentos. Além disso, dentre pessoas que não dependem exclusivamente do sistema, muitas ainda o utilizam para alguns serviços, por exemplo vacinação e acesso a métodos contraceptivos⁴. É importante lembrar que a possibilidade de possuir um plano de saúde privado está intrinsecamente relacionada à renda da pessoa, além do fato de que, geralmente, planos mais baratos deixam de cobrir muitos serviços de saúde. Dessa forma, são os mais pobres que se beneficiam do SUS em maior medida, e qualquer ação que viesse a modificar esse sistema afetaria aqueles que mais precisam de proteção e de acesso à saúde gratuita.
A pandemia também evidenciou a importância do SUS. O sistema foi responsável por 93% dos testes de COVID-19 feitos no país até julho⁵. Em continuação, como sete em cada dez brasileiros não podem arcar com os custos do acesso aos serviços privados de saúde, é certo que teriam ocorrido ainda mais mortes pelo coronavírus no país se não fosse pelos hospitais públicos e profissionais de saúde pública. Percebe-se, logo, a importância do SUS ter oferecido tratamento gratuito aos pacientes de COVID-19, o que não aconteceu em diversos outros países, notoriamente os Estados Unidos, no qual muitas pessoas internadas com a doença foram posteriormente cobradas pelo tratamento que receberam, com algumas contas chegando à casa dos milhões de dólares⁶.
Além disso, é possível ver também a importância do SUS quando se compara esse sistema de saúde com o de outros países como os EUA, que não possuem propriamente um sistema de saúde público, com a população tendo que pagar planos de saúde para ter acesso à maior parte dos medicamentos e tratamentos que os brasileiros têm acesso gratuitamente pelo SUS, como insulina ou tratamentos oncológicos.
Isso não quer dizer que o SUS seja perfeito, obviamente o sistema sofre com a falta de orçamento e estrutura adequada para atender à alta demanda. No entanto, com os poucos recursos e financiamentos que detém, o sistema é responsável por salvar muitas vidas e deve ser protegido e melhorado, não modificado.
³ Id.
Fontes:
Imagem da capa: Vectoria Arantes
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