Os laços velados entre a brotheragem e a misoginia.
“Eu quero virar um mártir para todos os homens”. Essa foi a frase proferida por Gabriel Fop, participante do Big Brother Brasil 23, no jogo da discórdia da semana passada (23/02). A palavra mártir foi repetida ao menos três vezes em suas justificativas após o rapaz receber um total de 10 bombas (plaquinhas que indicam repulsão) na dinâmica. Alguns dos fatores que ocasionaram o alto número de rejeições foram a rivalidade entre os grupos da casa, sendo Fop um dos membros do quarto Deserto, e a sua postura autodeterminada “fria e calculista”. Quando Fop descreve o recebimento das plaquinhas como “chutar cachorro morto”, ele se refere ao fato de estar, supostamente, “marcado” por conta do aviso de Tadeu Schmidt, apresentador do programa, sobre sua postura abusiva.
No dia anterior, Schmidt alertou no ao vivo a problemática dos comportamentos violentos do brother perante outra participante, Bruna Griphao, com quem mantém um relacionamento amoroso dentro da casa. O apresentador reforçou inclusive que quem vive o relacionamento pode não enxergar os sinais de abuso. Fop reagiu, mas não pedindo desculpas. Exigiu uma resposta de Bruna, se ela achava que ele era tóxico, o que ela negou. Então, atribuiu a ela a responsabilidade de limpar sua imagem. Culpada, Bruna se desculpou inúmeras vezes. Após a reação comovida de muitas sisters no jogo da discórdia, Gabriel esclareceu sua intenção de virar um mártir para homens que cometem erros, o que muitos internautas acharam absurdo. De abusador, ele foi para vítima e, depois, para mártir. De fato, a fala de Fop é um tanto irônica, mas nunca absurda. Pelo menos não enquanto homens se reunirem em uma rede de proteção coletiva em nome do ódio que nutrem por mulheres.
Deixe-me elaborar essa ideia com uma frase muito simples: todas as mulheres conhecem uma mulher que foi abusada — isso se elas mesmas não pertencem à estatística —, mas poucos homens conhecem um abusador. Coincidência? Inocência? A conta não fecha. A realidade é que homens se organizam para proteger uns aos outros das consequências de suas próprias ações. Não à toa, muitos dos homens do BBB23 acolheram Fop com frases como “esse erro não define seu caráter”, “estou com você até o fim”. Eles não questionaram por um segundo se estavam do lado certo da história, afinal, o lado certo é sempre o deles. Nem preciso dizer que poucos foram consolar a verdadeira vítima, que chorava na cozinha e se culpava pelo ocorrido.
O espírito de brotheragem perdoa tudo, os homens trabalham como um único ser, como se o erro de um fosse capaz de derrubar todos e, por isso, deve ser escondido, amenizado. E, de certa forma, estão corretos: existe um corpo que os une, o patriarcado, assim como a necessidade individual de preservar essa rede mutualística. A resposta defensiva vem da ideia de que “pode ser eu no futuro” ou “fui eu no passado”. Eu te protejo e você me protege. Tal atitude também implica uma lógica misógina, na qual a resposta para os problemas causados não é a revisão da estrutura de poder que os coloca numa posição intocável, mas sim aproveitar-se dela para atribuir a culpa a fatores externos, sejam esses a idade, a circunstância, ou até a própria mulher. Ao fazê-lo, eles se eximem de qualquer responsabilidade individual ou coletiva e silenciosamente alimentam um monstro: a cultura do estupro. Sua forma de “combater” o abuso é dar a ele outro nome.
Um exemplo claro desse fenômeno de pacto narcisístico entre homens é o caso do influenciador Andrew Tate, descrito pela The Economist como o “herói misógino de milhares de garotos”[1]. Coincidentemente ou não, Tate teve uma breve aparição no Big Brother britânico, em 2016, mas foi expulso após o surgimento de um vídeo em que ele agride uma mulher com um cinto[2]. O ex-boxeador justificou se tratar de uma piada com a colega, que, supostamente, não se feriu. Algum tempo depois, ele passou a produzir conteúdos de autoajuda para a internet, tendo como público-alvo jovens garotos. Na maioria dos vídeos, ele dava dicas de como conquistar mulheres, apelando para a insegurança desses jovens.
Tate transforma a dor e a rejeição de adolescentes frustrados em ódio pelas meninas e mulheres que os cercam, criando uma legião do que os internautas denominam incels[3]. O termo vem da junção das palavras do inglês involuntary celibate, celibatário involuntário, e costuma descrever homens que atribuem a culpa do seu celibato às mulheres, principalmente àquelas com vida sexual ativa, por meio de ataques misóginos. Assim, ele zomba de vítimas de assédio, promove a grandeza dos homens em detrimento das mulheres, incentiva que esses meninos se aproveitem de mulheres vulneráveis e sugere abuso doméstico como resposta à traição. Quando sua conta do TikTok foi banida, ele já contava com 11,6 bilhões de visualizações[4].
Mais recentemente, em abril de 2022, sua casa foi invadida pela polícia após uma denúncia da embaixada dos EUA, que suspeitava que ele mantinha no local uma jovem americana contra a sua vontade[5]. No dia 30 de dezembro do mesmo ano, Andrew Tate foi detido na Romênia por suspeita de envolvimento com tráfico humano, estupro e crime organizado. Em um vídeo, Tate afirma ter se mudado do Reino Unido para a Romênia em busca de escapar das acusações de estupro que enfrentava, mesmo se declarando inocente. Se você esperava que esses acontecimentos fossem capazes de mudar o pensamento de seus seguidores, terei que desapontá-lo. Na Grécia, fãs foram às ruas protestar em resposta à prisão do influenciador. De certa forma, Tate virou um mártir da juventude misógina que o acompanha. Até a data desta publicação, Andrew Tate segue preso.
Essa onda de conivência com o abuso não é exclusiva do Reino Unido, da Grécia e nem das demais nações estrangeiras. Um país onde a convocação de um jogador para a Copa do Mundo causa mais revolta nos homens do que suas acusações de estupro — com inúmeros indícios, diga-se de passagem — não poderia ser diferente. Independente das acusações serem verdadeiras ou não, a maioria dos homens não se assusta com a possibilidade. Não porque acreditam que seja improvável, mas porque ela não os afeta. A idade de Daniel Alves quando foi convocado, por outro lado, sim.
Vamos colocar em perspectiva: imagine que um famoso que você acompanha está sendo investigado por assassinar alguém. Mesmo que essa pessoa ainda não tenha sido declarada culpada ou inocente, você estranha. O ético seria se distanciar da situação e dar uma oportunidade igual dos lados apresentarem evidências, mas isso raramente ocorre quando um homem é acusado de cometer abuso. Neste contexto, o comum é um pré-julgamento da mulher, que vira ré por difamação em um piscar de olhos. Por que a postura é diferente em uma situação como esta? Será que as pessoas não questionam ou apenas não se importam?
Tendo a acreditar na segunda hipótese porque, na maioria das vezes, nem mesmo todas as provas do mundo e uma sentença calarão os “advogados” do abusador em questão. Dirão que ele foi injustiçado, que ela queria dinheiro ou fama — mesmo se a vítima for anônima e não pedir indenização, como no caso de Daniel Alves —, que acabaram com a carreira dele. Ninguém liga se ele acabou com a vida dela antes, se deixou marcas irreparáveis, nada disso gera comoção. Ele vira mártir, já ela é esquecida ou vilanizada.
Queria, do fundo do meu coração, pensar que a frase de Gabriel Fop é ridícula ou cômica, mas não consigo. Porque é plausível, é o que acontece todos os dias. Homens continuam abusando e se autodeclarando mártires no primeiro sinal de consequência, não existe karma ou punição que os atinja, não sem antes eles conquistarem uma leva de seguidores fervorosos e piedosos. Para nós, mulheres, resta o medo e a precaução, pois ninguém nos dará uma segunda chance, mesmo como vítimas.
Na noite desta terça-feira (31/01), Fop foi eliminado com 53% dos votos, mas não se engane: é uma porcentagem baixa considerando que 47% dos votos eram a favor de um cenário que implicava sua permanência. Ainda mais sabendo que 46% foram dedicados à saída de uma mulher negra que não cometeu nenhum preconceito ou discurso de ódio. Os que lamentam sua saída são muitos. Me resta a pergunta: quanto tempo, ou melhor, quantos homens serão necessários para que Fop vire um mártir?
Autoria: Fernanda Abdo
Revisão: João Rafael Colleoni, Anna Cecília Serrano e André Rhinow
Imagem de capa: Scene of Deluge (Joseph-Désiré Court, 1826)
Referências/Fontes:
[1]WHO IS ANDREW TATE, THE MISOGYNIST HERO TO MILLIONS OF YOUNG MEN? The Economist, 2022. Disponível em: <https://www.economist.com/the-economist-explains/2022/12/30/who-is-andrew-tate-the-misogynist-hero-to-millions-of-young-men>. Acesso em 26 de janeiro de 2023.
[2] ANDREW REMOVED FROM BIG BROTHER HOUSE OVER OUTSIDE ACTIVITIES. BBC News, 2016. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/newsbeat-36524693>. Acesso em 26 de janeiro de 2023.
[3]GRIFFIN, Jonathan. O mundo sombrio dos 'incels', celibatários involuntários que odeiam mulheres. BBC News Brasil, 2021. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-58300599>. Acesso em 27 de janeiro de 2023.
[4]DAS, Shanti. Inside the violent, misogynistic world of TikTok’s new star, Andrew Tate. The Guardian, 2022. Disponível em: <https://www.theguardian.com/technology/2022/aug/06/andrew-tate-violent-misogynistic-world-of-tiktok-new-star>. Acesso em 27 de janeiro de 2023.
[5]DAS, Shanti. Inside the violent, misogynistic world of TikTok’s new star, Andrew Tate. The Guardian, 2022. Disponível em: <https://www.theguardian.com/technology/2022/aug/06/andrew-tate-violent-misogynistic-world-of-tiktok-new-star>. Acesso em 27 de janeiro de 2023.
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