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RACISMO ANTIASIÁTICO: CONVERSA COM MIWA KASHIWAGI


Este texto foi escrito com base em entrevista com Miwa Kashiwagi, Criadora de conteúdo digital e graduanda em Relações Internacionais pela FGV RI. Venha conferir!


Os anos de 2020 e 2021 trouxeram muitos tópicos importantíssimos para o debate social. Não somente temáticas relacionadas à saúde pública e à COVID-19, mas também sobre as mais diversas estruturas da vida em comunidade. A marginalização da população negra é o foco dos debates, o que faz sentido considerando a discrepância histórica, social e econômica observada entre ela e a população branca. Entretanto, a segregação racial e os privilégios brancos (as facilidades cotidianas das quais um se beneficia simplesmente por ser branco) na maioria das instâncias da vida social — se não em todas — afetam também outros grupos raciais, o que fica cada vez mais evidente cenário caótico em que vivemos atualmente. O massacre ocorrido em Atlanta no dia 16 de março, em que um homem branco entrou em três casas de massagem (um tipo de comércio tradicionalmente gerido por famílias de descendência asiática nos Estados Unidos) e matou 8 mulheres, foi nitidamente um atentado racista[1]. O comportamento preconceituoso contra a população amarela é progressivamente normalizado na sociedade. Com a pandemia, grupos xenofóbicos passaram a manipular a teoria de que o Coronavírus se alastrou a partir da China criando uma “justificativa” para atos racistas direcionados à comunidade asiática.


A situação é apocalíptica, termo que já usei várias vezes em outros textos porque realmente não encontrei um melhor. Porém, em confronto com a minha descrença, tive o privilégio de conversar com alguém que me ensinou muito e, com toda certeza, me deu esperanças. Miwa Kashiwagi, graduanda em Relações Internacionais na FGV, foi minha entrevistada no dia 31/03. A estudante é conhecida nas redes sociais por compartilhar vídeos que colocam em pauta diversos assuntos políticos, culturais e sociais. O primeiro vídeo gravado por ela que eu assisti debatia a polêmica dos “Fox Eyes” (olhos de raposa): uma técnica de maquiagem e também um processo de cirurgia plástica, ambos utilizados por muitas blogueiras e celebridades, que incomodam a comunidade asiática por replicarem o padrão estético dos “olhos puxados”. De forma muito eloquente, Miwa explicou o racismo por trás dessa técnica e a apropriação cultural preconceituosa que ela representa. Ainda, afirmou que o movimento da comunidade ao se posicionar sobre a temática não pretende proibir as pessoas de a utilizarem, mas educá-las, alertando-as sobre a opressão que representa. A ideia é chamar a atenção para uma situação comum para os grupos raciais marginalizados: uma das maiores formas de bullying contra asiáticos vira moda quando apropriada por pessoas brancas. Achei brilhante e acabei por explorar mais o seu conteúdo.



Organização dos Vídeos


Na entrevista, Miwa contou sobre o processo de organização dos seus vídeos. Começou a se interessar pelas mais diferentes pautas políticas no começo da adolescência e passou, com isso, a ler sobre feminismo, política, eventualmente chegando à temática do racismo. Seus vídeos surgiram como uma forma de expressar suas opiniões e entendimentos sobre os acontecimentos sociais e, principalmente na pandemia, para exteriorizar seus pensamentos. A maior parte dos assuntos escolhidos para os vídeos vem da sua convivência diária, o que acaba incluindo assuntos atuais e de interesse geral. Eles são postados no IGTV do Instagram (o canal de comunicação por vídeos criado pelo aplicativo) e se assemelham a uma conversa. Não é uma fala escrita e memorizada, Miwa pensa no tema, pesquisa um pouco sobre e define linhas gerais para sua argumentação. Um dos aspectos mais interessantes do seu conteúdo é a forma simples como ela trata dos assuntos, descomplicando a linguagem e, consequentemente, facilitando a compressão e o acesso ao debate.



Vivência do racismo anti asiático


Na nossa entrevista, focamos no racismo anti asiático. Miwa é paulistana de nascença, mas foi criada em uma cidade do interior de São Paulo, na qual a comunidade asiática era bem pequena, o que, como afirmou, moldou sua relação com o conceito de “raça”. A estudante descreveu como sempre se sentiu a “cota de diversidade” dos espaços que frequentou, majoritariamente brancos. No seu processo de formação, predominou um sentimento de exclusão das convivências sociais mais básicas. Nos “namoros de criança”, também se sentia deixada de lado, “ninguém nunca gostava de mim, era esquisito”. Essa fase da sua vida coincidiu com um aumento do consumo de cultura estrangeira norte-americana, o que a aproximou do estereótipo da “minoria modelo”: o ideal de que os asiáticos são naturalmente mais produtivos e inteligentes, “só tiram nota boa”. Nesse cenário, cresceu a percepção de que precisava se adequar aos moldes que observava, o que a levou a desenvolver uma forte ansiedade com notas e desempenho escolar a partir de uma cobrança predominantemente individual. Não somente na escola, mas também na vida profissional as pessoas amarelas sofrem com as consequências de uma formação contaminada por estereótipos. Como Miwa trouxe para a discussão, mesmo que o indivíduo se encaixe no modelo e seja realmente muito produtivo, apresentando bons resultados, há uma clara desconsideração do esforço pessoal. Todo o mérito recai sobre a etnia. Nesse processo, cria-se uma submissão forçosa do indivíduo à sua raça, o que é extremamente desumanizante, redutivo e claramente racista.


O estereótipo da “minoria modelo” não é o único que existe sobre a comunidade asiática. Miwa aponta que as pessoas se esquecem do estereótipo que nomeia “chinês sujo”, segundo o qual a comunidade amarela é associada à falsificação de produtos, à trapaça, à sujeira e ao “esquisito”, principalmente na questão da alimentação. Essa imagem que beira o “não-civilizado” é profundamente difamante. A estudante explicou também como observa uma forte alternância entre a utilização dos estereótipos do “modelo” e do “sujo”. Principalmente em situações de discordância, Miwa repara como sua raça é utilizada contra ela. No momento em que a complacência com uma fala racista acaba, a pessoa amarela é tratada como alguém que “deveria voltar para o seu país”, ou outros argumentos segregacionistas. Entra em jogo, ainda, a questão do gênero: também há uma dicotomia culturalmente aceita. Há um embate entre a imagem da mulher asiática pequena, infantilizada e submissa e a mais agressiva da mulher sedutora e “suja”, fantasia sexual para os homens e uma competição para mulheres. Esse variação entre extremos, do modelo para o sujo, do submisso para o sedutor, é uma evidente forma de desumanização das pessoas racializadas e um instrumento do racismo.



Fetichização


Debatemos também a fetichização dos corpos asiáticos. Novamente, Miwa trouxe a ideia do pêndulo entre os dois pólos opostos com os quais as pessoas amarelas precisam lidar. Afirmou que enfrentar essas situações “é uma aventura”, pois, como mulher, é impossível prever a reação do homem a um “não”, o que causa um desconforto e um sentimento profundo de insegurança. A estudante também explicou como a temática do gênero dentro das discussões sobre o racismo contra asiáticos tem raízes em estereótipos muito antigos. A mulher asiática é vista como uma figura completamente sexual, enquanto, em contrapartida, o homem asiático é retratado como emasculado e impotente. A construção desse estereótipo estaria ligada à tentativa histórica de apresentar os que migravam para a América como não desejáveis, uma forma de evitar a miscigenação. Nos últimos tempos, todavia, com a globalização e o crescente acesso a alguns planos da cultura oriental, Miwa comentou com se impressionou com os homens passando de “emasculados” para desejados, em especial na opinião das mulheres brancas. Isso se observa, por exemplo, nas influências trazidas pelo gênero K-Pop (o pop coreano) e pelos animes (os desenhos japoneses de animação), os quais ganham cada vez mais fãs. Pode refletir um desejo da mulher branca de possuir um homem menos violento, “cavalheiro”, idealizado na figura do homem amarelo. Novamente, o comportamento transparece a primazia que se dá para raça em detrimento do indivíduo, em especial nos âmbitos sexual e de relacionamentos, bases da fetichização racista.



Apropriação cultural


Um tema que se relaciona com a discussão acerca da crescente aproximação ocidental com a cultura asiática é o da apropriação cultural. Uma prática polêmica que surgiu no cinema norte-americano e é muito debatida neste âmbito é a “yellow face” (cara amarela). Ela se baseia em técnicas de maquiagem que replicam os traços asiáticos em atores brancos. Já foi e ainda é utilizada por muitos diretores e produtores fazendo de “tudo para não contratar o ator que não é branco”, uma opção visivelmente racista. Um exemplo de produção que utilizou a “yellow face” é o filme “Breakfast at Tiffany’s”, lançado em 1961, no qual o personagem Sr. Yunioshi, vizinho de descendência japonesa da protagonista, foi interpretado pelo ator branco Mickey Rooney[2]. Um exemplo mais recente e brasileiro: na novela “Sol Nascente” de 2016, a personagem Alice Tanaka, interpretada por Giovanna Antonelli, era originalmente de descendência japonesa. O papel, como defendem os críticos, seria muito melhor alocado para Daniele Suzuki, mas com a desaprovação da opinião pública, mudaram a história de Alice para que fosse adotada por pais japoneses. Além disso, seu pai, Kazuo Tanaka, foi interpretado por Luís Melo, um ator branco que usou maquiagem para replicar traços asiáticos[3]. Nessa discussão, Miwa trouxe uma reflexão que remete às técnicas de Fox Eyes: “onde acaba o yellow face e começa a liberdade para práticas estéticas aceitáveis com o seu corpo?” Ou seja, até onde essas técnicas garantem o tal “ser livre” para fazer o que quiser com o próprio corpo e não o utilizar a “branquitude” para se apropriar de outras culturas?


Principalmente em países multiétnicos, as discussões sobre racismo, apropriação cultural e segregação tomam rumos de relativização. Surgem argumentos sobre como a violência representada por uma técnica como a yellow face, por exemplo, não chega aos pés da violência que sofre a população negra. Realmente pode ser percebida uma diferença na segregação de negros e amarelos: os primeiros são vistos como pertencentes à sociedade, mas não são bem-vindos em todos os espaços; o contrário ocorre com os segundos, de forma que são acolhidos nas instâncias sociais majoritariamente controladas por brancos, mas nunca considerados como parte do todo. Por isso muitas ofensas racistas contra os asiáticos se baseiam na ideia de “voltar para onde veio”.


No Brasil, nunca existiu uma institucionalização da exclusão dos amarelos, como existiu nos Estados Unidos, por exemplo, com os campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. O mito da minoria modelo foi criado para servir de instrumento retórico para oprimir outras minorias, utilizando falsas justificativas meritocráticas como “se os asiáticos pobres conseguiram vir para o Brasil e construir sua vida, os negros e indígenas também o conseguem”. Mesmo com todas as diferenças discutidas, Miwa defende, e com razão, que comparar as discriminações sofridas por diferentes etnias é extremamente perigoso. O racismo não é passível de relativização, é uma prática cultural extremamente injusta, opressiva, segregacionista e violenta que deve ser combatida seja qual for sua intensidade. É uma prática absolutamente desumanizante, sem “mas”.



Como a pandemia afetou as manifestações racistas contra asiáticos


Tendo em vista as últimas notícias sobre atentados racistas contra pessoas amarelas e a inflação do sentimento antiasiático — potencializadas, em parte, pela pandemia do coronavírus —, não podemos continuar a menosprezar a violência que esse comportamento representa. Miwa conta como percebeu uma passagem completa da percepção dos asiáticos como “modelo” para “sujos” em tão pouco tempo. São recorrentes, já há algum tempo, conspirações como a de que os chineses “vão comprar tudo”, oriunda do acelerado crescimento econômico que o país vem mostrando nos últimos anos, ou a de que “o mundo vai ser chinês”, ambas normalmente relacionadas a uma crítica política ao regime do país. Contudo, principalmente com os recentes posicionamentos de líderes políticos, como o ex-presidente dos EUA Donald Trump e o atual presidente brasileiro Jair Bolsonaro, aumentaram ainda mais os comportamentos preconceituosos e segregacionistas. Declarações como a de Bolsonaro, de não comprar a “vachina”, ou de Trump, apelidando a COVID-19 de “kung flu” (uma referência à arte marcial kung fu nascida na China), são nítidas formas de legitimação do discurso e do comportamento racista, abrindo espaço para sua externalização, seja via internet, seja via ações odiosas.



Alguma esperança...


Miwa, ao final da conversa, levantou algumas ideias e indicou iniciativas que já vêm agindo no combate ao racismo antiasiático. Basicamente, todo tipo de conversa, pesquisa ou debate sobre o tema tem grande potencial de surtir efeitos positivos. A própria questão do “Fox Eyes”, por exemplo, sendo discutida em revistas para adolescentes ou veículos comunicativos do mundo da moda e da estética, já traz uma repercussão muito grande para o tema, conscientizando especialmente os mais jovens. A desconstrução é difícil, como afirmou a estudante, mas a educação e os movimentos de informatização como o “Stop Asian Hate”, em conjunto com outros como o “Black Lives Matter”, em um ato de solidariedade antirracista, já são grandes meios de reagir ao problema. Também é necessário um maior investimento em pesquisas sobre o assunto, a fim de levantar dados reais sobre as consequências do racismo antiasiático. Por fim, a utilização do privilégio branco para universalizar o acesso de grupos raciais a espaços majoritariamente brancos é um posicionamento extremamente importante e necessário.


Os vídeos de Miwa Kashiwagi são extraordinários instrumentos para compartilhar informações sobre política, sociedade e cultura, e seu conteúdo sobre o racismo antiasiático é extremamente bem elaborado e educativo. Iniciativas como a dela me dão esperança de que ainda existam meios para se espalhar educação e combater a ignorância, um dos estados mais perigosos do ser humano.


“Não ficar quieto é a resposta”, disse Miwa. Não poderia concordar mais.




Revisão: Bruna Ballestero e Glendha Visani

Imagem de capa: Reprodução ABC News


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Referências:

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