No texto de hoje, nossa redatora Loreta Guerra disserta sobre o radicalismo, a mudança nas instituições e a transformação do sistema. Você sabe a diferença entre revolução e evolução?

Existem poucas coisas que me decepcionam tanto quanto ler “dissertação argumentativa” numa proposta de texto. Me lembro perfeitamente do dia em que entrei na aula de redação do colegial, do meu sorriso radiante que gradualmente se transformou numa expressão indiferente com “interação com o leitor é proibido”, “expressões poéticas não são adequadas” e o destruidor “evitem figuras de linguagem”. Imagine, então, minha surpresa quando a inspiração para o texto que agora escrevo tenha vindo de um desses exercícios. O “tema musa” que me acompanha, no entanto, não é um dos ordinários “disserte sobre (proposta concreta com 3 textos base e um questionamento bem estruturado) ”. Não, inspiro-me na traiçoeira pergunta apresentada por meu pai: “qual a diferença entre revolução e evolução? ” Devo admitir que, mesmo com a autocensura dissertativa da Loreta dos 17 anos, meu resultado até que ficou bem interessante. Aqui, pretendo fazer uma releitura dele, já que considero sua essência muito atual e, mais que isso, atemporal... felizmente, sem precisar me preocupar com toda a metalinguagem que acabo de desenvolver.
“As sociedades sempre estiveram e sempre estarão sofrendo mudanças. Seja por fatores externos ou internos, as civilizações humanas, a todo momento, passam por transformações tanto a longo quanto a curto prazo. O imediatismo desses processos é o que diferencia a evolução da revolução social: enquanto a primeira ocorre constantemente, a segunda é muito mais pontual”. Daí parti e, de uma maneira simplificada, acredito que consegui resumir bem meus pensamentos naquele momento. Claro que, se a licença poética me permitisse, teria feito um paralelo muito maior entre a diferença dos conceitos e as noções de “radical” e “transformação”.
A ideia de revolução é muito ligada ao radicalismo das transformações nas instituições sociais. Qual a imagem que vem à cabeça quando pensamos em evolução? Não posso falar por todos, mas a primeira foto do Google Images é a das quatro espécies “se levantando”, do primatibus ao homo sapiens. A evolução remete, então, a um processo lento de modificações. Me utilizei do exemplo biológico, mas o conceito social não é ideologicamente tão distante: a mentalidade geral muda e, com todos os aparatos sociais, políticos, econômicos e culturais em funcionamento, também transfigura o sistema. Agora, o que acontece com esse raciocínio adicionando o prefixo –re? Novamente, não pretendo generalizar, mas vejo claramente jacobinos incendiando Paris e gritando por igualdade, liberdade e fraternidade. Um levante generalizado, sem etapas, aleatoriamente muito bem estruturado. Radical.
Uma coisa que eu percebi não ter tratado em 2018 - ao dar o primeiro passo que, agora, procuro colocar ereto - foi exatamente essa concepção do radicalismo e sua relação com a transformação social.
Aparentemente, tendemos a fazer juízo de valor nessa reflexão e acredito que as ponderações ao seu redor não deveriam ser sobre bondade ou maldade. Não. A questão é: o quão efetivo para o objetivo de transformação social é o radicalismo? Veja, aqui delineio “radical” não como destruição física ou moral, é muito mais que isso. É uma assolação sistemática. Os meios utilizados para tal são completamente endógenos do contexto social-histórico e político.
A metamorfose das instituições definitivamente é uma consequência da evolução social. “O desenvolvimento das ciências, concepções jurídicas e modelos políticos aos poucos estruturam as civilizações de maneiras diferentes, sempre contribuindo para o aparecimento de novos pensamentos e ideologias. A esse cenário é possível atribuir o conceito de evolução social, processo constante e de atuação lenta”, escrevi em 2018. Após muitos e mais complexos textos de filosofia e sociologia lidos, hoje não sinto a necessidade de repensar essa ideia, mas, sim, de explorar, mais que seu imediatismo, sua intensidade.
Os processos evolutivos também são radicais. O abismo ideológico entre as sociedades atuais e as antigas é uma prova disso. No entanto, essa potência transformadora é dissipada em ondas lentas de aquisição de conhecimento e contemplação daquilo que chamamos de “certo” e “errado”, “melhor” e “pior”. Resumidamente, a superestrutura social - definida na tradição marxista como o conjunto das formas de consciência social como a política, filosofia, cultura, etc.¹ - é a modificada nesse movimento.
O impacto do radicalismo revolucionário, em termos de remodelagem social, parece ser muito maior, pois atinge substancialmente a infraestrutura, o conjunto das relações econômicas e sociais dentro da coletividade². O importante é entender essa brutalidade, de onde ela se origina. É a insatisfação com o sistema que provoca a revolta contra o mesmo. “Os protestos por melhores condições de vida, as greves e manifestações mudam sistemas inteiros em pouco tempo e de forma brusca, caracterizando as revoluções, pontuais e de efeito imediato”, foi minha concisa definição na dissertação. Minha filosofia não mudou: a revolução social se dá quando a evolução do sistema não é suficiente para contemplar as necessidades, de materiais a ideológicas, e, principalmente, os direitos de um ou mais grupos.
Com meus 17 anos, tentei explorar mais o confronto entre evolução e revolução. Na verdade, defendi causalidade entre as duas. “As mudanças na superestrutura de uma sociedade tornam a compreensão do sistema diferente e, muitas vezes, esse deixa de se encaixar na vontade geral transformada”. Reforço essa ideia de que a “vontade geral” sob mutação é uma consequência da evolução social e um estopim para a revolução com alguns exemplos. Foi o Iluminismo, como um passe de entrada das concepções igualitárias na França, que propulsionou o movimento de 1789. A Semana da Arte Moderna trouxe o pensamento modernista para o Brasil e instigou ainda mais a união de movimentos como o Pau-Brasil, Verde-Amarelo e Antropofágico, impactando extraordinariamente a cultura e política da República Velha. O Satyagraha, princípio da desobediência civil introduzido por Gandhi no movimento contrário à colonização inglesa na Índia, levou a revolução para outros rumos, culminando em 1947 na independência do país². São exemplos de contextos históricos diversos, de épocas variadas e revoluções sem conexão direta: o que as coloca no mesmo horizonte é o processo, radicalmente efetivo. É a dialética social. Tese: o sistema está errado. Antítese: destruir o sistema. Síntese: criar um novo.
Em quatro parágrafos, um de introdução, dois de desenvolvimento e uma conclusão, respondi à pergunta do meu pai. A revolução é o processo imediato de transformação do sistema, a evolução é gradual. Isso em 2018. Hoje, pondero mais sobre a pujança de cada uma dessas categorias das ações humanas transformadoras, concluindo que sim, a revolução é muito mais radical que a evolução, mas também que o motivo dessa distinção é a urgência por transformação. A destruição das estruturas sociais sempre vai existir, a todo momento ela acontece. Acho até que seus efeitos podem ser mais profundos, a destruição das nossas próprias estruturas é ininterrupta. Uma sinapse diferente é o que basta para se perceber que alguma coisa precisa ser aprimorada ou modificada, seja no pensamento individual, seja no coletivo.
Uma coisa é certa: talvez meu desgosto por dissertações devesse ser revolucionado. Afinal, por mais que me doesse não poder usar esse “me” que acabei de escrever para provar meu ponto, foi o título valendo 0,5 “Temporalidade das transformações sociais” que me rendeu essa publicação.
Referências:
¹Marx, Karl. “Contribuição à Crítica da Economia Política”, tradução de Florestan Fernandes
²“Gandhi” – História do Mundo, https://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/mahatma-gandhi.htm
Foto da capa: Sivakumar S
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