Por: Coletivo Feminista Anita Malfatti
Alice Rodrigues
Chiara Mori Passoni
Gabriela Cotello
Letícia Gongora
Luiza Crispim
Thais Cardoso
Mulheres são, e sempre foram, sub-representadas na política. O plenário do Senado Federal só passou a ter um banheiro feminino em 2016 - 55 anos após a inauguração do prédio em Brasília¹. Atualmente, a bancada feminina no Congresso Nacional conta com apenas 77 representantes, ou seja, apenas 15% das nossas representantes lá são mulheres. Já no Senado, esse número é menor ainda: são 12 mulheres para 81 cadeiras. O Brasil figura na 140ª posição em um ranking de 193 países sobre representatividade feminina na política². Apesar de os números serem baixos, eles têm aumentado de forma lenta³. Gradualmente, a população brasileira tem eleito mais e mais mulheres.
Pela perspectiva municipal também é possível identificar esse fenômeno lento: em 2000, apenas 11,6% das eleitas eram mulheres. Já em 2004, 12,6%. Em 2016 eram 13,5% e, nesse ano, 16% dos vereadores eleitos são mulheres⁴, como é possível perceber pelo gráfico abaixo produzido pela iniciativa Vote Nelas.
Em São Paulo, especificamente, foram 13 mulheres, entre 55 cadeiras, totalizando 23% de presença feminina na vereança paulista que assumirá o cargo em 2021.
Nessa eleição, além de aumentarmos simplesmente o número de mulheres eleitas, elegemos o maior número de mulheres transsexuais e travestis da história. Um recorde que não era muito difícil de superar, mas não deixa de ser uma conquista significativa. Segundo levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (ANTRA), apenas oito pessoas trans haviam sido eleitas em 2016 - ano das últimas eleições municipais⁵. Nenhuma delas em uma capital, sendo todas mulheres e integrantes de partidos de direita (PSD, PP, PMDB - hoje MDB -, PSBD e PR).
Já nesse ano foram 28 mulheres trans e travestis eleitas para cargos de vereança. Algumas delas foram as mais votadas de suas cidades, como Linda Brasil, Dandara, Tieta Melo, Lorim de Valéria, Titia Chiba, Paullete Blue e Duda Salabert, que não só foi a mais votada dessa eleição mas também da história de Belo Horizonte. Não suficiente, outra pesquisa da ANTRA apontou que, dessas mulheres, 16 são de partidos de esquerda (PSOL, PT, PDT, PV e PSB)⁶.
Em São Paulo, a mulher mais bem votada para o cargo de vereadora foi Erika Hilton, eleita com 50.508 votos. A mulher que mais votos recebeu na maior cidade da América Latina é preta, periférica e trans. Isso, talvez, mostre que houve uma mudança na política e no nosso imaginário de representatividade, base do sistema democrático que temos. Apesar de estarmos colocando mulheres plurais na política, como Erika Hilton, quem são as outras mulheres eleitas? Que mulheres estamos elegendo, quais queremos que nos representem e quais são representadas por parlamentares como Erika? É realmente essencial que elejamos mulheres, de forma nenhuma estamos nos opondo, muito pelo contrário, nosso questionamento, no entanto, é se apenas eleger mulheres é suficiente. Qual a diferença entre eleger Erika Hilton e Joice Hasselmann, por exemplo?
Em 2018, Joice Hasselmann, ex-Bolsonaro “de saias”⁷, tornou-se a deputada federal mais votada da história do Brasil, tendo recebido 1.078.666 votos. O sucesso da candidata do PSL não se repetiu, contudo, nas eleições municipais de 2020, quando, ao lado de Marina Helou (Rede), Vera Lúcia (PSTU) e outros 11 candidatos homens⁸, concorreu à Prefeitura de São Paulo. O seu resultado nas últimas eleições foi de 1,84% do total de votos⁹, com seis outros candidatos à sua frente¹⁰. Assim como as demais candidatas, Hasselmann se manifestou ao longo da campanha pela maior participação política das mulheres e pelo combate ao machismo e à violência contra a mulher¹¹. A defesa demagoga que a candidata revelou em sua falha jornada rumo à Prefeitura demonstra-se, porém, paradoxal.
Para além de desprezar o movimento feminista, segundo a qual é composto por uma “gente chata que arranca blusa para colocar peito na rua”, Joice Hasselman, defensora da maior proximidade entre a Igreja e o Estado, é contrária à legalização do aborto. A prática, não raro realizada mediante procedimentos clandestinos, mata, sobretudo, mulheres negras, menores de 14 anos e moradoras de periferias, segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro¹². Como se não bastasse, a reacionária anti-feminista, em entrevista concedida ao UOL, em 11 de janeiro de 2018, quando questionada se teria algum projeto de lei para mulheres, respondeu: “Não gosto dessa coisa de propor projeto segmentado. Fui eleita por brasileiros de São Paulo; meus projetos são de nação”¹³. Assim, a conservadora se afasta da defesa de pautas feministas que congreguem indistintamente mulheres em torno de uma representação política efetiva.
Assim, é possível notar que Joice não defende as mulheres. O problema de considerar a representação suficiente é justamente esse: o risco eleger mulheres que carregam consigo uma representatividade vazia. Aqui é necessário fazer uma diferenciação entre dois tipos de representatividade: a simbólica e a substantiva (ou concreta). Quando falamos de representatividade simbólica, estamos discutindo a figura e a performatividade daquela pessoa enquanto mulher ser importante. Aqui Joice Hasselmann seria relevante enquanto eleita por simplesmente existir enquanto mulher ocupando um espaço predominante masculino. Apenas a sua existência supre a representatividade simbólica. Mas isso não é suficiente.
Contudo, é necessário nos atentarmos às pautas que cada uma dessas mulheres traz consigo. É inegável que o aumento de mulheres na política representa uma vitória, mas não podemos parar por aí. Num país como o nosso, extremamente desigual, as experiências do que é ser mulher são plurais. Cada região, classe, sexualidade e etnia possui suas particularidades, deixando cada vez mais claro que o nosso feminismo precisa ter pautas plurais. E é aqui que entra a representatividade substantiva, pois por ela é entendido que as mulheres eleitas precisam, além de serem mulheres, defenderem pautas para mulheres: pautas feministas. São essas mulheres que vão discutir sobre maternidade, discriminação no trabalho, violência sexual e de gênero, dupla jornada e muitas outras pautas que existem por causa da desigualdade de gênero. É necessário praticar a representatividade concreta, ela vai depender do que a mulher defende, no caso de uma mulher que ocupa um cargo político. Isso significa não só ocupar espaços, mas ocupá-los de forma comprometida com a luta feminista (que, em nenhum momento se desliga de outras) e com a transformação radical do mundo.
Relembrando o exemplo de Erika e Joice: as duas são mulheres e, portanto, cumprem a carga simbólica que é sim importante. Mas apenas uma delas, Erika Hilton, é ativista dos direitos humanos e defensora das minorias políticas¹⁴, e cumpre a representatividade concreta, defendendo mulheres por carregar pautas feministas. Ela não defende apenas uma categoria universal de mulher que, no fundo, são mulheres brancas, de classe alta, heterossexuais e sem deficiência.
O que acontece é que o feminismo costuma essencializar o conceito de mulher quando almeja responder aquela clássica pergunta: o que é ser mulher?. Por esse raciocínio, eleger qualquer mulher seria suficiente, pois feminismos essencialistas resumem todas as mulheres ao fato de que elas sofrem opressão por seu gênero. Assim, apenas por ser mulher e sofrer opressão já é suficiente estar em um espaço de poder para afrontar e ensejar mudança. Mas não é assim que a banda toca. Se Joice Hasselmann fosse eleita prefeita de São Paulo, isso seria, no limite, uma conquista do anti-feminismo, da burguesia branca e de um movimento bolsonarista excludente e segregacionista, que violenta e oprime. É urgente considerar a realidade de que mulheres, em sua maioria, são nada como a Joice Hasselmann e - muito mais - com Erika Hilton.
Para evitar que caiamos em um feminismo excludente e superficial, precisamos prezar sempre por candidatas que tragam um discurso e uma prática que contemple as experiências distintas das mulheres do nosso país. Nesse sentido, eleger mulheres como Erika é cumprir uma representatividade concreta. Eleger uma mulher que luta por mulheres como elas são (e como ela própria é) contorna a noção de representatividade vazia.
Essa diferença fica clara pelas ameaças e pelo ódio disseminado à diferentes mulheres candidatas. Uma mulher que concorda com o sistema, é atacada de forma machista simplesmente por ser mulher, enquanto outra, que confronta o sistema, é atacada de forma machista por enfrentar a estrutura, além de por ocupar um espaço historicamente patriarcal. Quando mulheres radicais são eleitas o machismo, o racismo e a transfobia vem inclusive de pessoas que defendem pautas progressistas. Isso ocorre, pois essas mulheres questionam o status e a organização social colocando em cheque sistemas de opressões que beneficiam, inclusive, quem, em teoria, argumenta por um mundo mais justo.
E aqui não é apenas a Erika Hilton ou necessariamente outras mulheres. É importante reconhecer que homens podem ser parte dessa construção substantiva, afinal, não estamos falando apenas de símbolos (entre o binarismo do masculino/feminino) mas sim de conteúdo e prática política. Nessa luta, eles também votarão projetos de lei e, por isso, é necessário eleger homens comprometidos com as pautas feministas que vão além da noção universal de mulher.
Para isso, também necessário pensar além do dia da eleição. Votar em mulheres é importante sim, mas mais importante é votar em mulheres comprometidas com transformações estruturais que combatam desigualdades a longo prazo. A representatividade simbólica não pode ser um fim em si mesma e deve vir acompanhada da prática feminista e da defesa diária e efetiva de mulheres negras, lésbicas, trabalhadoras, trans, com deficiência, indígenas e todas aquelas que foram excluidas do conceito universalista de mulher por um feminismo de base essencialista.
Ainda vale lembrar que nosso voto no dia da eleição não é suficiente para transformar uma realidade de séculos. Outras alternativas sistêmicas são urgentes para se pensar uma democracia realmente inclusiva. É necessário transformar nossa forma de organização política, e, com isso repensar nossa estrutura econômica e também nossa subjetividade. A eleição é um mecanismo para a transformação, mas não o único e não deve caminhar sozinha.
Depois de falarmos tanto sobre os problemas da representação vazia e questionar quais mulheres realmente nos representam, ficam aqui algumas recomendações para pensarmos particularidades nos nossos Feminismos. É importante dizer que não dividimos por "tema" os livros, pois todos eles falam, no fundo, sobre a mesma temática: a existência de mulheres de uma forma não essencialista, reconhecendo particularidades e universalidades sem generalizar conceitos.
Não sei nada sobre feminismo! O que ler? Feminismo e Política: uma introdução, de Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel
Vídeo para entender um pouco mais as dinâmicas de vertentes, mecanismos e recortes do feminismo: Mulheres negras e o caráter duplo de opressão: https://www.youtube.com/watch?v=_xMIYnIweRw
Irmã Outsider: Ensaios e conferências, de Audre Lorde e Stephanie Borges
Autobiografia; Mulheres Raça e Classe, de Angela Davis
O que é lugar de fala?, de Djamila Ribeiro
O que é interseccionalidade?, de Carla Akotirene
O Feminismo é para todo mundo: Políticas Arrebatadoras, de Bell Hooks
Manifesto Contrassexual, de Paul B. Preciado
Feminismo Para os 99%. Um Manifesto, de Cinzia Arruzza, Heci Regina Candiani e Nancy Fraser
¹ ALEGRETTI, Laís. Plenário do Senado terá banheiro feminino 55 anos após inauguração. Brasília: G1, 5 de jan de 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/01/plenario-do-senado-tera-banheiro-feminino-55-anos-apos-inauguracao.html>. Acesso em: 18/0/2016.
² R7. Brasil ocupa 140˚ lugar de 193 no ranking de representação feminina. Disponível em: <https://noticias.r7.com/eleicoes-2020/brasil-ocupa-140-lugar-de-193-no-ranking-de-representacao-feminina-21102020>. 21/10/2020. Acesso em: 19/11/2020.
³ Velasco, Clara; e Oliveira, Leandro. Nº de mulheres eleitas se mantém no Senado, mas aumenta na Câmara e nas Assembleias. G1: 08/10/2018. Disponível em:<https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/10/08/no-de-mulheres-eleitas-se-mantem-no-senado-mas-aumenta-na-camara-e-nas-assembleias.ghtml>. Acesso em: 19/11/2020.
⁴ TSE
⁵ ANTRA. Eleições 2016. Disponível em: <https://antrabrasil.org/eleicoes2016/>. Acesso em: 19/11/2020.
⁶ BENEVIDES, Bruna; SIMPSON, Keila. Candidaturas trans foram eleitas em 2020. Disponível em: <https://antrabrasil.org/2020/11/16/candidaturas-trans-eleitas-em-2020/>. Acesso em: 19/11/2020.
⁷ FILHO, João; FELIZERDO; Nayara. Joice Hasselmann foi o ponto de partida de algumas das maiores mentiras da eleição. Disponível em: <https://theintercept.com/2018/10/26/joice-hasselmann-mentiras/>. Acesso em: 19/11/2020.
⁸ G1 SP. Candidatos a prefeito de São Paulo nas eleições 2020; veja a lista. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/eleicoes/2020/noticia/2020/09/03/candidatos-a-prefeito-de-sao-paulo-nas-eleicoes-2020-veja-a-lista.ghtml>. Acesso em: 19/11/2020.
⁹ QUINTELLA, Sérgio. Joice Hasselmann, ex-Bolsonaro “de saias”, teve desempenho pífio em 2020. Disponível em: <https://vejasp.abril.com.br/blog/poder-sp/joice-hasselmann-ex-bolsonaro-de-saias-teve-desempenho-pifio-em-2020/>. Acesso em: 19/11/2020.
¹⁰ HERBELHA, Gabriel. Racha no PSL e 'traidora' de Bolsonaro: analista avalia derrota de Joice em SP. Disponível em: <https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2020-11-20/racha-no-psl-e-traidora-de-bolsonaro-analista-avalia-derrota-de-joice-em-sp.html>. Acesso em: 19/11/2020.
¹¹ QUINTELLA, Sérgio. Joice Hasselmann, ex-Bolsonaro “de saias”, teve desempenho pífio em 2020. Disponível em: <https://vejasp.abril.com.br/blog/poder-sp/joice-hasselmann-ex-bolsonaro-de-saias-teve-desempenho-pifio-em-2020/>. Acesso em: 19/11/2020.
¹² VEIGA, Edison. As maiores vítimas de aborto no Brasil. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2020/02/21/as-maiores-vitimas-do-aborto-no-brasil.htm>. Acesso em: 19/11/2020.
¹³ BRANDALISE, Camila. "Feministas têm comportamento vexaminoso", diz Joice Hasselmann Disponível em: <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2018/11/01/entrevista-joice-hasselmann-deputada-federal-mais-votada.htm>. Acesso em: 19/11/2020.
¹⁴ FERNANDES, Nayú. “Travesti, negra e antiracista" se intitula mulher mais bem votada de SP. Disponível em: <https://www.dm.jor.br/eleicoes-2020/2020/11/mulher-mais-bem-votada-de-sp-pretende-construir-um-mandato-coletivo-em-prol-de-todos/>. Acesso em Acesso em: 19/11/2020.
Imagem da capa: Yulong Lli
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