
Mesmo uma semana após assistir a “Retratos Fantasmas”, não sabia ao certo como iria começar esse texto. Li em algum lugar que o filme de Kleber foi capaz de fazer com Recife o que Scorsese fez com Nova York ou até mesmo o que Godard fez com Paris. Não há como negar: “Retratos Fantasmas” é uma ode à cidade de Recife. Por meio da construção de uma cidade-personagem, o diretor transpassa as contradições presentes no relacionamento que cultivou com sua cidade-natal. Contudo, acredito que seja injusto compará-lo com Scorsese e Godard. Apesar do notório brilhantismo desses diretores, ambos estavam inseridos no circuito global de produção audiovisual e contaram com uma indústria cinematográfica consolidada — recursos que Kleber Mendonça Filho e outros cineastas brasileiros não tiveram (e não têm) em mãos. Ainda assim, Kleber se esforçou em desvendar o Recife ao longo de toda sua produção cinematográfica e, sobretudo em “Retratos Fantasmas”, o diretor pernambucano esmiúça as transformações de uma cidade que, por vezes, “esquece que é histórica”¹.
Devo ressaltar que “Retratos Fantasmas” é um filme sobre memórias: a partir de si, Mendonça consegue retratar a relação de toda uma cidade com seu passado — um conflito mal resolvido entre Recife atual e Recife antigo. A cidade, revivida nas memórias do diretor, encobre inconscientemente seu passado, abandonando-o sem esmero. Ao passo que é modernizada, Recife também é ameaçada: sem uma efetiva política de preservação da memória, uma nova cidade é erguida a cada ano, eliminam-se marcas e construções do passado e o que sobra são apenas fantasmas de momentos remotos. Nem mesmo os letreiros luminosos dos cinemas, compêndios de sua época, existem mais. As ruas do centro, antes fixadas temporalmente pelos filmes em exibição, agora se encontram inativas, atemporais. Ao longos das épocas, os filmes estampados nos letreiros marcaram mudanças contextuais e sociais: os mesmos letreiros que viram a força do cinema nacional com as produtoras Atlântida e Vera Cruz presenciaram a entrada massiva e avassaladora dos filmes americanos.

Letreiros como representantes de um momento histórico, imagem de 1968 retirada do Correio da Manhã. Em uma coincidência intrigante, o letreiro que indica “Noites dos Generais” foi colocado em um momento de endurecimento do regime militar, no ano em que instituiu-se o AI-5.
Ao passar por antigas construções, monumentos e ruínas, Kebler observa atentamente todos os “fantasmas” do centro de Recife. Essas localidades místicas, marcas de outro tempo, se misturam inteligivelmente com os próprios fantasmas de Kleber e são metonimizadas pelos cinemas de rua, espaços caros à juventude do diretor. Espaços que hoje parecem invisíveis em meio ao fulgor da cidade moderna. Lugares que caracterizam um centro inerte, abandonado pelo capital que migrou para a região de Boa Viagem. De todo modo, a relação de Kleber com o centro de Recife é indissociável de sua relação com o cinema. São Luiz, Art-palácio, Veneza e Moderno — todos esses cinemas tem sua história imiscuída às vivências de Kleber ao longo da narração. As memórias do diretor transpassam os letreiros luminosos do Art-palácio e os vitrais iluminados do São Luiz: a vida no centro era, inegavelmente, inseparável da agitação nas portas dos cinemas.
Ainda assim, a lírica de Kleber não se restringe a Recife. O diretor faz de sua cidade o que Guimarães Rosa fez de Cordisburgo — talvez essa seja uma comparação mais apropriada. Assim como Rosa universalizou o sertão mineiro, Kleber o fez com Recife: a urbanização contraditória permite que Mendonça mostre sua cidade como um microcosmo da realidade brasileira. Em muitos aspectos, a situação enfrentada pelos cinemas de rua é universal. Kleber não me deixa mentir: "O filme é só um tema. Existem muitas outras interpretações possíveis para o que aconteceu no Brasil e para o que acontece no Brasil. Então, acho que tudo isso pode virar fantasma”².
Como outras capitais, o centro de Recife é alvo das dinâmicas de gentrificação e abandono. Antigas referências de encontros e convívio urbano estão hoje inertes e esquecidas. Espaços que marcaram o encontro de massas se tornaram escassos. As distâncias de consumo foram reduzidas e os cinemas foram incorporados a lugares fechados. O que antes ocorria na rua, agora ocorre em shoppings. O centro, antes agitado, agora está vazio. O capital migrou, mas deixou fantasmas revividos por Kleber. Com algum esforço, alguns desses cinemas lutam para sobreviver, e o diretor evidencia que essa é uma luta necessária. Afinal, “cinema é massa”³.
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Referências:
1 e 2 - Entrevista de Kleber para a Folha de São Paulo: Kleber Mendonça Filho questiona a própria sanidade em 'Retratos Fantasmas'. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/08/kleber-mendonca-filho-questiona-a-propria-sanidade-em-retratos-fantasmas.shtml
3 - Fala presente no filme “Retratos Fantasmas”
Autoria: Giovanni Tortorella
Revisão: Laura Freitas e Anna Cecília Serrano
Imagem de capa: Imagem retirada do Diário de Pernambuco
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