Mesmo com todas as diferenças em relação à primeira, é inegável que uma nova Guerra Fria avulta-se sobre o cenário internacional, um embate latente entre China e Estados Unidos pela hegemonia sobre o resto dos países do globo. Nesse contexto, uma classe específica dentre eles, o chamado Terceiro Mundo, sofreu terrivelmente nas garras das duas superpotências da Guerra Fria, e há chances de que novamente sejam meros peões descartáveis nesse novo embate. Neste texto, coloco que o único meio de impedir que a história se repita é a construção de um novo Terceiro-Mundismo, um movimento de não-alinhamento fortalecido e unido ao redor do objetivo de garantir justiça e desenvolvimento para esses países através de um modelo diferente do proposto pelas potências contemporâneas.
Antes de tudo, é útil explicar o porquê deste texto tratar uma nova Guerra Fria como um acontecimento irrefreável, dado que essa posição não é um consenso na área de política internacional. Como já dito, a nova rivalidade sino-americana apresenta diferenças em relação à soviético-americana, sendo a mais importante os laços comerciais mais profundos entre os americanos e chineses, com o comércio entre esses países estimado em 615 bilhões de dólares, de acordo com a agência Office of United States Trade Representative. No entanto, não se pode ignorar as semelhanças, como a crescente representação da outra potência e seu povo como “o inimigo”, retratada pelo aumento de uma retórica racista nos Estados Unidos, que coloca chineses como uma ameaça ao país e tem elevado níveis de violência contra populações asiáticas. Além disso, são escancaradas as tentativas da China de aumentar sua influência global e desafiar a ordem internacional liderada pelos americanos, como seu projeto “One Belt One Road”, que propõe uma “nova rota da seda” que ligaria Europa, Ásia e África, erigida sob controle e investimento dos chineses. É dessa colisão de interesses entre essas potências, uma ascendente e revisionista e outra estabelecida e conservadora, que sairão as fagulhas que acenderão uma nova Guerra Fria. E o Terceiro Mundo deve estar preparado.
Também é imprescindível especificar o que exatamente quero dizer com “novo Terceiro-Mundismo”. Mesmo que, hoje, seja utilizado como sinônimo de “Estados fracos”, “subdesenvolvidos” e “devastados por conflitos internos”, nas décadas de 50 e 60 o termo “Terceiro Mundo” simbolizava um esperançoso projeto político de desenvolvimento e modernização compartilhado por Estados recém-descolonizados, que tentavam construir um futuro em que eram soberanos e emancipados em suas próprias terras. No entanto, as visões ambiciosas dos líderes desses países se chocaram contra a lógica da competição da Guerra Fria, a qual tornava necessária a aquisição de mais e mais aliados por parte das potências da época, os Estados Unidos e a União Soviética. O Terceiro Mundo teve suas aspirações frustradas por violentos golpes de Estado e massacres, em sua maioria promovidos pela cruzada anticomunista dos americanos, os grandes vencedores do embate. O fatídico resultado manifesta-se ao longo do Sul Global, como estilhaços: países miseráveis, famintos, convulsionados por guerras civis e golpes militares, vítimas da realpolitik da Guerra Fria e da globalização desgovernada do modelo americano.
É para evitar a repetição dessa destruição por uma nova Guerra Fria que o Sul Global precisa se unir em torno de um novo e melhor movimento emancipatório, um projeto que o una e o imponha como força global significativa capaz de definir sua própria agenda internacional. Atualmente, os países do Terceiro Mundo são tidos como verdadeiros Estados de segunda classe e ignorados, sem um assento à mesa de uma ordem internacional que valoriza países apenas por seus recursos financeiros. O Conselho de Segurança das Nações Unidas apenas abriga, entre seus cinco integrantes permanentes, a China como potência fora do Norte Global e seus membros têm resistido a uma reforma que inclua mais assentos permanentes para países do Terceiro Mundo há mais de vinte anos. Isso demonstra como, mesmo que 84% da população mundial pertença ao Sul Global, esse agrupamento tem influência ínfima nos rumos da política e da economia internacional. Tomar as rédeas de suas próprias agendas externas e domésticas por meio de um novo movimento Terceiro-Mundista seria um meio útil de formar um polo unido que, de fato, fizesse frente às potências da nova Guerra Fria.
Contudo, esse projeto passa também pela construção de um modelo diferente de desenvolvimento, que respeite diferenças nacionais e se adeque às características locais, ao contrário de um molde preconcebido por agentes exteriores. Afinal, a globalização dos preceitos políticos e econômicos da democracia liberal de modelo americano, apresentada após a queda da União Soviética como o único caminho ao desenvolvimento econômico, resultou em uma perpetuação das condições de vida precárias no Sul Global. A falha desse modelo no Terceiro Mundo pode ser atribuída diretamente à intervenção exterior de atores que desejavam, e desejam, impor um modelo estrangeiro de desenvolvimento. Um caso exemplar é o da República Democrática do Congo, país que foi saqueado durante a Guerra Fria por uma ditadura corrupta apoiada pelos Estados Unidos, e que nos dias de hoje persiste como um país violento e miserável diante de tentativas externas de erigir uma democracia liberal no território. Por isso, evitar a continuação dessa conjuntura durante e após a nova Guerra Fria passa pela organização de um projeto de desenvolvimento nacional que respeite as diferenças entre o Norte e o Sul Global.
É necessário notar que o cenário atual aponta obstáculos para a formação desse novo Terceiro-Mundismo, como a falta de um certo fôlego entre esses países para realizar tal empreendimento. Nas décadas de 50 e 60, muitos desses Estados estavam ganhando sua independência, e entre suas populações havia um clima de motivação e otimismo em relação ao futuro, que foi captado por líderes carismáticos como Sukarno, presidente da Indonésia e figura proeminente à época, o que foi crucial para o surgimento do movimento original. Atualmente, essa determinação foi substituída, em grande parte, por uma esperança vazia de melhora socioeconômica nesses países, o que se faz evidente pela inexistência de grandes lideranças que possam advogar por esse tipo de projeto, como fez Sukarno. Porém, mesmo que esse cenário seja negativo, nada impede que iniciativas similares surjam nos próximos anos, conforme o embate Estados Unidos-China se aprofunda.
Essas iniciativas poderiam acontecer porque, à medida que o conflito latente sino-americano se agravar e ambas as partes se verem impelidas a tomar medidas mais contundentes para assegurar aliados e influência, é capaz que os povos do Sul Global comecem a sentir a necessidade de se protegerem. O que quero dizer é que uma agressividade diplomática para que um país tome partido no embate, seja por parte dos Estados Unidos ou da China, pode fazer com que o Terceiro Mundo veja a possibilidade de se tornar dano colateral da rivalidade como concreta. Somando isso à insatisfação dessas populações com o próprio subdesenvolvimento e a vontade de produzir um progresso independente, o tal fôlego que falta para a construção do movimento pode nascer, e junto dele surgiriam líderes políticos que captam esse sentimento. Por isso, mesmo com a atual configuração desfavorecendo um novo Terceiro-Mundismo, ele ainda pode ascender.
Em conclusão, apontei que é necessário que países do Sul Global se unam em torno de um novo movimento Terceiro-Mundista para que tenham chances de não serem tratados como peças descartáveis no tabuleiro da nova Guerra Fria entre China e Estados Unidos. Um projeto como tal deveria procurar construir um modelo de desenvolvimento adequado às condições locais desses países, para que essas populações verdadeiramente tomem as rédeas de seus interesses internacionais e construam uma nova ordem internacional verdadeiramente democrática. Caso contrário, o futuro dos países do Sul Global guardará uma repetição dos golpes, da violência e do desrespeito à soberania que marcaram os anos da Guerra Fria.
Autoria: Pedro Augusto Rolim
Revisão: Beatriz Nassar e Júlia Rodrigues
Imagem de capa: Reprodução bandungspirit.org
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Referências
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