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SEGUNDA NOTA SOBRE LITERATURA



Ler é mais importante do que estudar.

Ziraldo



Nas últimas semanas, um antigo debate¹ sobre literatura permeou as redes sociais, notadamente, o Twitter, em que se discutia o ensino de literatura nas escolas. Aparentemente, a discussão surgiu a partir de um meme em que a pessoa publica uma proposição polêmica dentro de um tema específico. No caso, o youtuber Felipe Neto publicou "Álvares de Azevedo e Machado de Assis NÃO SÃO PARA ADOLESCENTES! E forçar isso gera jovens que acham literatura um saco."


Que é necessário o ensino de literatura — de boa literatura — em nossas escolas, isso ninguém, nem mesmo Felipe Neto, questiona. Não quero discutir aqui sobre qual obra ou qual autor deve ser incluído ou não no currículo escolar. Não tenho competência para tanto. Por outro lado, acredito que o youtuber levanta questões importantes com relação ao modo de ensinar literatura aos nossos alunos.


Eu, por exemplo, não consigo me lembrar de experiências prazerosas nas aulas de literatura que tive no ensino fundamental e médio. Só no cursinho é que realmente me deparei com professores que sabiam como cativar os alunos.


Foi apenas nessa época que tive maior interesse por ler literatura, digamos, mais "difícil". Até então eu lia muito pouco. Até então os livros não conseguiam disputar com todas as distrações com que a internet, os computadores e os celulares nos persuadem. No cursinho, o que me despertou o interesse nos livros era o modo pelo qual os professores apresentavam as obras e suas referências internas, isto é, as outras obras com as quais determinado texto dialoga, seu contexto histórico, e sua influência sobre pessoas e eventos importantes. Não sei por que, mas esse fato em si mesmo, para mim, ainda continua fascinante.


Assim é que por curiosidade fui conhecendo autores para os quais essa operação da referência erudita é imprescindível. Borges, por exemplo, foi um autor que me atingiu como uma tijolada na cabeça: quando li Ficções pela primeira vez fiquei perplexo. Lembro que fiquei obcecado com os contos "As ruínas circulares" e "A biblioteca de babel". Por várias semanas, fiquei lendo esses contos todos os dias. Relatos fantásticos, ensaios falsos, resenhas de livros que não existem, textos absolutamente incríveis para mim que nunca havia entrado em contato com literatura daquele tipo. Segundo a professora Ana Cecília Arias Olmos (USP), tudo o que Borges escreve está permeado por uma espécie de "poética da leitura": todos os textos pressupõem a leitura de outros textos.


Outros autores me encantaram mais pela forma com que escreviam seus textos. O fluxo de consciência em "O som e a fúria" de Faulkner foi uma experiência sensível e muito tocante; os longos parágrafos de Saramago, que inclusive constituem uma espécie particular de fluxo de consciência, me fizeram voltar várias e várias vezes ao escritor português. Nesse mesmo sentido, o Grande Sertão de Guimarães Rosa me surpreendeu, pois nunca havia visto uma linguagem parecida em nossa literatura.


Textos difíceis, como os de Borges e Guimarães Rosa, sempre me faziam pesquisar mais sobre a obra, de modo que a compreensão do que eu lia não ficasse superficial — ou mesmo impossível — dada a complexidade de alguns títulos e passagens. Nesse sentido, comecei a me aproximar de autores como Antonio Candido, George Steiner e José Guilherme Merquior, sobretudo nos seus escritos de crítica literária. Não só entrava em contato com interpretações interessantes das obras, mas também aprendia muito, pois, além de eruditos, esses críticos sempre foram muito didáticos.


Em resumo, o contato com a literatura expandiu meu universo de compreensão de um modo incalculável. Arrogando as palavras de Antonio Candido²: "Quero dizer que as camadas profundas da nossa personalidade podem sofrer um bombardeio poderoso das obras que lemos e que atuam de maneira que não podemos avaliar." A literatura "age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela, — com altos e baixos, luzes e sombras [...] e trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver." Todos, portanto, têm o direito de se apropriar e usufruir da riqueza que a literatura nos proporciona³: todos devem ter acesso às chaves desse patrimônio maravilhoso.


A mais importante delas, creio eu, está nas aulas de literatura com bons professores. Meu destino certamente seria diferente sem as boas aulas que tive com os professores de literatura do cursinho. Fico imaginando o impacto no meu repertório se nas etapas iniciais de ensino houvesse bons professores como aqueles. Saramago disse uma vez que "a criança deve ler livros que estão acima de sua compreensão imediata." Ele, que com 14 anos leu "Paraíso perdido" de Milton - ele, que depois veio a ser laureado com o Nobel de Literatura e se tornar um dos maiores escritores de nossa língua…


É claro, não podemos responsabilizar apenas os professores pela decadência do ensino de literatura no Brasil, mas - certamente - uma didática mais engajada contribuiria para despertar o interesse por leitura e literatura em nossos jovens. Há professores muito bons, é preciso reconhecê-los. O canal no Youtube da Univesp, por exemplo, possui uma playlist de vídeos sobre grandes clássicos da literatura universal⁴. Em vídeos de aproximadamente 30 minutos, os professores convidados fazem excelentes exposições sobre as obras, cujo sucesso é exemplificado nos comentários: as pessoas se sentem instigadas a ler os livros.


Infelizmente, não é isso o que acontece em boa parte das salas de aula em nosso país — precisamos, urgentemente, de bons professores. Lembro do que disse um professor quando estava no cursinho: "se no Brasil os alunos aprendessem a ler Memórias Póstumas de Brás Cubas de verdade, o problema da educação já estaria resolvido!" Há muita verdade no que ele disse.




Revisão: Cedric Antunes

Imagem da capa: Revista Cult



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Referências


¹ Sobre a crise do ensino de literatura no Brasil, a professora Leyla Perrone-Moisés (USP) escreveu, em 2006, um artigo importante para a revista Literatura e Sociedade.


² Conferir "A literatura e a formação do homem" do próprio autor.


³ Conferir "O direito à Literatura", também de Antonio Candido.


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