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SEM MEMÓRIA, NÃO HÁ FUTURO



“Não podíamos nem imaginar que aquele 1º de abril seria um dia importante para a vida do Merlino”. Há 60 anos, em 1964, o Exército brasileiro dava início ao levante que destituiu João Goulart da Presidência da República e levaria o país ao autoritarismo militar por mais de duas décadas. Na fala destacada, Tonico Ferreira relata como a ruptura democrática resultou no assassinato de seu amigo de infância, Luiz Eduardo Merlino, pelos agentes do DOI-Codi/SP. 


A declaração do jornalista ocorreu em meio ao evento “60 anos de 64 nunca mais: O Caso Luiz Eduardo Merlino e o direito à memória e reparação das pessoas atingidas pela violência do Estado” promovido pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas no último dia 16. A cerimônia contou com a participação de Luiza Plastino, doutoranda da FGV Direito SP; Angela Mendes de Almeida, historiadora e companheira de Luiz Eduardo Merlino; Tatiana Merlino, jornalista e sobrinha de Luiz Eduardo Merlino; Carla Osmo, professora de Direito da UNIFESP; Eloísa Machado e Maria Cecília Asperti, professoras da FGV Direito SP; e do jornalista Tonico Ferreira, mencionado previamente. 


Os discursos de abertura, em especial o da historiadora Angela M. de Almeida, foram marcados por duras críticas ao veto do Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva aos atos do governo federal em memória à ruptura institucional de 1964. Em fevereiro, Lula afirmou que não gostaria de remoer o passado em referência aos 60 anos do golpe. Com a fala, o Ministério dos Direitos Humanos suspendeu o plano “60 anos do golpe: sem memória não há futuro” que visava mobilizar toda a nação para a lembrança da data. Ironicamente, o próprio chefe do governo federal atuou para desmantelar essa memória. Nesse sentido, repito a sentença proferida por Tatiana Merlino ao decorrer da cerimônia: “o esquecimento do extermínio faz parte do extermínio”.  


Além disso, o silenciamento sobre os atos da ditadura militar não se limita ao Poder Executivo. Sob esse contexto, Carla Osmo, apontou para um Judiciário que persegue um caminho semelhante. Osmo caracterizou o Judiciário como “perpetuador da violência e da tortura”, concedendo como exemplo o julgamento do Caso Merlino no Tribunal de Justiça do Estado São Paulo. De acordo com ela, a decisão da corte – de que o possível crime no Caso Merlino teria prescrito – se opôs à Súmula 647 do STJ. Isto é, segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, “as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de tortura, ocorridos durante o Regime Militar de exceção, são imprescritíveis”. Nota-se, portanto, um Judiciário que, analogamente aos demais Poderes, não enfrenta as máculas deixadas pelo violento passado brasileiro. 


Omitindo-se de seus papéis, os Poderes contemporâneos não aplicam seus remédios contra a doença da violência estatal que se instalou no corpo da sociedade desde a infestação colonial. Não são escassos os casos na História de nosso país dessa herança maldita: o genocídio indígena, a escravização negra, o assassinato de opositores da Coroa – como Filipe dos Santos, enforcado pelos seus algozes e esquartejado por cavalos – durante a colônia; o massacre de Canudos e a higienização do Rio de Janeiro da Primeira República; a perseguição e prisão dos opositores da ditadura de Getúlio Vargas; o Massacre dos Candangos na construção de Brasília durante a República Populista; a tortura de crianças, jovens e adultos na ditadura militar; e a Guerra às Drogas – ou aos corpos negros e periféricos, se preferir – sob as armas dos executores da polícia militar na República contemporânea.  


Passados 524 anos da invasão portuguesa, 202 anos da independência, 136 anos da abolição da escravização, 135 anos do golpe da República, 94 anos do golpe que levou Getúlio Vargas ao poder, 79 anos do golpe que removeu Vargas do poder, 60 anos do golpe que alçou o Exército ao poder e 35 anos da retomada da democracia no País, devemos nos questionar: esse é o Brasil que desejamos seguir? É a herança da violência estatal que queremos perpetuar aos nossos filhos e netos? Até quando permitiremos que a enfermidade prossiga? Nunca houve e nunca haverá momento certo de agir. Nunca houve e nunca haverá governabilidade e consenso suficiente para que esse fantasma seja enfrentado. Mas vale lembrar que o tempo não é aliado dos vulneráveis. 


Enquanto o senso comum não conceder o peso adequado ao nosso passado, permaneceremos no erro. E assim, retomo a professora Eloísa Machado que, durante o evento, afirmou que o corpo de Merlino foi “vilipendiado, assim como a verdade desde então”. Tal situação não se limita a esse caso, não são poucas as menções de que o contato do colonizador com os nativos foi “pacífico”. Talvez, a morte abrupta de 2,3 milhões de indígenas em 150 anos de colonização tenha sido mera causalidade. Também se ouve que “se a polícia matou, coisa boa não fazia”. Pergunto-me o que de criminoso uma criança de sete anos fazia ao trilhar seu caminho para a casa de sua babá em Paraisópolis; ou ainda o que de revolucionário praticavam crianças de dois e cinco anos para que os agentes da ditadura militar justificassem as suas torturas em conjunto com a de sua mãe, como ocorrido no caso de Amelinha Teles.  


O Estado brasileiro tem cessado as histórias e relações de suas vítimas fatais. Pessoas, como Luiz Eduardo Merlino, têm tido seu futuro interrompido pelo ente que deveria o proteger e assegurar a continuidade de suas vidas. “O que seria Eduardo hoje? Essa pergunta sempre volta a mim há mais de 50 anos. Onde estaria o Eduardo se ele tivesse sobrevivido ao DOI-Codi?”, questionou Tonico Ferreira ao refletir sobre o possível futuro de seu amigo.  


Por fim, a mudança do quadro descrito deve partir da sociedade civil. A falta de ação dos Poderes não deve permanecer determinante ao futuro da nação. Exemplo a ser seguido, a jornalista Tatiana Merlino destacou que “nenhuma omissão do Judiciário ou do Executivo, nenhuma submissão do Executivo ou troca pela governabilidade vai nos impedir de seguir”. Nesse sentido, para “seguir”, faz-se importante reconhecermos que a “verdade sufocada” é a de que, passados mais de uma década da Comissão da Verdade, o Estado brasileiro, que se intitula como “Democrático e de Direito”, continua acobertando os crimes cometidos pelos golpistas e torturadores da ditadura militar e de muitos outros agentes da violência estatal. Somente com tal clareza, poderemos dar um passo para trás e repensar em como lidamos com a memória do nosso passado, pois sem ela não há futuro. Sem memória, não há futuro diferente do passado.  


Autoria: Erick Martins Rosario 

Revisão: Enrico Recco e Ana Carolina Clauss

Imagem de capa: Estadão Conteúdo

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Referências:

Dia a dia do golpe: como o Brasil virou uma ditadura militar. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/especial/2024/04/01/historia-do-golpe-de-1964>. Acesso em: 20 de abr. de 2024. 


60 anos de 64 nunca mais: O caso Luiz Eduardo Merlino e o direito à memória e reparação das pessoas atingidas pela violência do Estado | FGV DIREITO SP. Disponível em: <https://direitosp.fgv.br/eventos/60-anos-64-nunca-mais-caso-luiz-eduardo-merlino-direito-memoria-reparacao-pessoas-atingidas-pela>. Acesso em: 20 abr. 2024. 


Plano vetado do governo Lula para 60 anos do golpe previa vídeo do Porta dos Fundos e memorial. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/04/plano-vetado-do-governo-lula-para-60-anos-do-golpe-previa-video-do-porta-dos-fundos-e-memorial.shtml>. Acesso em: 22 abr. 2024. 


Lula é criticado por entidades de direitos humanos após dizer que não quer ficar “remoendo“ golpe militar de 64 | Blogs CNN. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/jussara-soares/politica/lula-e-criticado-por-entidades-de-direitos-humanos-apos-dizer-que-nao-quer-ficar-remoendo-golpe-militar-de-64/>. Acesso em: 22 abr. 2024. 


STJ retoma julgamento que pode restabelecer condenação de Ustra e indenização a família de Luiz Eduardo Merlino. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2023/11/07/stj-retoma-julgamento-que-pode-restabelecer-condenacao-de-ustra-e-indenizacao-a-familia-de-luiz-eduardo-merlino>. Acesso em: 22 abr. 2024. 


Primeira Seção aprova duas novas súmulas. Disponível em: < https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/12032021-Primeira-Secao-aprova-duas-novas-sumulas-.aspx>. Acesso em: 23 abr. 2024. 


Tiroteio em Paraisópolis deixa criança de 7 anos ferida na Zona Sul de SP. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/video/tiroteio-em-paraisopolis-deixa-crianca-de-7-anos-ferida-na-zona-sul-de-sp-12525518.ghtml>. Acesso em: 23 abr. 2024. 


NOGUEIRA, A. Torturada na frente dos próprios filhos, Amelinha Telles deu fim a impunidade de Carlos Brilhante Ustra. Disponível em: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-quem-foi-amelinha-telles-ditadura-militar.phtml>. Acesso em: 23 abr. 2024. 


SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloisa Maria Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. 


Genocídio indígena: entenda os riscos e preocupações que a população nativa do Brasil enfrenta. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/humanista/2021/09/24/genocidio-indigena-entenda-os-riscos-e-preocupacoes-que-a-populacao-nativa-do-brasil-enfrenta/>.  Acesso em: 24 abr. 2024. 


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O passado é documentado, gravado e fotografado para não repetirmos os mesmos erros e passarmos aos próximos que há caminhos para um futuro melhor, sem memória não há futuro! Excelente matéria, parabéns!

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