“O que está acontecendo na Faixa de Gaza não é uma guerra, é um genocídio. Não é uma guerra de soldados contra soldados. É uma ‘guerra’ de um exército altamente preparado contra mulheres e crianças. O que está acontecendo em Gaza com o povo palestino jamais aconteceu em nenhum outro momento da história. Na verdade, aconteceu: quando Hitler decidiu matar os judeus”. Essa fala foi proferida pelo presidente Lula em fevereiro deste ano, quando esteve na Etiópia, para participar da Cúpula da União Africana. Em resposta, o presidente brasileiro foi declarado persona non grata por Israel Katz, Ministro das Relações Exteriores do Estado de Israel. Intensificando uma crise diplomática, Mauro Vieira, Ministro das Relações Exteriores brasileiro, chamou o embaixador israelense no Brasil, Daniel Zonshine, para uma conversa ao mesmo tempo em que Lula chamou o embaixador brasileiro em Israel, Frederico Meyer, de volta ao país, algo que pode significar um prelúdio para a interrupção ou deterioração das relações diplomáticas.
É fato que, para não chamar de crise, existe uma forte tensão diplomática entre Brasil e Israel no momento. Não que seja injustificável – afinal, o presidente Lula sempre se colocou contra a operação militar israelense em Gaza. Apesar disto, o estopim para tal conflito diplomático foi a forte declaração do presidente brasileiro. Na mídia brasileira e na israelense, Lula passou a ser visto até mesmo como ‘antissemita’ por sua fala. Exposto os ocorridos, deve ser colocado aqui: se o governo israelense não deseja comparações com as políticas nazistas, portanto deve encerrar as políticas similares implantadas nos territórios palestinos ilegalmente ocupados.
O presidente Lula não foi o primeiro a levantar essa questão. Em agosto de 2023, o ex-general israelense Amiram Levin, que inclusive trabalhou como vice-diretor do Mossad (agência de inteligência nacional de Israel), declarou que existia um “absoluto apartheid” de Israel contra os palestinos e que “por mais que doesse, era melhor encarar as similaridades com a Alemanha nazista do que ignorá-las”. Avraham Burg, ex-político israelense, escreveu em seu livro “Derrotando Hitler” que o governo de Israel, ao longo dos anos, tornou a sociedade israelense paranoica ao fazer com que acreditem que o mundo está contra ela e, segundo o autor, isso tem se tornado a principal identidade de Israel. Isso faz com que o povo, assim como o Estado israelense, vivam sob uma crença no poder (isto é, ser mais poderoso, estar acima dos demais, em sentidos bélicos, políticos, sociais, dentre outros) que fica enraizada à formação da identidade de Israel, semelhante à Alemanha nazista, conforme argumenta Burg.
Ainda falando de Avraham Burg, em 2003, o ex-político já havia escrito para o jornal The Guardian um artigo, intitulado The End of Zionism (O Fim do Sionismo), em que diz que o Estado de Israel havia abandonado os princípios do judaísmo, passando a sobreviver da opressão, racismo, injustiça e corrupção. E, como último exemplo, há também o político e professor israelense Ofer Cassif, que em 2015 chamou a ex-Ministra da Justiça de Israel, Ayelet Shaked, de “escória neo-nazista”, após ela dar suporte financeiro a conflitos na África. Em 2017, Cassif afirmou que “aqueles que negam a ver as similaridades entre o governo israelense e a Alemanha nazista possuem ‘problemas’” e que “leis que permitem judeus se apropriarem de terras palestinas são como a autorização que os arianos obtiveram em 1930 de expulsar judeus de suas casas”. E, em 2024, o professor quase perdeu seu mandato como parlamentar após apoiar a denúncia sul-africana de genocídio contra Israel na Corte Internacional de Justiça.
Em suma, existem até mesmo pessoas nativas de Israel que já fizeram a mesma comparação de Lula. A comparação é possível porque, de fato, existem similaridades. Contudo, a reação da mídia brasileira e da direita mundial tornam a fala do presidente mais grave do que a morte de mais de 30 mil pessoas no massacre que está ocorrendo em Gaza, dos quais quase 70% são mulheres e crianças. O Estado de Israel afirma estar lutando contra o Hamas, mas como disse Lula, quem está morrendo não são militares, mas sim pessoas inocentes: Mulheres e crianças. No dia 29 de fevereiro, o exército de Israel abriu fogo contra uma multidão de palestinos que recolhiam ajuda humanitária. Pelo menos 100 pessoas morreram. Não eram militares ou membros do Hamas. Eram pessoas que estavam, literalmente, morrendo de fome. 15 pessoas estão morrendo por hora em Gaza. Ao menos 1% da população total de Gaza já morreu com os ataques israelenses – proporcionalmente falando, seria como se cerca de 2 milhões de brasileiros morressem em poucos meses. Se isto não é genocídio aos olhos da mídia brasileira e da direita global pergunto, portanto, o que seria um “genocídio”?
Alguns talvez respondam que não pode haver comparação entre as políticas nazistas e o massacre do povo palestino por ter “morrido mais gente” durante o holocausto. Se este fosse um argumento válido, seria possível dizer que o genocídio que o Império Britânico cometeu contra os indianos não pode ser comparado as políticas nazistas, afinal o colonialismo britânico matou mais de 100 milhões de pessoas na Índia. Contudo, este não é um argumento válido. Explicando brevemente sobre o que é genocídio: segundo a Convenção de 1948 para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, em seu segundo artigo, afirma que genocídio significa “destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, citando o assassinato, danos físicos ou mentais, imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos, transferência forçada de crianças de um grupo para outro e inflicção deliberada a um grupo condições de vida calculadas para provocar sua destruição física total ou parcial. Exposto isso, é fácil de se entender que não existe possibilidade alguma de fazer um “ranking” de genocídios. Não há como afirmar que um determinado genocídio é “leve” e outro é “pesado”. Além de imoral, é desrespeitoso com as vítimas e favorece, inclusive, um favorecimento de um determinado grupo acima de outro, seja por razões políticas, étnicas, religiosas ou semelhantes, com um fraco disfarce baseado em uma falácia de que “morreram mais pessoas”. Da mesma forma que os judeus foram vítimas de genocídio durante a Alemanha nazista, os indianos também foram pelo Império Britânico, assim como os hererós e namaquas foram também pela Alemanha no início do século XX, assim como hoje os palestinos estão sofrendo por Israel. Genocídio é genocídio. Não há “leve” ou “pesado”. E todos os grupos que sofreram com tal crime possuem uma semelhança em comum: foram reprimidos por um agente causador muito mais poderoso que eles, que matou indiscriminadamente em prol de algum favorecimento pessoal.
Há também quem responda que as políticas nazistas estavam impregnadas já no direito alemão. É verdade. Uma das primeiras Leis de Nuremberg considerava que a cidadania era um direito exclusivo de pessoas com “sangue alemão ou semelhante”. O resto não teria direitos relativos à cidadania. Da mesma forma que logo o artigo 1, c, da chamada Lei do Estado-Nação Judaico afirma que “a realização do direito à autodeterminação nacional no Estado de Israel é exclusiva do povo judeu”. Ou seja, palestinos, por não serem parte do “povo judeu”, sequer possuem direito de autodeterminação nacional. O supremacismo israelense também está impregnado em suas leis, assim como estava o supremacismo alemão.
Terão talvez alguns que digam que Israel está apenas se defendendo. Porém, é necessário compreender que nada disso começou no dia 7 de outubro, no ataque do Hamas. Tudo começou em 1948, com a Nakba, agravou-se em 1967, com a Naksa e, desde então, tem piorado. Além disso, é bom lembrar que a ocupação do Estado israelense dos territórios palestinos é ilegal e assim é reconhecida internacionalmente. E conforme afirma a Resolução 3.070 de 1973 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em seu segundo artigo, existe “legitimidade da luta dos povos pela libertação do domínio colonial e estrangeiro, por todos os meios disponíveis, incluindo a luta armada”. Além desse artigo, há também o artigo sexto, que condena “todos os governos que não reconhecem o direito à autodeterminação e independência dos povos, especialmente às pessoas africanas que vivem sob regime colonial e o povo palestino”. Ou seja, a própria ONU não reconhece que existe um direito de “autodefesa” de Israel, dado que o povo palestino luta por sua liberdade e autodeterminação do domínio israelense. Portanto, o argumento de que Israel estaria respondendo aos ataques de 7 de outubro não é válido, dado que estes ataques, por si só, são uma resposta ao histórico domínio de Israel sobre as terras palestinas.
E com certeza haverão aqueles que dirão que a comparação é uma forma de antissemitismo. Falar isso é relativizar o que de fato é antissemitismo. Isso porque em sua fala, o presidente Lula em nenhum momento faz uma acusação ou crítica ao povo judeu, mas sim ao Estado de Israel. Afirmar que uma determinada crítica ao Estado é, necessariamente, criticar um povo é um erro grotesco que apenas transmite ignorância e relativiza os prejuízos, sejam eles quais forem, que tal Estado possa estar causando. Portanto, quando Lula diz que o governo de Israel está cometendo genocídio e que suas ações tem sido semelhantes às políticas nazistas, o presidente critica não o povo judeu, que nada tem a ver com a eugenia de Netanyahu e seus companheiros, mas sim aqueles que estão de fato promovendo um massacre. E, não à toa, são esses que, como meio de defesa, utilizam como primeira carta a acusação de antissemitismo, apropriando-se do real sofrimento de um povo em prol de continuarem um massacre contra outro povo que consideram “inferiores”.
Ou seja, afirmar que existem similaridades entre as políticas do governo israelense e da Alemanha nazista não é o absurdo que a mídia brasileira e a direita global fazem parecer. As similaridades existem. Estão ali, qualquer um que fizer uma boa pesquisa é capaz de percebê-las. E novamente vale reiterar a pergunta: se o que ocorre hoje em Gaza não é um genocídio, o que é, afinal, um “genocídio”? E por fim, deixo mais uma reflexão: por que a frase de Lula repercute mais do que os mais de 30 mil palestinos mortos?
Autoria: Rauhã Capitão
Revisão: Enrico Romariz Recco e Artur Santili
Imagem de Capa: gov.br
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Referências:
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Até onde eu sei, o agredido deveria ser aquele que considera a fala do agressor preconceituosa ou não. Pelo jeito, ao se tratar de judeus, quem define o que é agressão ou não é o próprio agressor. Mas já estamos acostumados com isso. A própria ONU só reconheceu a existência dos diversos estupros contra mulheres israelenses quase 5 meses após um dos maiores atentados terroristas da História. Afinal, quando se trata de Israel, sempre o agredido tem que provar, com unhas e dentes, as barbáries cometidas pelo Hamas. Já no caso da organização TERRORISTA Hamas, que alguns tem a audácia de classificar como grupo político, somos obrigados a acreditar nos dados de um governo ditatorial e terrorista, que afirma …