“Tem uma história sobre um peixe. Esse peixe foi até um ancião e disse: ‘tô procurando um negócio. Um tal oceano’. ‘Oceano?’, falou o ancião. ‘Você está no oceano’. ‘Isso?’, respondeu o peixe, ‘isso aqui é água. O que eu quero é o oceano’”. Essa pequena história é contada pela personagem Dorothea Williams em um dos filmes que eu facilmente colocaria como um dos meus favoritos: Soul. Trata-se de um filme que carrega consigo uma grande complexidade e uma bela mensagem que entrega uma reflexão profunda, porém também otimista. E é por isso que é um filme que, certamente, vale a pena escrever sobre.
Lançado em 2020, com direção de Pete Docter (que também dirigiu Monstros S.A, Divertidamente), Soul conta a história do professor de música e amante de jazz Joe Gardner, que, após sua primeira audição bem sucedida, sofre um acidente e falece. Para voltar à vida, o professor tem que ajudar uma pequena alma, 22, a encontrar sua vontade e sua motivação para viver. Para poder abordar mais camadas do longa, esse texto terá sua atenção dividida em dois pontos principais: o diretor Pete Docter e o filme em si.
A começar pelo cineasta, além de Soul, Docter possui outros três longa-metragens: Monstros S.A, Up - Altas Aventuras e Divertidamente. Os quatro filmes possuem fatores em comum que podem ser encontrados até mesmo nos curtas antecessores à entrada do diretor no estúdio, mas o mais destacável é o diálogo da inocência e da ingenuidade com a experiência, a complexidade e o fator emocional que prende os espectadores mais velhos à história. Em seu curta mais famoso, Next Door, pelo qual ganhou um prêmio estudantil na década de 1990, tal elemento já podia ser notado nos dois personagens que participam da pequena história: um homem adulto e emburrado e uma criança alegre, hiperativa e criativa. Ao final do curta, o homem se deixa levar pela paixão da criança em suas brincadeiras e também passa a participar delas. Voltando a atenção aos longas metragens, em Monstros S.A, esse diálogo está na interação da personagem Boo, uma criança inocente e que nada compreende do mundo, com os personagens Sullivan e Mike, dois adultos e empregados de uma empresa de energia que devem lidar com aquilo que mais causa pavor em sua sociedade. A relação entre esses três personagens não apenas expõe um vínculo paternal (formado por Sullivan e Boo) ou a importância da amizade e da lealdade (caso da relação entre Mike e Sullivan), como também esconde um subtexto satírico da representação do mundo corporativo: a relação de concorrência entre os trabalhadores que por vezes cria inimizades e rancores, as decisões questionáveis tomadas pela elite das corporações, os patrões inflexíveis que escondem interesses lucrativos egocêntricos por trás de sorrisos “simpáticos” e a falta de conhecimento da sociedade sobre os recursos colhidos por essas corporações, permitindo que existam manipulações da realidade que buscam atender os interesses da elite corporativista — no caso do filme, o medo dos monstros pelas crianças era incentivado pela empresa como forma de esconder as escolhas eticamente questionáveis do dono da empresa em sua ambição de gerar energia e lucrar. O brilho de Monstros S.A está no diálogo entre esse subtexto complexo e a relação fofinha de seus três principais personagens.
Já em Up - Altas Aventuras esse diálogo é mais facilmente identificável, envolvendo a experiência, a mágoa e o luto de Carl Fredricksen, um senhor de quase 80 anos que se sente vazio após a perda da esposa, e a energia, a imaturidade e a animação de Russell, um garoto de 8 anos. A aventura pela qual ambos passam juntos acaba por possuir duas óticas: a melancólica de Carl e a radiante e jovial de Russell. Para um, o fim de uma vida, para o outro, o começo de uma aventura. São opostos que, ao serem colocados para contrastar e dialogar em tela, funcionam não somente para animar o público infantil como para entregar grandes lições ao público mais velho, englobando temas como luto, sonhos e até mesmo a valorização das pequenas coisas da vida. Em Divertidamente, o diálogo se encontra na aparente simplicidade das emoções — a Felicidade é feliz, a Tristeza é triste, o Raiva é raivoso, o Medo é medroso e a Nojinho é enojada— que, pouco em pouco, ao longo filme, vai se desfazendo. A Felicidade pode chorar, a Tristeza pode compreender e apoiar, o Raiva pode defender, o Medo pode enxergar os perigos e a Nojinho pode superar desagrados. O que faz a protagonista Riley ser a Riley não é a unilateralidade das emoções, mas justamente o fato das emoções serem complexas e necessárias e, por isso, serem capazes de moldar a personalidade da personagem e guiá-la em seu caminho.
Dado o histórico do diretor e exposta sua maneira de contar histórias, é possível, enfim, passar ao segundo ponto e falar de Soul com maior respaldo. Uma alma que não sente vontade nem motivação de viver, a 22, que passa a ter como tutor alguém que, mesmo sem nenhum grande feito, quer desesperadamente voltar a viver. Comparando-os: Joe viveu e, em seu tempo de vida, não teve realizações marcantes, apenas sonhos ambiciosos e uma busca incessável por um propósito. Já 22 nunca viveu, pois nunca conseguiu enxergar porque ter uma vida valia a pena. Os dois personagens são opostos um ao outro, porém as “linhas paralelas” de ambos se chocam em um ponto: nem um nem outro compreende o que é viver. Ao final do longa, entendem que a vida não precisa de um sentido ou um propósito, mas sim apenas necessita ser vivida. 22 não vê a valorização da vida quando lhe são apresentadas possíveis talentos e/ou metas, mas sim ao poder comer uma pizza sentindo seu gosto e cheiro, ao ouvir os barulhos cotidianos, ao lidar com diferentes pessoas e compartilhar experiências pessoais, ao tão somente cair de uma folha em sua mão. Enquanto isso, após voltar a vida, Joe ouve a curiosa história do peixe que buscava o oceano, contada por alguém que tanto admirava: Dorothea Williams. Na metáfora da fábula de Dorothea, Joe é o peixe e sua vida é o oceano. Joe já estava vivendo e já tinha seus bons momentos, mas sua obsessão por um propósito não lhe permitia enxergar isto, ou seja, acreditava estar na “água” mesmo já estando no “oceano”.
Ainda que com suas diferenças, não é exagero afirmar que Soul entrega uma filosofia epicurista. Idealizada por Epicuro em torno do século IV a.C, a filosofia pode ser simplificada ao afirmar que o principal objetivo da vida é a busca pela felicidade e pelo prazer, os quais seriam alcançados por evitar a dor, prezar pela moderação e pelo afastamento dos exageros e enaltecimento dos prazeres duradouros e simples em razão da satisfação imediata e complexa. Relacionando ao filme, a valorização dos prazeres simples, como poder comer uma pizza, e o afastamento dos excessos, como a obsessão inicial de Joe por um propósito para sua vida no meio da música, são apenas alguns dos aspectos que se alinham entre a animação e o epicurismo. É possível dizer, ainda, que, na cena final do longa, Joe alcança a sonhada ataraxia, ao menos em sua ótica epicurista.
Uma rápida explicação do que é este termo: a palavra vem do grego e pode ser assimilada como imperturbabilidade, ou seja, indica a ausência de perturbações e uma paz interna caracterizada pela serenidade e tranquilidade do espírito. Entretanto, diferentes correntes filosóficas possuíam divergentes interpretações de como alcançar tal estado — no epicurismo, existe a diferenciação entre prazeres: mentais, que referem-se ao emocional; físicos, que abordam o corporal; cinéticos, que são aqueles prazeres que surgem após uma determinada ação ou mudança (como comer após sentir fome) e os catastemáticos, que resultam da ausência de dor ou angústia, como a serenidade da pessoa que sabe que não passará fome. Os prazeres mentais e físicos podem ser tanto cinéticos quanto catastemáticos, contudo Epicuro acreditava que os prazeres cinéticos eram inferiores aos catastemáticos, pois não há prazer maior que a remoção da dor, ou seja, para o epicurismo, a ataraxia é atingida quando os prazeres catastemáticos predominam na mente, pois dessa forma não haveria quaisquer preocupações capazes de abalar a tranquilidade do espírito.
Ao final de Soul, Joe recebe mais uma chance para viver. Nesse momento, lhe é perguntado “como passará o tempo de sua vida”, ao que o protagonista responde:
“Não tenho certeza, mas sei que viverei cada minuto”, isto é, as dores que atormentaram o personagem por todo o longa já não existiam mais. O professor superou suas angústias e preocupações e percebeu, enfim, que para ser feliz ele só precisava viver, sem necessariamente ter grandes feitos.
Mas não é somente o epicurismo que apresenta uma filosofia com a qual pode ser traçado um paralelo ao filme. No livro The Meaning of Life, escrito pelo teórico Alan Watts, há um trecho que vale ser citado:
“A realização conclui sua tarefa quando a própria vida de alguém se torna uma expressão de gratidão, e isso é a maior felicidade, pois o significado da felicidade consiste em três elementos — a liberdade, a gratidão e a sensação de deslumbramento. Esses três elementos podem estar presentes nas vidas mais comuns; o homem livre não é necessariamente um mágico, um vidente ou um "místico" absorvido em estados inefáveis de consciência. Muitas pessoas cometem o erro de buscar nos reinos suprassensíveis a felicidade que não conseguem encontrar aqui na terra, procurando por uma ‘consciência cósmica’ oculta para libertá-las das experiências tediosas do dia a dia”.
Simplificando: Watts afirma que a “realização”, a qual refere-se como sendo a aceitação da vida como ela é, é o que trará felicidade para as pessoas, pois virá acompanhada da liberdade, da gratidão e da sensação de deslumbramento, que é a capacidade de reconhecer e admirar a beleza e a complexidade daquilo à nossa volta. E, por fim, fala também que a busca pelo transcendente, que chama de “cosmic consciousness”, ou “consciência cósmica” em tradução livre, como meio de escapismo do dia a dia é um erro. Não é difícil relacionar tal filosofia a Soul: a crença da existência de um propósito destinado a cada um de Joe que o fez não enxergar a beleza da própria vida está em total acordo com a “consciência cósmica” de Watts, assim como a mensagem do filme de que a felicidade e o sentido da vida é nada mais que viver assemelha-se ao que o filósofo chama de “sensação de deslumbramento”, no texto original chamado de “sense of wonder”.
Esses são apenas dois exemplos de muitas relações que poderiam ser traçadas. Isso porque o cerne de Soul, por si só, já é um tanto quanto complexo. São muitos teóricos, muitas correntes filosóficas e até estilos de vidas e religiões que tentam responder o questionamento que a animação entrega. Alguns em maiores concordâncias do que outros — como, por exemplo, a visão otimista da vida em Soul vai na contramão da visão pessimista de Schopenhauer. É um filme com uma grande complexidade assim como um grande peso emocional, mas que em momento algum perde seu apelo ao público infantil. Afinal, apesar de sua lição mais complexa que a grande maioria dos longas voltados às crianças, a imersão destas ainda é levada em conta.
Para que consiga dialogar com o público infantil, a animação adota duas estratégias: a primeira, e mais básica, é mesclar a complexidade da narrativa com aquilo que as crianças primeiro procuram ao assistir um filme: a diversão. Para manter a diversão constante, existem dois pilares principais: o humor e o ar mais leve que a animação carrega, assim como a utilização das cores. São, em geral, pilares extremamente comuns para filmes infantis. Usando Divertidamente como um primeiro exemplo: ao mesmo tempo que as cenas usam e abusam de cores na maior parte do tempo, sem ter medo de colocá-las como vibrantes, o tema da narrativa, a complexidade e a importância das emoções, é misturado com um ar leve sustentado pelas personalidades dos personagens e suas interações e decisões e, também, por alívios cômicos constantes, como a cabeça do Raiva que sempre pega fogo quando fica irritado ou as lágrimas de doce do personagem Bing Bong. Em Soul, a estratégia é a mesma. As almas são retratadas de cor ciã, também sendo chamativas e vibrantes. Os cenários, especialmente quando em ambiente imaterial, são coloridos e vivos, de maneira que prende a atenção do público infantil. Da mesma forma, o ar leve da trama é constante, amenizando a dificuldade de imersão que a complexa reflexão poderia gerar. Por exemplo, quando em determinada hora do filme Joe e 22 caem na Terra e o professor acaba assumindo o controle de um gato enquanto é obrigado a ver a inexperiente e difícil alma 22, que jamais vivera antes, assumir seu corpo. É uma situação que gera diversas situações cômicas que conseguem prender a atenção do público mais novo.
Já a segunda estratégia adotada é possibilitar um meio de identificação entre as crianças e o filme através dos personagens ali presentes. Se, por um lado, é muito difícil para os pequenos se identificarem com o professor frustrado com a vida por não haver, justamente, vivência e compreensão suficientes para entenderem com precisão o que é o sentimento de vazio de Joe, por outro lado é muito fácil que identifiquem-se com a 22. É verdade que a personagem também possui suas próprias camadas, contudo sua construção e desenvolvimento são feitos já visando que o público mais novo consiga se envolver com a sua jornada. É uma personagem que se comporta exatamente como uma criança: faz birra quando fica brava, ri de coisas bobas, incomoda aquele com quem divide a tela e, principalmente, é alguém inexperiente com muito pouco conhecimento do mundo e da vida. Ao mesmo tempo que experimenta uma grande alegria de estar descobrindo coisas novas, também possui medo e insegurança por ser tudo novo. É uma personagem feita para que o público infantil possa se identificar com suas alegrias tanto quanto com suas preocupações e dramas. E é ao abrir esse canal de sintonia entre a personagem e os pequenos que Soul consegue passar a eles sua mensagem, ainda que não na mesma intensidade e força que para o público mais velho.
Além disso tudo, o filme ainda mostra um amadurecimento de Pete Docter. O diretor já havia flertado com o uso dessa mesma filosofia no filme Up, apesar de forma mais singela e sutil. Isso pode ser percebido no aprendizado que o protagonista, Carl, recebe ao final do filme: ele não realizou a aventura que por toda vida sonhou com sua esposa, Ellie, a tempo (afinal, ela faleceu antes que pudessem tê-lo feito), porém é ao encontrar um antigo diário dela em que, ao final dele, vê um último recado deixado por ela: “Obrigada pela aventura! Agora vá ter uma nova”. Carl e Ellie não viveram a aventura que sonhavam desde crianças, mas viveram uma vida juntos com seus altos e baixos e, ao fim dela, Ellie estava feliz, pois sua vida e as pequenas coisas que pôde aproveitar com Carl foram a aventura que lhe trouxe felicidade. É a mesma filosofia de Soul, porém incrementada na história de forma mais sutil e singela, afinal, enquanto Up disfarça a ideia em meio a tantos outros temas, de forma que a maior parte da atenção vá para a superação do luto e a recuperação de sua vontade de sonhar, o longa de Joe Gardner abraça tal filosofia com força e faz um filme em que ela será o principal a ser contado.
Concluindo esse longo texto (que não contém tudo que poderia conter), pode-se afirmar que Soul é uma experiência. É uma reflexão, mas sem perder as cores vibrantes que transformam o filme em uma obra de arte. É um jeito de enxergar a vida enquanto ri, se diverte e, ao final, se emociona. E é ser positivo e grato a tudo que apenas a oportunidade de viver nos entrega, pois são as pequenas coisas que fazem com que possamos nos sentir vivos.
Autoria: Rauhã Capitão
Revisão: Anna Cecília Serrano e Laura Freitas
Imagem de capa: Pinterest
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