[...] não posso ser todas as pessoas que quero e viver todas as vidas que quero. Não posso desenvolver em mim todas as aptidões que quero. E por que eu quero? Quero viver e sentir as nuances, os tons e as variações das experiências físicas e mentais possíveis de minha existência. E sou terrivelmente limitada. [...] Talvez por isso queira ser todos – assim, ninguém pode me culpar por eu ser eu. - Sylvia Plath
Me afastei de certos amigos, de certas atividades, de certos lugares. Me sinto sumida, distante. Como se fosse um pouco menos pertencente, como se eu não fosse eu mesma. Mas afinal, quem sou eu? Em um ano fui mil eus e, em algum ponto, cheguei a amar e odiar todos eles. Agora sinto que não sou eu algum, se é que um dia fui alguém. Estou nessa transição, que vira e mexe acontece, de não saber. Tenho uma percepção muito embaçada de mim: sou um quadro abstrato no qual os traços mudam o tempo inteiro, mas nunca chegam a tomar forma alguma. Na esperança de alguma resposta, criei uma obsessão em saber a percepção dos outros. Coleto até seus mais sutis apontamentos como peças de um quebra-cabeça o qual viro noites tentando montar, sem sucesso.
Sinto que, enquanto brincava de viver, perdi as peças mais importantes. Às vezes queria nascer de novo, às vezes queria não ser. Queria viver mil e uma vidas e ser um novo eu em cada uma delas. Queria ler todos os livros, assistir a todos os filmes, viajar para todos os lugares, fazer todos os cursos, praticar todos os hobbies. Ao mesmo tempo, sinto que não tenho uma única coisa que seja minha. Talvez eu precise de uma nova obsessão em algum assunto ou atividade. Preciso de algo mundano que eu domine, que me passe a percepção que sei muito de algo quando não sei de coisa alguma.
Nessa tentativa ingênua de saber algo, me apego a concepções binárias tentando ver onde me encaixo, mas quase nada sobre mim – ou sobre qualquer pessoa – é binário, muito menos o amor que carrego comigo. Seja sapo ou rato, gato preto ou golden retriever, cool ou girlypop (essas duas menos conhecidas porque são teorizadas por mim mesma), vivo tentando dividir o mundo em categorias opostas, mas nenhum lado é o meu. Escutei na terapia que a dicotomia é algo a que a gente se apega na infância, quando ainda estamos tentando entender como o mundo funciona. Acho que eu nunca descobri nada sobre o funcionamento do mundo e muito menos sobre o meu próprio funcionamento e, a essa altura, morro de medo de descobrir que sou exatamente isso: nada.
Prefiro saber que sou algo exato, raso: um estereótipo. Não quero mergulhar no fundo da minha alma, não quero tentar desvendar cada pedacinho, porque tudo agora me leva a acreditar que não sou coisa alguma. Tenho sol em leão, lua em capricórnio, ascendente em libra e vênus em gêmeos, e passo grande parte do tempo esperando que os astros me digam o que sou e o que devo fazer. Até agora não obtive muito retorno, tampouco encontrei respostas em outras crenças. Acho que todas elas ditam suas próprias verdades sobre o mundo e seus mistérios, mas não existe uma única verdade no ser. Eu, que sempre me considerei uma grande obviedade, passei a acreditar que sou o grande mistério da minha vida. Talvez porque anseie por uma resposta mais complexa do que a simples constatação que sou isso, sem mais nem menos.
Talvez meu eu de agora seja aquele que não sabe de nada e não é tão bom assim em nada. Talvez eu tenha que me desapegar dessa ideia ilusória de que um dia fui um pouco genial. Genial ou não, preciso sentir que sou algo, que ocupo a forma corpórea, que não sou apenas um conceito vago, um borrão. Se me vir cruzando a Paulista, subindo no ônibus da Brigadeiro, descendo a Itapeva, percorrendo a rua Rocha, indo em direção à Plínio, em qualquer esquina, por favor, pare e me diga quem sou. Ainda não sei quem sou para mim, mas, quem sabe, para você, eu seja alguma coisa. E quem sabe essa seja a peça que falta, ou não. Até encontrá-la, sigo virando noites, o que me leva a ter certeza de uma única coisa sobre mim: não sou muito boa em montar quebra-cabeças.
Esse é um texto cujo título é apenas isso, título, sem mais nem menos, como suspeito que sou eu mesma. Também não entendo seu propósito, não consigo atribuir-lhe padrões estilísticos claros e muito menos alguma identidade própria. Mas ele é. E eu sou. Dispensamos complemento. A um leitor desavisado, podemos ser tudo ou nada, ou os dois ao mesmo tempo. E talvez sejamos isso mesmo, ou apenas tento me confortar com essa ideia. De qualquer forma, seguimos sendo, sabe-se lá o que.
Autoria: Fernanda Abdo
Revisão: Enrico Recco e Luiza Parisi
Imagem de capa: Pinterest
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