“O Brasil ressurge depois de estar à beira do socialismo”. Foi com essa afirmação que, na manhã do dia 24, Jair Bolsonaro abriu a Assembléia Geral da ONU. O presidente agiu como se a Assembléia fosse uma extensão de sua campanha eleitoral ao iniciar e terminar seu discurso falando sobre religião e repulsa ao socialismo, dois temas que guiaram a sua campanha. Parece que ninguém o avisou que esse discurso tinha como objetivo primordial dialogar com outros países e não com a sua própria população. O Brasil, que já estava sendo mal visto pela comunidade internacional, passou a impressão de ser governado por um radicalista e fanático. Foi um discurso que negou as queimadas e a devastação da Amazônia, atribuiu um comportamento imperialista aos países que abordaram esse assunto, buscou combater o movimento comunista na América Latina e a “ideologia marxista” que, segundo ele, tomou conta dos lares e da família brasileira.
Bolsonaro diz que a ideologia dos governos anteriores se instalou no campo da cultura, da educação e dos veículos de comunicação. Mas e quanto a ele mesmo, também não faz uso de uma ideologia? Aparentemente, ele acha que a sua visão é neutra e, portanto, é capaz de enxergar de maneira objetiva os incontáveis males do socialismo. Mas é óbvio que a ideologia só é ruim quando é de esquerda… Como se não bastasse, Bolsonaro afirma que essa ideologia "destruiu a inocência das crianças" e perverteu a identidade mais elementar: a biológica (a velha conversa sobre ideologia de gênero). Ele diz enxergar todos as falhas petistas, inclusive algumas que nem existem. Sua posição retrógrada e, de certo modo, fantasiosa, mostrou aos outros países que o Brasil mudou drasticamente sua posição em relação a um tema em que sempre teve destaque na discussão internacional.
Em relação ao meio ambiente, Bolsonaro diz que seu governo se preocupa com a sua preservação e com o desenvolvimento sustentável enquanto, na prática, a política ambiental adotada demonstra justamente o contrário. O enfraquecimento do Ministério do Meio Ambiente, chefiado por Ricardo Salles, cujo alinhamento é nitidamente voltado ao agronegócio e à bancada ruralista; os discursos de descrédito e desconfiança das pesquisas ambientais no INPE; a transferência da Agência Nacional das Águas e do Serviço Florestal Brasileiro do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Agricultura e a revisão de todas as Unidades de Conservação do país foram apenas algumas das medidas tomadas durante estes 9 meses do governo Bolsonaro que demonstram a visível incompatibilidade entre o que o Presidente disse e a sua política ambiental.
No que diz respeito à Amazônia, especificamente, Bolsonaro diz que é uma falácia afirmar que ela é um patrimônio da humanidade, nega que o bioma esteja sendo consumido pelo fogo e ainda afirma que a floresta permanece "praticamente intocada". Além disso, ele culpa a mídia internacional de ser sensacionalista e os países europeus de adotarem uma postura imperialista em relação ao Brasil. Mais absurdamente ainda, Bolsonaro diz que as “poucas” queimadas que ocorrem na Amazônia são devido ao clima seco e aos povos indígenas que ateiam fogo por práticas culturais. Talvez Bolsonaro tenha faltado nas aulas de biomas ou não tenha se dado ao trabalho de procurar um culpado mais plausível para esses acontecimentos.
Não é necessário ir muito a fundo nas pesquisas para notar que até os satélites da NASA observaram, do espaço, as dimensões das queimadas. Além disso, o bioma já perdeu 20% de sua cobertura vegetal original e o índice de desmatamento subiu 203% apenas entre junho e agosto deste ano em relação ao mesmo período de 2018. Por fim, em relação à importância da Amazônia para o planeta e a humanidade como um todo, que envolve fatores como a sua biodiversidade e o seu papel fundamental no equilíbrio ambiental e climático do mundo, não há muito o que fazer a não ser lamentar o fato de que o nosso presidente é totalmente alienado ao acreditar que esse bioma só diz respeito a nós, brasileiros.
Ao tratar dos povos indígenas, Bolsonaro afirma que o Brasil agora possui um governante que se preocupa com os índios. Logo em seguida, ele ressalta a riqueza das terras indígenas, que possuem grandes dimensões e detém importantes reservas de ouro, diamantes e minerais. Ainda, ele afirma que, "apesar de" toda essa riqueza, apenas 15 mil indígenas vivem nessas áreas. Bolsonaro levou uma representante indígena para a ONU para provar seu argumento de que os indígenas desejam desenvolvimento em suas terras (leia-se: exploração). Acontece que a índia Ysani Kalapalo, exibida por Bolsonaro, não representa o desejo nem de sua própria tribo. O cacique dos Kalapalo e mais 14 tribos assinaram uma carta de repúdio a esse posicionamento. Ao mesmo tempo em que Bolsonaro diz valorizar tanto aqueles que aqui viviam antes de 1500, ele faz parecer se tratar de um favor por parte de seu governo manter essas terras tão ricas para pouquíssimas pessoas.
Bolsonaro se preocupou mais em provocar outros países do que falar sobre possíveis parcerias. Criticou Cuba a respeito do programa Mais Médicos, o qual, segundo ele, era análogo à escravidão e não tinha qualificação profissional, mais uma mentira proferida no discurso. Inclusive, usou um tempo precioso de seu pronunciamento para criticar líderes que já estão mortos: Fidel Castro e Hugo Chavéz. Também houve ataques a Macron, presidente da França, que está à frente da possível aplicação de sanções europeias ao Brasil. Agora, após o discurso que indica poucos incentivos à cooperação, o Brasil está mais propenso a sofrer sanções europeias.
E esses foram apenas alguns dos pontos mais insólitos do pronunciamento do presidente, que ainda tratou sobre perseguição religiosa, o "nefasto regime" venezuelano, a hospitalidade do povo brasileiro com a onda de isenção de vistos e o "patriotismo, coragem e perseverança" do ministro Sérgio Moro. O discurso de Bolsonaro na ONU foi uma extensão do discurso que ele profere para a população brasileira, permeado por mentiras que podem funcionar para parte da população desinformada e facilmente influenciada sobre os assuntos políticos. Mas Bolsonaro está muito enganado se pensa que os outros países irão cair nessa. O Brasil se isola cada vez mais do resto do mundo, dificultando a cooperação internacional, seguindo próximo, ou melhor, subalterno, apenas aos Estados Unidos. Em um mundo globalizado, todos os líderes de países sabem ao menos se portar internacionalmente - ele não.
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