Como a economia é capaz de "provar" o óbvio e oferecer verdades duras até das situações mais pessoais? O texto de hoje é em anonimato!
Quando eu decidi me tornar economista, não estava inicialmente pensando naquilo que é usualmente considerado o trabalho de um economista. É claro que o PIB, a taxa Selic, as metas de inflação, o teto de gastos e as novas dinâmicas dos oligopólios globais estão imersos no meu dia a dia – afinal, são assuntos que afetam intimamente a vida de cada cidadão, mesmo que este não tenha nada a ver com as decisões econômicas. O trabalho de um economista é representá-los. A motivação e o cotidiano, porém, costumam se distanciar.
Enquanto adolescente, gostava de pensar em absolutamente todos os aspectos da vida, procurando respostas e explicações racionais. Pouco tempo depois, descobri que, salvo as restrições técnicas específicas, economistas poderiam fazer rigorosamente isso. É comum encontrarmos economistas especialistas em meio ambiente, educação, saúde, entretenimento, arte e tantos outros aspectos, apenas porque sua maneira de pensar se encaixa na busca mais racional possível por respostas diversas num mundo excessivamente complexo. Aos olhos de um jovem curioso, poucas coisas são tão encantadoras.
Curiosamente, o resultado dessa curiosidade é, no sentido intelectual, extremamente surpreendente, satisfatório e motivacional; do ponto de vista das motivações pessoais, porém, há cada vez menos soluções e mais verdades duras. É uma verdade dura, por exemplo, que a política econômica não se faz apenas de boa vontade política e desejo de ajudar a quem precisa, mas também atendendo a resultados rigorosos e enfrentando difíceis desafios. Da mesma forma, é intelectualmente desafiador que haja resultados racionais que explicam boa parte das agregadas movimentações sociais e não são triviais “a olho nu”, sem o arcabouço metódico sobre o qual me debrucei. Agora vamos às verdades duras que realmente importam.
Há, em microeconomia, modelos que chamamos de “matching”, que podem ser tratados como um algoritmo de paridade. Se considerarmos a escolha entre alunos e vagas de estudo após os processos seletivos, por exemplo, e a cada “rodada” todos elencam qual aluno/faculdade preferem, podemos concluir que após um número suficiente de rodadas e eliminações de candidatos, o melhor aluno estará na melhor vaga, o segundo melhor aluno estará na segunda melhor vaga, e assim por diante. Há poucos fatores que levariam uma faculdade de excelência a escolher um aluno medíocre (já que todos os alunos bons teriam esta como preferência), e é o que chamarei, com pouco rigor, de excedente: a faculdade precisa de uma compensação para aceitar esse aluno medíocre, como o pagamento de uma mensalidade muito alta. Agora gostaria de levar esse raciocínio para uma situação um pouco mais pessoal.
Tome a formação de casais num ambiente com um número restrito de homens e mulheres que buscam encontrar seus pares (o mesmo raciocínio poderia e deveria envolver casais não-heterossexuais, mas prezarei pela simplicidade no raciocínio). É natural que, após um processo em que todos avaliam as suas opções e escolhem a melhor das disponíveis, as garotas mais bonitas saiam com os rapazes mais bonitos e assim por diante; podemos até considerar que há diferenças de preferência, mas existe evidência de que há consenso entre quais conjuntos de pessoas são mais ou menos preferíveis. Portanto, sabendo que não sou muito atraente, sei que o resultado de equilíbrio é contentar-me com alguém na mesma “classificação” em que estou, e sabendo, ainda por cima, que esse hipotético par também escolheria alguém em uma classificação superior se tivesse tal oportunidade. As duras verdades, porém, não param por aí.
Como mencionei, o que levaria uma faculdade excelente a ceder uma vaga para um aluno medíocre seria a possibilidade de compensação dessa mediocridade em outros critérios, como o apoio financeiro. Da mesma forma, imagine um jovem medíocre e com poucos atrativos que finalmente arranjou algum tipo de relação com uma pessoa “dos sonhos”, num patamar de “classificação” maior. É de se imaginar que há algo ali para compensar essa relação: neste caso, é muito provável que a iludida inocência da juventude logo menos seja substituída pela completa sensação de autopiedade e autoflagelo de alguém que se encontra na posição de “devedor” em um relacionamento, sendo constantemente vítima de abusos físicos e psicológicos, chantagens emocionais e favores cotidianos desproporcionais apenas pelo desespero de compensar uma diferença causada na alocação. Ao diferenciar as expectativas da realidade, o jovem pode de repente se encontrar num verdadeiro inferno.
Interrompo esse texto para pedir perdão pelos termos frios e excessivamente técnicos, que me doem tanto quanto ao leitor, ou até mais. O uso da palavra classificação, por exemplo, é desumano, mas infelizmente se aplica a muitas relações sociais aqui caracterizadas.
É claro que não existe “par dos sonhos” que compense emocionalmente a condição de abusado numa relação social. Ao se submeter às vontades e mandos de outro indivíduo, após um certo período, é inevitável que a miséria psicológica e emocional seja atingida, e pouco importará que esse esforço seria, teoricamente, para manter uma “vantagem” na alocação. Ademais, qualquer servo rapidamente percebe sua condição de servidão, e duvido que um ser humano provido de valores e pensamento crítico seja capaz de encarar essa relação com um saldo positivo.
A situação que acabei de descrever já aconteceu comigo, e imagino que tenha acontecido com um bocado de leitores. E o sentimento mais frustrante que encontramos é que estamos condenados a um nível de classificação, devido a um critério pré-determinado de beleza ou habilidades sociais, e o não-aceitamento dessa condição pode muito bem causar diversos traumas psicológicos para quem está inserido nesse meio. Não há muito que se possa fazer, ou seja, a meritocracia não seria muito útil para essa vítima.
A situação ilustrada é composta por critérios completamente subjetivos e cheios de nuances, mas o que é atraente na economia é a tentativa de estudar essas situações com algum rigor. Tome o caso citado: de uma forma ou de outra, todos que se encontram em uma relação amorosa com outra pessoa eventualmente se perguntarão se isso é o melhor que conseguem; caso a resposta seja não, podem muito bem tentar extrair algum excedente daquela relação. No meu caso, já acreditei que entender essas relações seria benéfico para mim no longo prazo, mas tudo que já encontrei foi a dura verdade.
Para mitigar as chifrudas dores, vamos a outros exemplos. É comum que estudantes como eu acreditem que estejam se dedicando nos seus estudos e fazendo o melhor para aproveitar o investimento dos pais num ensino de qualidade como o da FGV, e isso cria uma sensação de justiça e meritocracia. Ao analisar esses incentivos, porém, afirmo com toda a certeza de que a ideia de que sempre há um plano B, ou um lugar para correr quando tudo der errado, é capaz de criar um risco moral e transformar esses alunos (inclusive o autor) em verdadeiros preguiçosos que se orgulham de fazer o mínimo. Em poucas palavras, a sensação de esforço e mérito não resiste a um detalhamento dos incentivos presentes aos privilegiados, e pode nos levar a admirar ainda mais aqueles que são bem-sucedidos mesmo após encontrar todas as adversidades sociais possíveis.
Mas isso tudo não é óbvio? Embora eu tenha um fascínio por detalhar situações pequenas e rotineiras, acredito que nenhuma das ideias aqui descritas é inteiramente nova à mente do leitor, concorde ou discorde. É assim mesmo, a economia tem o hábito de “provar” o óbvio. É só olhar para o Brasil: os bem-sucedidos, de maneira geral, se aproveitam de corrupção e vantagens, molhando a mão daqueles que podem decidir os vencedores e perdedores. Não vivemos numa sociedade meritocrática, embora muitos ainda tenham essa ilusão. É claro que é perfeitamente possível levar uma vida feliz apesar dessas adversidades, mas aquele cidadão que se esforça ao máximo e apresenta todas as características desejadas ainda é influenciado por fatores pré-determinados que comandarão sua vida, e isso pode ser extremamente frustrante.
É comum dizer que a ciência nos traz muitas perguntas e poucas respostas. Não sei se a economia é ciência, mas ela com certeza me trouxe muitas perguntas incríveis, e, acima disso, me trouxe as piores respostas que eu poderia esperar.
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