UM OUTRO ALGUÉM
- Elis Suzuki
- 11 de jun.
- 4 min de leitura
Às vezes é difícil pensar que minha mãe já teve uma vida antes de mim. Antes de ser mãe, ela foi mil outras coisas. Ela foi filha, amiga, irmã, funcionária, namorada, empreendedora, cozinheira e ela foi mulher, tudo isso antes que eu sequer sonhasse em nascer. Ou melhor, ela é tudo isso e muito mais, não deixou de ser quando eu nasci, mas isso não a torna menos mãe do que é.
O ser humano é muito autocentrado, eu penso que tendemos a acreditar que somos o centro do universo, o foco da história, o protagonista, e a verdade é que na história de nossas vidas isso é real. No enredo da minha vida, minha mãe é MINHA mãe. O que esquecemos às vezes é que cada personagem, seja secundário ou somente um figurante, tem sua própria história.
A da minha mãe começou no dia 11 de junho de 1972, ou melhor, uns 9 meses antes, quando meus avós decidiram colocar uma vida a mais na Terra. A história dela começa com uma das decisões mais cruciais que precisam ser feitas: que nome ela teria. Suponho que essa não seja uma escolha fácil, essa vai ser provavelmente a palavra que uma pessoa mais vai ouvir na vida, é como ela vai se conhecer e como outros irão identificá-la: é o primeiro contato com sua personalidade.
Quando minha avó estava grávida, ela estava lendo A Odisseia, de Homero, e o nome “Penélope” lhe pareceu bonito. O livro narra a história de Ulisses (ou Odisseu), um guerreiro grego que foi chamado para batalhar na Guerra de Tróia, deixando em casa seu filho e sua esposa, Penélope. Por dez anos, a mulher esperou a volta de seu marido, mas seu pai começou a ficar impaciente e pediu para que ela se casasse novamente. Na tentativa de não decepcionar seu pai, ela prometeu que se casaria novamente assim que terminasse de tecer uma colcha. O que ninguém sabia era que, durante a noite, Penélope desfazia os pontos do tecido nos quais tinha trabalhado durante o dia, desse modo, seu trabalho nunca era completado.
Penélope é uma mulher sábia que não deixa que os outros imponham regras para ela, ela toma as rédeas de sua própria vida. Espera então seu marido, enrolando seus pretendentes, até que Ulisses retornou. Sempre achei essa história linda, antes mesmo de ligar os pontinhos e de descobrir que o nome da minha mãe tinha sido inspirado por essa obra. Mas, de novo, estou voltando essa narrativa pra mim, mas não sou eu o foco dessa história.
Antes de ser minha mãe, era mulher. Sendo mulher, lhe foi atribuído o nome de uma personagem que não era principal na trama em que fazia parte. De novo, Penélope era filha, mulher de um homem, e mãe, antes de ser ela mesma. Isso não a limitou, assim como a personagem, minha mãe sempre foi forte e lutou pelo que ela queria.
Esse foi o começo da história, e a verdade é que eu não sei muito como tudo se sucedeu. Sei que ela estudou em algumas escolas, foi aluna e aprontou algumas artes. Ganhou um irmão e uma irmã mais nova, cuidou deles e também brigou com eles (como era de se esperar de irmãos). Fez amigos e perdeu amizades. Se apaixonou e desapaixonou. Fez faculdade e conheceu meu pai. Depois começou a trabalhar e, no meio disso tudo, teve uma filha (que ainda não sou eu). Alguns anos depois ela teve outra filha, e aí eu entrei nessa trama.
No meio dessa longa história ela conseguiu me incluir. Não só fiz uma aparição como consumi uma parte bem grande da narrativa. Minha mãe cuidou de mim e me criou. Trocou minhas fraldas e fez papinha (com açúcar, porque se não eu não comia). Ela sabe o que eu gosto e não gosto de comer, que roupas eu gostaria de ter e que livros eu quero ler. Ela sabe meus horários e meus compromissos.
Ela foi nas minhas competições e nas minhas mostras de trabalho, me ajudou a fazer lição de casa e me levou pro clube todos os dias. Ela brigou comigo quando achou que devia e eu briguei de volta. Minha mãe me apoiou pra que eu crescesse e descobrisse quem eu seria: não só filha, mas eu mesma. Para isso, ela teve que ser MINHA mãe.
Mesmo assim, ela não deixou de ser a mulher que é. Não deixou de ser amiga e sair para se divertir. Não deixou de trabalhar no que gosta. Não deixou de cuidar de si. Ela abriu mão de muito por mim, mas não abriu mão dela mesma. Por isso, hoje eu sei que não posso abrir mão de quem eu sou, por nada nem ninguém.
Eu posso não saber quem ela é, ou melhor, quem ela foi. Mas ela viveu uma vida inteira antes de mim, uma vida que continua até hoje.
Autoria: Elis Suzuki
Revisão: Ana Clara Jabur
Imagem de capa: Odyssee d'Homere: Penelope, ilustração por Andre Bonamy (1880-1943) em “Le retour d'Ulysse” de Jean Baptiste Coissac
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