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UM PEDIDO DE SOCORRO DA GERAÇÃO Z (BEBA ÁGUA)


Nascemos em uma geração no tanto diferente, diferente de tudo que já foi testemunhado na história. Isso acontece porque fomos concebidos na era da informação. Um bombardeio delas em curtos períodos. Elas modificaram nosso jeito de ver o mundo e principalmente as nossas relações humanas, assim como nos permitiram contatar qualquer um que queremos em segundos. Não precisamos esperar para falar, e ainda podemos esperar para responder. Não precisamos ter medo de falar o que quisermos, por estarmos atrás de uma tela. É a abstração dessas relações humanas que nos levou a ser uma geração tão diferente. Em uma era onde nossas relações são mediadas por alguns pixels, o que importa não é o seu eu físico, mas o seu eu digital. A sua persona digital rege como você é e como os outros te verão. Nos apegamos tanto à nossa personalidade digital, nos apegamos tanto às pessoas que conversamos – ou na verdade, à persona digital dessas  pessoas – que vivemos em função desses elementos. Vivemos em uma grande falsidade. Vivemos em uma grande mentira, e quem fala a verdade é louvado. Ou melhor, quem aparenta estar falando a verdade é louvado. 

 

A principal consequência dessa interação por personas digitais é a da positividade tóxica(1). Nosso ser digital é a nossa vitrine e tentamos sempre parecer perfeitos. Viajamos, vemos vistas lindas, saímos com muitos amigos, temos bom gosto cultural, não fazemos nada de errado, temos opiniões corretas, amamos o próximo, e a lista vai. Mas ninguém é totalmente assim. Ninguém é perfeito, sabemos que estamos longe disso. Mesmo assim decidimos tentar parecer isso. Todos moldam sua imagem a partir da felicidade infinita, na ausência de defeitos, então devemos fazer o mesmo. Isso nos leva ao cenário da positividade tóxica, em que nada é ruim, tudo é lindo e agradável. Continue com o bom trabalho. Mascaramos nossos defeitos porque defeitos não vendem na internet, afinal, ninguém está a fim de ver eles, não? Será?  

 

Sem defeitos e sempre perfeitos, somos falsos. Se as relações estão se tornando ilusórias, em quem confiar? Em quem devo me inspirar? Hoje nos deparamos com um mar de decepções oriundas da positividade tóxica. Os seres humanos, desde sua origem, foram projetados para lidar com uma quantidade diminuta de pessoas diferentes. Por exemplo, quando caçadores e coletores, andávamos em nossos bandos, tribos(2) e tínhamos a hierarquia social daquela tribo. Nós achávamos que o ápice da nossa espécie era o guerreiro mais forte da tribo ou a mulher mais bela. Mas de algumas décadas para cá nós destruímos essa dinâmica, ou seja, em uma mudança muito brusca. Claro que entre a pré-história até hoje existiram muitos processos sociais, que mudaram a forma do ser humano se enxergar, principalmente pela criação pelos meios de comunicação em massa. A internet, como o maior deles, impulsionou essa dinâmica. Mas o importante do exemplo é justamente entender que antes tínhamos um espectro de comparação muito menor que atualmente e não fomos acostumados a isso. Enquanto antes nós nos comparávamos a um pequeno grupo de pessoas, hoje, com jornais, revistas, eletrônicos em nossas mãos, em um clique temos acesso às pessoas mais perfeitas do mundo, tanto estéticamente quanto financeiramente, culturalmente, emocionalmente etc. Nós acabamos nos sentindo uma massa amorfa de carbono inútil, já que essas pessoas estão tão acima da hierarquia social que às vezes não podemos nem conceber alcançar tal nível. Sabemos que nunca conseguiremos, então nos desesperamos achando que tudo está perdido. Nossa geração nasceu tomando tapas da realidade, que mostrou que não somos tão bons e importantes assim, no máximo medíocres. Sempre terá alguém melhor que você em algo, e fazemos questão de reafirmar isso a cada vez que entramos nos aplicativos. Nós nos diminuímos e nos frustramos a cada clique. 

 

Mas não é assim que as coisas funcionam. Vivemos as expectativas de um mundo digital no mundo real. Nos comparamos com os outros incessantemente, contamos os likes, vemos os comentários, nos magoamos com palavras escritas por alguém que nunca interagimos, ficamos ansiosos com tanta coisa, tanta informação, e nenhum conhecimento. Acabamos por nos comparar com os outros, e isso é muito errado. Somos indivíduos, totalmente diferentes, apesar de às vezes parecer que não. Devemos nos comparar conosco do passado. Nós somos nossos únicos pontos de vista aceitáveis a comparação, já que conhecemos nossos mínimos detalhes. Sabemos no que devemos melhorar e no que somos bons. Se não somos bons em algo, ficaremos e nos compararemos conosco do passado a cada vez para termos certeza do nosso progresso.   

 

Outro grande problema com as personas digitais é a nossa incapacidade de ter interações sociais presenciais. Nos acostumamos tanto com a dinâmica digital que temos medo de nos comunicarmos. Online tudo está posto, você não precisa criar algo para puxar assunto. Você pode tomar o seu tempo para pensar em uma resposta, ensaiar, falar tudo em melhor tom; e isso nos falsifica. Ninguém é assim na realidade, ninguém é perfeito ou totalmente feliz. Na interação presencial, essas verdades aparecem e machucam. Virtualizamos a nossa comunicação e a adequamos à linguagem de personas digitais, diminuindo a nossa pouca humanidade restante. O modo em que agimos está relacionado às dinâmicas digitais e não de maneira natural, como a realidade demanda. Transportamos as personas digitais para o mundo real e passamos a agir como nós nos mostramos nas redes, a fim de atender as expectativas dos outros e reafirmar nossa posição na hierarquia social. O problema é que essas identidades das redes não funcionam no mundo real, ao menos que o interlocutor aja como uma dessas identidades. Por isso gerações anteriores reclamam tanto da incapacidade da geração Z de conversar normalmente. Isso acontece porque estamos tão acostumados a conversar com personas digitais, que achamos que o mundo real é a mesma coisa, mas não é. Tememos falar o que pensamos no mundo real porque feriremos a dinâmica de positividade tóxica das redes sociais; tememos até falar às vezes. Não treinamos para lidar com o inconveniente, pensar no que falar na hora, no tom, no volume, nas palavras certas para os momentos certos, porque quase metade da nossa vida foi atrás de uma tela conversando com outra pessoa atrás de outra tela. Nos esquecemos de que o mundo não é o que vemos nos pixels. Eles foram feitos como modo de escapismo e de fato eles nos distanciaram da realidade de maneira involuntária.

 

A geração Z foi integralmente construída sobre essa formação de expectativas do mundo digital. Ela é bombardeada de identidades digitais falsas de outros e que geram ansiedade. “Coma apenas carne!”, “Coma apenas planta!”, “Se vista assim!”, “Cinco coisas que as mulheres querem em um homem”, “Eu sei como te deixar rico!” e por aí vai. Nenhuma dessas é verdadeira. Ninguém vive assim na vida real. Mas por algum motivo, acreditamos que seja assim. Formamos uma identidade falsa, mas perfeita das outras pessoas, enquanto nos focamos nos nossos defeitos. Conhecemos e fomos induzidos a conhecer cada milímetro de nossos defeitos e cada milímetro das qualidades dos outros. Mas os defeitos dos outros só se manifestam no mundo real. Se não vemos o mundo real, por ele ser repleto de personas digitais transportadas, como podemos entender que não somos horríveis? Como temos autoestima? Como paramos de ser aquilo que não somos? E é isso que passamos. Claro, toda a humanidade criou avatares diferentes que encaixassem em determinadas situações em diferentes épocas. Mas o meio digital exacerbou isso em níveis nunca vistos. Quando nossa identidade digital passa a ser nossa vitrine e expomos apenas as virtudes que acreditamos que os outros irão aprovar, traçamos demarcações das nossas ações e convidamos os nossos espectadores a nos entender como indivíduos apenas dentro desse espectro construído por nós. A nossa persona digital passou a delimitar os limites de nosso comportamento e pensamento e por isso temos medo de expor o que pensamos às vezes, já que as pessoas reagirão sob uma ideia falsa daquilo que você não é. Elas entendem os limites estabelecidos pela persona, e qualquer quebra de expectativa as faz reagir mal. Nos tornamos servos de nossas identidades que limitamos; não podemos sair delas, para que não decepcionemos nossos seguidores. Por isso as personas são falsas, elas andam sempre em uma corda bamba, uma linha tênue de perfeição fictícia. 

 

Se entendemos as nossas relações sociais como interações por personas digitais, ficamos presos na nossa personalidade falsa e agiremos como a nossa vitrine na rede, ocultando nosso ser real. Se ficarmos presos nos avatares digitais, perdemos nosso sentido. Somos aquilo o que não somos. Subvertemos nossa essência para agradar os outros. Agradar aquilo que achamos que eles são, ou seja, as personas digitais deles. Nos falsificamos para agradar outra coisa falsa. Os nossos perfis são uma representação daquilo que você pretende ser para o mundo digital. Temos isso na realidade, precisamos saber conviver em sociedade e nos projetar para os outros, afinal, o ser humano naturalmente se preocupa com validação e reputação. Mas dê o celular e uma rede social para uma criança e veja o que acontece no longo prazo: aquele ser raramente saberá conviver socialmente, discutir ideias, chegar em pessoas, romper o medo, porque ele não passou pelos ritos sociais mais básicos. Não ensinaram a ele que existe um mundo real, com frustrações, e um mundo digital fantasioso. Deram uma tela para ele e induziram ele a pensar que aquilo era a realidade. Se a criança fica em contato com o digital por muito tempo, ela precisa de um contrapeso para não enlouquecer nesse meio mentiroso. O que seria esse remédio, senão justamente a realidade? O problema é que as pessoas de fora, as que deveriam se comportar como no mundo real, se comportam hoje como avatares digitais. Tanto tempo imersa, a criança se afogou. Se no mundo real as pessoas agem como no digital, qual a diferença? Estamos inevitavelmente fadados a esconder nossas verdades internas para que não rompamos com a positividade tóxica? 

 

A positividade tóxica gerou o constante estado paliativo da sociedade. Vivemos em uma sociedade paliativa(3). A dor deve ser evitada a todo custo. Não devemos parecer fracos, pois isso doi. Não devemos contar a verdade, pois ela doi. Tentamos parecer perfeitos porque os likes são uma medida paliativa contra a nossa baixa autoestima. Eles saram, nos afastam da dura verdade que temos no coração e não queremos aceitar. Eles nos afastam dos nossos defeitos. Isso acontece porque a famosa dopamina está nos regendo. A dopamina é o hormônio do prazer, de fazer algo que te agrada. Estamos nos agradando demais. A cada dia abrimos o celular dezenas de vezes para nos agradar e assim perdemos no caminho a nossa paciência e a nossa atenção - mas em troca, ganhamos muita dopamina. Muitas medidas paliativas. Nosso cérebro não foi projetado para suportar tanta dopamina e como resultado ele se viciou nela, ou seja, precisamos dos likes, comentários e interações online para manter nosso órgão satisfeito. Estamos dependentes desses impulsos que são dados quando mentimos sobre o que somos nas redes. Isso nos enfraquece, já que não somos obrigados a lidar com os nossos defeitos e nos aceitar. Nascemos querendo negar nosso lado imperfeito e sempre buscar a perfeição, mesmo que ela seja impossível. Aceitar que somos imperfeitos é tirar um grande fardo, e quem ainda está na busca da perfeição, se encontra em um sério risco de se decepcionar.  

 

As nossas relações sociais são extensas, mas muito rasas. Vivemos em uma ampla falsidade, que nos impede de conhecermos uns aos outros. O que nos dá mais likes é o que nos guia pelo mundo, é o caminho a ser seguido. Uma menina que posta apenas foto de biquíni no Instagram será recompensada com muitos likes, elogios, às vezes acessos a lugares importantes, patrocínios; para ela, a vida é aquilo. Seu corpo sendo mostrado. Mas daqui a uns anos, umas doenças, mudanças ou gravidez, o corpo não será o mesmo. Não será tão belo quanto antes e o engajamento irá cair. Daí se busca se aperfeiçoar esteticamente de maneira artificial, com procedimentos que podem causar riscos à saúde. Utiliza-se do corpo como uma forma de ascensão nas hierarquias sociais. O acúmulo do capital corporal(4) é mais um fenômeno de personas digitais, que instiga uma positividade tóxica que leva as pessoas a se compararem com outras e não consigo mesmas. Tudo está interligado, se alimentando, enquanto nos encontramos no meio desse caos. 

 

 A decepção pode vir também pela modificação histórica de nossos desejos mais profundos. As redes sociais funcionam perfeitamente com a ordem neoliberal que o mundo está sob, já que elas levaram as pessoas a moldarem seus desejos em função de uma persona digital. O que se compartilha na internet deve ser almejado, ou seja, uma ostentação. Nem tudo na vida é sobre ser rico. Mas hoje é. Não é à toa que vemos discursos dos coachs messiânicos fazendo o maior sucesso na internet. Um grande pintor, artesão, cozinheiro, vendedor, nem sempre será rico e ele sabe disso. Mas sempre queremos aparecer mais. Veja, você realmente quer um novo relógio super caro? Um novo iPhone? Um novo tecnotreco, carro, roupa, comida? Você realmente precisa, ou você quer mostrar para os outros que você tem? Você quer tirar aquela foto pois ela é emocionalmente importante para você, ou para ficar bonito nos stories? É interessante como o capitalismo consegue moldar os sonhos e desejos dos indivíduos imersos na realidade virtual e isso é perigoso porque nos afasta ainda mais da realidade humana. Como esses sonhos são montados pelo mesmo agente, acabamos desejando as mesmas coisas. No fim, somos muito parecidos. Fomos massificados. Temos o gosto padronizado. Quem está sob as redes sociais acaba sendo uniformizado, os nichos sociais estão cada vez mais semelhantes e nossa diversidade cada vez menor. Ou seja, ficamos cada vez menos humanos e autênticos, mesmo que procuremos parecer ambas as coisas. Por isso que a autenticidade é uma das coisas que mais vende na atualidade; e sabendo disso, novas personas digitais que prometem ser autênticas surgem – como um político populista com discurso anti sistema, um coach redpill e a lista vai – mesmo que isso seja até certo nível paradoxal. Pragmático? Sem dúvidas. 

 

Agora acredito que o fenômeno mais interessante das personas digitais se dá pela divergência política extensa. Claro, eu tenho que colocar política no meio disso tudo, afinal, tudo faz parte dela. As redes sociais permitem uma comunicação muito mais abrangente do que os métodos prévios, como a Prensa de Gutemberg, jornais, o rádio - que até foi bem mais adotado pelas massas, mas ainda menos do que a internet. Antigamente, a precariedade da comunicação dificultava a transformação política, no sentido de que a maioria das pessoas eram agentes passivos nelas. As grandes revoluções antigas foram feitas por movimentações no equilíbrio de poder político das elites, então mesmo que o povo auxiliasse - e muito - nas mudanças, era uma minoria revolucionária(5). Hoje, com as redes sociais, nos tornamos agentes ativos das novas transformações e qualquer um com um tweet pode fazer uma mudança - ou pelo menos acha que pode. Você quer participar disso e começa a se comportar como um personagem dentro daquela realidade. Sua persona digital se encaixa com o discurso que você quer transparecer – ou às vezes não, já que temos medo de falar o que realmente pensamos – e você passa a ser um agente ativo daquela causa. Você defende com tanto gosto, que nega pontos dissidentes. O extremismo nas redes é muito mais comum na era digital, já que é muito fácil adotar um discurso perigoso atrás de uma tela, onde não há consequências instantâneas e diretas sobre aquilo que é dito. Um exemplo é alguém ter um discurso racista na internet; essa pessoa pode sofrer sanções, claro, mas ao mesmo tempo seu post bomba – tanto para o bem, quanto para o mal. Se essa pessoa sustentasse esse discurso na realidade, na frente de um grupo, com certeza ela não sairia dali ilesa. A internet facilitou a internalização e a naturalização do discurso de ódio. Por isso que histerias teorias da conspiração, desinformação e ódio são mais fáceis de serem criadas, e o problema de tudo isso é que nos gera a falta de empatia. Não temos mais empatia com o próximo, as vezes porque ele tem um discurso distinto do nosso, é de um grupo diferente ou tem crenças divergentes. Isso aumenta a polarização no cenário político atual. As divergências políticas hoje são uma ferramenta para decidir níveis de amizades, relações, como se estivéssemos cumprindo um papel político. Claro, isso sempre aconteceu, mas dada a grande polarização catalisada pelas redes, esse desentendimento é muito mais comum e forte. Isso chega a um ponto, que podemos taxar nossos próximos de pessoas más, mesmo que conheçamos ela há tempos. Nos afastamos de quem discordamos, nos aproximamos de quem concordamos. Damos o discurso antitético como imoral e inaceitável e negamos relações pessoais com a pessoa. Novamente perdemos nossa diversidade. Talvez até nossa racionalidade. 

 

Mas não há só o problema do eleitor, como há o do político em si. Os políticos são aqueles que usam seus avatares digitais da maneira mais clara. Hoje nós votamos em personalidades digitais e não em políticos sérios. Um deputado se veste de policial, com uma barba, uma tatuagem de caveira e fala que é a favor da segurança pública; ele será eleito, porque o povo acha que ele está fazendo algo pela segurança, sendo que em termos práticos, nada mudou. Temos a maior bancada de incumbentes vestidos de policiais e ao mesmo tempo a prática da violência continua alta. A mesma coisa acontece, por exemplo, com um deputado ambientalista, outro “paz e amor”, outro contra “não sei o que”. No fim nem acompanhamos no que ele está votando, mas achamos que ele está trabalhando, dada a personalidade digital falsa inicial. Nessa era de redes sociais, são tantos personagens à nossa volta, que não sabemos quem é quem. Por isso a política está tão complicada. Em quem podemos confiar? Em quem é autêntico? 

 

O maior problema político oriundo da era das personas digitais é a criação de histerias. O meio digital se tornou um âmbito tão distante da realidade que qualquer narrativa funciona para atiçar a grande massa de eleitores. As personas digitais apontam para uma história histérica e uma legião de outros acreditam nela. As histórias variam desde cassino online, cursos e fofocas, até “vivemos em uma ditadura”, “o país vai virar uma Venezuela”, “o fascismo reina a política”, “privatize tudo”, “estatize tudo” e por aí vai. Daí o político passa a se vender como a solução para esses problemas - que não existem. Nada disso é verdade. Mas importa ser verdade? As pessoas tomam decisões sobre essa realidade digital, e esse é o problema. Os próprios políticos que criam as histerias se vendem como a solução delas, e as pessoas não enxergam essa dinâmica que rege o Brasil há anos. O que foi o episódio do oito de janeiro, por exemplo, se não uma resposta a uma gigante histeria digital propagada por figuras das mais alarmistas nas redes? O celular nos rege, e não nós que regemos o celular. O problema da digitalização total das nossas personas, relações sociais e políticas é que ela não nos permite encarar os problemas como eles realmente são e as soluções como realmente deveriam ser. Ficamos presos na bolha digital, na esfera de pensamento, enxergamos a alteridade como uma ameaça completa, e ficamos na luta eternamente, ao invés de se unir para construir algo novo e melhor.  

 

E no meio disso tudo, nascemos. Claro, todas as gerações estão imersas nesse caos inteiro, e todos sofremos. Mas fomos nós que nascemos no meio desse caos, as outras gerações que o criaram e nos incentivaram a continuar. Por isso pedimos socorro. Como conseguiremos viver de maneira saudável em meio a tanta mentira, histeria e frustração? Não há ninguém para nos ensinar de verdade. Ninguém passou por isso antes e somos os primeiros. Cabe a nós decidir como o futuro será e como nos criaremos sobre essa realidade, como criaremos nossos descendentes e como manteremos a existência de uma humanidade no ser humano em meio ao cenário de perda de traços naturais. Gradativamente abstraímos e virtualizamos a dinâmica natural do ser humano e isso resulta na nossa uniformização total. Em um mundo cada vez mais mecanizado e robotizado, como nos diferenciamos das máquinas? Nós nos dizemos tão diferentes delas, e realmente somos? Estamos sendo muito dissemelhantes delas no meio disso tudo? Argumentamos que elas não sabem ser humanas, mas de que adianta até sabermos como ser, mas não sermos? Se não somos agora, podemos nos esquecer. E se nós nos esquecermos, poderemos ser substituídos pelas tais peças de aço que tanto tememos. Mas afinal, será que na verdade nós já não nos esquecemos? 

 

Saia do celular. Olhe a janela. Veja a vida acontecendo. Olhe o céu, seja ele cinza ou azul. Beba água. Beba muita água, faz bem. 

 

 

REFERÊNCIAS 

 

  1. HAN, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2017. 

 

  1. BEZERRA, Eudes. Caçadores e coletores no período Paleolítico. Incrível História, 20 de julho de 2023. Disponível em: https://incrivelhistoria.com.br/cacadores-e-coletores-periodo-paleolitico/. Acesso em: [17/10/2024]. 

 

É interessante notar que a fonte diz que a sociedade não era hierarquizada, mas ela aborda uma hierarquia laboral e não social. Quando eu digo que o indivíduo se compara a uma hierarquia social, o sentido visado é o de que existe um grupo com pessoas seletas, com características diferentes e principalmente disparidade física. Existem homens mais fortes, mulheres mais belas naquela organização social. Assim, o indivíduo que se compara está usando apenas aquele agrupamento como referência. Hoje, usamos de certa forma o mundo inteiro como referência, e isso não é sustentável psicologicamente.  Eu acredito que esse exemplo mostra que até em certa parte a nossa espécie nunca esteve pronta para uma comparação tão abrangente. Claro que entre a pré-história e os dias atuais, muitas coisas aconteceram que mudaram a sociedade. Mas lembre-se que o foco do exemplo é em mostrar que naturalmente o ser humano foi "projetado" para lidar com comparações em um espectro bem menor do que bilhões de pessoas.

 

  1. HAN, Byung-Chul. Sociedade Paliativa: Dor Hoje. 1ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2021. 

 

  1. JANOWSKI, Daniele Andrea; MEDEIROS, Cristina Carta Cardoso de. Corpo social e capital corporal: considerações a partir da teoria sociológica de Pierre Bourdieu. Problemata: Revista Internacional de Filosofia, v. 9, n. 2, p. 283-293, 2018. Disponível em: http://dx.doi.org/10.7443/problemata.v9i2.41247


  1. PARETO, Vilfredo. Tratado de Sociologia Geral. 2. ed. Milão: Barbera, 1964.


    ___________________________________________________________________ Autoria: Raphael Adans

    Revisão: Manuela Ferreira e Artur Santilli

    Imagem de capa: Pinterest

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