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VELÓRIO


Pensou em algo que já havia ouvido falar, que muitos mortos têm uma aparência serena, como se estivessem dormindo um sono profundo, sem sonhos ou pesadelos. Talvez fosse verdade para alguns defuntos, mas não era o caso do seu avô, estirado no caixão a sua frente.


O velho estava morto, certamente. A pele acinzentada e as feições encovadas não deixavam margem para dúvidas. O jovem, esse um vivo, reparou nos detalhes que calmamente afirmavam a morte como uma verdade, tão concreta quanto os dedos ossudos do seu avô, cruzados sobre o peito do falecido. Perceber que aquelas mãos que anos antes o seguraram e brincaram com ele agora seriam inertes para sempre e nunca mais iriam segurar e brincar com nada o fez sentir como se a vida em si fosse uma grande piada mórbida, com o arremate sendo a morte. Que as felicidades e sofrimentos da existência, que são as coisas mais importantes para os vivos, desaguam todas na mesma inexistência foi um pensamento engraçado, mas não conseguiu rir. 


Uma cachoeira de soluços que se entrecortavam, cada vez mais altos, o retirou de seus devaneios. Virou-se para ver sua mãe e a mãe dela ajoelhadas e agarradas umas nas outras e no caixão, em prantos, enquanto o pai confortava a primeira com carinhos no ombro e um semblante sério vestido na face. O avô era materno, daí o desespero da mãe e o estoicismo do pai. Lembrou das infindáveis piadas de sogra que o pai contava ao telefone com os amigos e se perguntou se, quando sua avó morresse, o pai iria comemorar. Provavelmente não, mas o que era curioso é que a ideia de morte como algo real e não confinado aos distantes outros era um pensamento inédito apenas horas antes, mas agora se apresentava tão natural como suar depois de correr ou chorar por bater o dedinho em uma quina. 


Como todo canto daquela saleta funerária apertada estava ocupado por alguém chorando, reclamando do serviço do lugar ou cochichando, ele decidiu voltar os olhos para o morto que, ainda sem vida, permitiu-se ser o descanso para os olhos do jovem enquanto ele refletia sobre como havia ido parar ali. Os eventos do dia já nasceram confusos, e só piorariam na memória, mas algumas frestas mentais deixavam a luz da consciência bater brevemente sobre alguns acontecimentos. 


Reconstituiu: nas altas horas da noite do dia anterior, os pais e ele saíam de um jantar na casa de um amigo da família. Uma casa grande e luxuosa daquelas, e não tem um estacionamento para convidados, lembrou do pai reclamando. Enquanto andavam até o carro, a mãe atendeu a ligação da avó com a notícia. Após balbuciar algumas palavras, a mãe disparou um grito de agonia que rasgou o silencia noturno e prensou sulcos no vinil da memória do filho, produzindo um disco negro que tocaria muitas vezes mais em sua cabeça. 


Depois, a janela da consciência se fechava. Talvez tivesse dormido no caminho da pequena cidade no interior na qual os avós moravam, que ele já não visitava fazia um ano. Mesmo se tivesse, nunca havia pisado no cemitério do lugar, que agora percebia ter uma quantidade incomum de salas para uma cidadezinha daquele tamanho. Talvez fossem para tantos avôs e avós que, por algum motivo que ele ainda não entendia direito naquela idade, insistiam em morar e morrer nesses lugares isolados e distantes. Não sabia o que sentia sobre seu avô ter adotado esse estilo de vida – e, agora, de morte –, mas achava que talvez quisesse ter tido um último abraço do velho, mesmo que tivessem ficado um pouco distantes. Não tinha certeza, mas gostava de pensar que tinha a possibilidade de sentir o abraço daquelas mãos magras e ser transportado para tempos mais simples. Agora, essa chance estava enterrada, como o avô logo seria. 


Os soluços e as lágrimas da mãe e da avó voltaram ao primeiro plano, dessa vez convidadas pelo seu devaneio. Perguntou-se se também estava chorando, levou os dedos à bochecha, que estava seca. Deveria chorar? A deixa daquelas duas e a atmosfera na sala sugeriam que sim, mas ele não sentia tristeza ou dor. Na verdade, não sentia nada exceto uma certa confusão que parecia estender e distender seu cérebro. 


Decidiu buscar inspiração para a tristeza no resto dos presentes. Além do pai, mãe e avó, havia talvez vinte pessoas se acotovelando dentro da salinha para prestar condolências, ou cochichar melhor no ouvido um do outro. Alguns da família, outros amigos do falecido, a maioria na mesma faixa de idade dos cabelos brancos ou falta deles. 


Conforme aguçou os ouvidos, pôde captar algumas conversas.


“... um absurdo de um frio lá. Pelo menos o José fez o favor de morrer num lugar quente.”, dizia uma tia que morava longe.


“Safado ele, foi morrer bem no dia dele pagar a pinga. Eu é que não vou pagar.”, conversava um grupo sorridente de idosos, companheiros de bar do morto.


“... já era pra ele. Essa nova proposta é uma bomba pro governo, do mês que vem não passa, e digo mais...” debatiam dois primos mais velhos, sobre a morte política, um pouco diferente daquela sofrida pelo avô.


De fato, essas e outras falas pairando como tufos de poeira no ar espesso daquela sala lentamente somaram uma sensação à cabeça do jovem, mas não era tristeza, dor, incômodo ou qualquer outra coisa experimentada corriqueiramente. A cara pálida do avô, a parede cinza, a careta de choro da avó, a mão no ombro da mãe, o modo corriqueiro como os outros presentes se conduziam, e até ele próprio, pareciam todos parte de uma memória. Não do jovem, nem de ninguém, mas sim de uma foto em preto e branco, desbotada pelo tempo, como aquelas guardadas em caixas no escritório do avô. As imagens do jovem olhando para o caixão, ou levando a mão até a bochecha seca, eram todas fotografias antigas vistas por algum alguém futuro, com uma conexão distante na memória. Ele procurou alguém com uma câmera analógica, o autor daquelas fotos, mas não encontrou ninguém. 


Foi quando um homem e uma mulher entraram na sala usando camisetas pretas com o logo do cemitério timbrado. Informaram que era hora do sepultamento, e tinham que fechar e levar o caixão. 


A mãe, que agora chorava menos, recompôs-se. Com um pequeno beijo na bochecha do morto, assentiu para os funcionários, que já não prestavam atenção, e fechavam o caixão enquanto contavam alguma anedota ocorrida mais cedo, durante o almoço. A prática dos dois funcionários fez o processo durar segundos, e logo estavam carregando o caixão tampado para fora da sala, acompanhados pela procissão dos presentes. 


O jovem decidiu não ir. E, quando disse para a mãe que iria esperar sentado num banco próximo, ela deixou. Não queria ver aquilo acabar, e ela sabia que ele podia estar virando um homem, mas ainda era um menino, e as crianças têm o breve privilégio de ignorar que tudo tem um fim e que tudo será memória.



Autoria: Pedro Augusto Castellani Rolim

Revisão: Ana Carolina Clauss e Laura Freitas

Imagem de capa: At the Death Bed (Edvard Munch, 1895).


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