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VOCÊ CRIOU A PIOR VERSÃO DE MIM E NEM SE DESCULPOU



Finco a pá no chão e cavo. Hoje te enterro de vez.


Foi-se o tempo em que passava noites em claro

me culpando pela sua invasão.

Foi-se, também, o tempo em que te culpava,

com razão, e lamentava ter que pagar o preço pelo seu erro.

Cansei de lamúrias em vão, cansei de ceder meu corpo à raiva,

que me consumia como um parasita.

Espero que os vermes te encontrem.

Finco a pá no chão e cavo. Hoje te enterro de vez.


Inutilmente, tento limpar a terra das mãos

e da barra do meu vestido.

Inutilmente, passei muito tempo tentando limpar a sua sujeira,

impregnada no meu corpo.

Quando a tristeza foi substituída pela raiva,

me vi cansada de limpar.


Quis bater na sua porta, jogar o esfregão na sua mão

e dizer: estou suja, a culpa é sua, trate de limpar.

Quando minha pele estava em carne viva, novinha em folha,

notei os panos brancos, com algum resquício de sangue.

A sujeira nunca esteve ali, era fruto da minha cabeça.

É de lá que não consigo arrancar você, ou melhor, o seu estrago.


De novo, quis bater em sua porta, mas, desta vez,

com uma caixa de ferramentas.

Quis jogá-la ao seu colo, quis gritar a plenos pulmões;

estou quebrada, a culpa é sua, trate de consertar.

As lágrimas calaram a minha vontade.


Sei que lhe atribuir qualquer responsabilidade seria inútil.

Tão inútil quanto, nesse momento, limpar a barra do vestido,

tão inútil quanto, no futuro, tentar remendá-lo.

E é aí que reside minha raiva, numa muralha impenetrável.

Você criou a pior versão de mim e nem se desculpou.


Avalio o buraco enquanto limpo o suor da testa.

Torço para que ele seja grande o bastante para caber você

e toda a sua culpa.

Houve um tempo em que ansiava por justiça,

nem que fosse pelas minhas próprias mãos.

Minha raiva era combustível e, com ela, eu seria capaz de ir atrás de você

até os confins do inferno.

Viveria essa, e todas as outras realidades, fazendo-lhe pagar.

Te encontraria em algum corredor frio e te esmagaria feito o inseto que és.

Só estaria satisfeita quando visse seu exoesqueleto melequento

na sola do meu sapato.

Mas de que serviria?


No final do dia, chegaria esgotada em casa,

e ainda teria que catar os meus cacos espalhados no chão da sala.

Não tem justiça que altere esse fato:

tenho que reconstruir sozinha algo que não destruí.

O (seu) estrago já foi feito e cabe a mim consertá-lo.

Isso já é cansativo o bastante.


Por isso, não é estranho meu alívio ao jogar a última pá de terra.

Ceifo você e ceifo seu crime,

ceifo seu passado e te elimino do meu futuro.

Ainda, penso em despir-me e enterrar-te com esse vestido,

que já não mais me pertence.

Por garantia, jogo sal.

Quero que você fique preso, não quero que saia jamais.


Chego em casa nua, com o pouco que você não tirou de mim.

Esfrego cada centímetro do meu corpo como a primeira, e pela última, vez.

Sento no chão da sala e, com paciência, começo a colar os cacos,

que parecem infinitos.

Ora me corto, e, sem pressa, deixo o sangue pingar,

mas continuo.

A dor já não me incomoda tanto e nem me paralisa.


Hoje enterrei você de vez, finalmente.

De você, resta apenas a terra debaixo das minhas unhas.

Uma hora, ela tem de sair.

Nesse meio tempo, me ocupo colando cacos

e esperando as gotas de sangue acabarem de cair.


Autoria: Fernanda Abdo

Revisão: Luiza Parisi e Anna Cecília Serrano

Imagem de capa: Pinterest


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