Em comemoração ao mês da mulher, o texto de hoje foi escrito por nossa presidente, Carolina Zweig, a respeito do dia-a-dia de uma aluna num contexto universitário majoritariamente masculino e a forma como esse ambiente reforça a desigualdade de gênero.
Ela encara a tela do laptop. Está há tanto tempo sem escrever que o computador entrou em modo de descanso, e ela encara uma superfície preta, empoeirada e um pouco refletora. Mal consegue distinguir o contorno do seu rosto, o limite do seu cabelo, a geometria da sua roupa. Consegue perceber as olheiras embaixo dos seus olhos, manchas escuras na imagem que já era escura. Vê que atrás de si há um menino com cara de impaciente. Vê a confusão meio generalizada que há nas outras mesas da sala de estudo em que está. Mas não consegue ver o ponto de tudo isso. O ponto de uma sala de concentração tão dispersa que atrapalha. O ponto de estar sozinha em um ambiente predominantemente masculino. O ponto de um trabalho sobre desigualdade em um mercado de luxo que tão poucos têm acesso que é praticamente irrelevante. Isso é fútil, é perda de tempo, não vai salvar o mundo. O ponto de pesquisa acadêmica, que em 99 % dos casos leva à frustração – independente do tema ou da ciência.
O menino se agita. É lá que ele costuma sentar-se. Não que ela não soubesse, pelo lixo na mesa já dava para saber que alguém costuma sentar lá. E ela frequenta esse espaço, ela sabia que era dele. Mas ela não frequenta de maneira suficientemente egoísta para reservar seu próprio lugar, todo dia ela se esgueira para achar um canto. Às vezes logo abaixo do ar condicionado, onde morre de frio. Às vezes perto da porta, onde se distrai cada vez que alguém entra. Às vezes perto da turminha do barulho, onde precisa colocar música no fone de ouvido no volume máximo para focar. Ela sempre dá um jeito, só quer um espacinho...
Ela ignora. Ele a perturba um pouco mais. Ela avisa que só tem mais meia hora para ficar lá. Eles entram em um acordo, ele vira de costas e começa a conversar alto com os colegas. Ela volta a tentar se concentrar.
Ela nem se interessa tanto pela questão de gênero. Mas no grupo de estudos do Mercado da Arte que ela frequenta, ela é a única da geração do politicamente correto e quase que se espera que tenha a iniciativa de pesquisar esse tema. Se não for dela, não virá. Ela aceita. Acho que faz parte de estar onde estou fazer essas coisas de vez em quando.
Ela continua escrevendo, de forma quase automática porque sua cabeça está em outro lugar. “Você está no meu lugar” ecoa na sua mente de maneira a abstrair-se completamente do contexto e do significado. Ela sente que está de fato ocupando o lugar de alguém. Outra pessoa poderia ter sido aprovada no meu lugar no vestibular, provavelmente um homem. Mas ela se estabeleceu, ocupou uma vaga, um espaço, uma etiqueta. Mesmo assim, sente um instinto de trocar de mesa ou se justificar quando ocupa uma cadeira que não costuma ocupar.
“Você está no meu lugar”. Sim, você sempre vai estar no lugar de alguém. E isso não significa que você deva sempre sair de lá.
Foto de Capa: Tom Peake
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