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A ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE E A COVID-19



Os cuidados primários de saúde surgiram como uma tentativa de lançar diretrizes básicas que serviram como um caminho para acabar com as desigualdades em saúde ao redor do mundo. Eles têm sido o referencial do debate público sobre saúde da maioria dos países, por trabalhar com respostas antecipatórias e baseadas em evidências colhidas nas próprias comunidades. Uma forma de compreender esse fenômeno é olhar para a centralidade da sua atuação durante a pandemia e, junto a isso, entender a abordagem empregada, quem esteve e ainda está na linha de frente e de onde deveria sair o seu financiamento.


O atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) acontece em três níveis de atenção definidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No primeiro, analisado a seguir, estão as Unidades Básicas ou Postos de Saúde, onde são marcadas consultas e exames e realizados procedimentos menos complexos. Além desse, existem ainda o segundo, de média complexidade, onde estão as Clínicas, Unidades de Pronto Atendimento e Hospitais Escolas, e o terceiro, de alta complexidade, que concentra os Hospitais de Grande Porte.


A divisão possibilita o acolhimento dos pacientes conforme o grau de complexidade dos casos, servindo à eficiência da gestão nos sistemas de saúde. Nesse sentido, a Atenção Primária à Saúde é porta de entrada ao SUS, viabilizando o primeiro contato entre o usuário e os serviços oferecidos pelo sistema. Uma das definições mais didáticas da APS é de que ela funciona como um "filtro" capaz de organizar o atendimento e o fluxo dos serviços, dos mais simples aos mais complexos, de forma a direcionar de maneira eficaz as demandas de saúde tanto no âmbito individual quanto coletivo.


A pesquisadora Barbara Starfield, referência mundial em pesquisas sobre a atenção primária, define quatro atributos básicos essenciais ao serviço. De acordo com a autora, o que se espera da atenção primária é (i) que seja o serviço de saúde mais acessível à população, já que seria o primeiro recurso a ser buscado diante de cada problema de saúde experimentado pelo indivíduo; (ii) continuidade do atendimento, que pressupõe uma fonte regular de atenção e o seu uso frequente ao longo do tempo, importando a manutenção de um vínculo entre o cliente e o serviço; (iii) integralidade do serviço, o que significa que as unidades de APS devem oferecer todos os tipos de serviço que lidem com sintomas, sinais e diagnósticos de doenças manifestas, ainda que parte dos pacientes necessitem ser encaminhados a outros níveis de atenção; (iv) coordenação do atendimento, já que mesmo quando parte dele se dá em outros níveis de atenção, cabe à equipe de atenção primária organizar, coordenar e integrar esses cuidados.


Dessa vastidão de atribuições conjugadas pela APS resultam, como se pode prever, uma série de responsabilidades. Nessa lógica, a Atenção Primária opera em diversas frentes, acumulando a titularidade das ações preventivas, por meio da divulgação de orientações sobre a prevenção de doenças e a promoção da saúde, do diagnóstico, tratamento e reabilitação - além da redução de danos e manutenção da saúde.


A atuação preventiva e comunitária é uma das abordagens da política de saúde, com equipes multiprofissionais que atuam diretamente no nível local. Nesse contexto, com o advento da crise sanitária global causada pelo coronavírus, a APS ganhou destaque como uma das mais importantes estratégias de garantia do acesso à saúde, impactando diretamente as comunidades em situação de maior vulnerabilidade social. A respeito da sua atuação durante a pandemia de COVID-19, pesquisas apontam que, apesar de ter capacidade reduzida para atuar sobre a letalidade dos casos graves, uma vez fortalecida, organizada e com pessoal qualificado, o serviço pode contribuir para diminuir a incidência da infecção, com impacto significativo na mitigação da morbimortalidade da população.


Dentre as atividades desempenhadas pelos prestadores voluntários estão a atuação nos trabalhos de contenção do contágio, acompanhamento dos casos leves em isolamento domiciliar, apoio às comunidades no contexto de distanciamento social, identificação e condução de situações de vulnerabilidade individual ou coletiva e, principalmente, garantia do acesso a cuidados de saúde e o necessário encaminhamento nas fases mais críticas da epidemia. Além disso, o acompanhamento de questões paralelas que decorrem da epidemia de COVID-19 é outra responsabilidade atribuída à APS. Nesse escopo estão inseridas as situações de graves problemas financeiros enfrentadas pelos usuários e funcionários do sistema, sofrimento psíquico e emocional, além do aumento vertiginoso dos casos de violência doméstica durante o isolamento.


Por trás do trabalho desempenhado pela APS, crucial ao funcionamento do aparato público de saúde como um todo, estão os Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Peças centrais no desenvolvimento da política de saúde, esses profissionais interagem diretamente com os cidadãos, atuando por meio de visitas domiciliares, monitoramento e acompanhamento das famílias residentes em uma microárea. Eles são, sobretudo, responsáveis por conectar os usuários ao sistema. Nesse sentido, com o protagonismo de profissionais familiarizados às necessidades da população local, a abordagem comunitária potencializa os trabalhos de diagnóstico, prevenção e propagação de informações entre os segmentos sociais mais vulneráveis. A aposta dos especialistas no tema é de que o estreitamento do vínculo com a comunidade é não apenas uma forma eficaz, mas a chave para conter a disseminação do vírus.


Pesquisadores da FGV analisaram o perfil dos ACS e seu impacto no atendimento da população de regiões afastadas dos grandes centros e de alta vulnerabilidade social, como a Amazônia. A pesquisa mostra que as agentes comunitárias são majoritariamente mulheres negras, com baixa qualificação profissional e remuneração. A feminização do cuidado foi evidenciada na mais recente base de dados desenvolvida pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA). De acordo com as pesquisas, no Brasil, as mulheres correspondem a 78,9% da força de trabalho na área da saúde.


Além da desigualdade salarial, tão antiga como o tempo, pesquisadoras da Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP) apontam os riscos ocupacionais agravados pela pandemia, que incluem o excesso de horas trabalhadas, sofrimento psíquico, "burnout", estigmatização e violência física e psicológica, que podem ser amplificados por dinâmicas de gênero. Soma-se a isso a dupla jornada de trabalho feminina, pois, ao mesmo tempo em que atuando na linha de frente de combate à COVID-19, as mulheres seguem mães e chefes de família. Segundo o IBGE, 26,8% das famílias brasileiras com filhos são monoparentais femininas e, com o fechamento das creches e a necessidade de evitar o contato entre as crianças e os avós, que fazem parte do grupo de risco, elas perdem importantes apoios para o cuidado dos filhos.


Para além dos problemas sociais que perpassam a crise de saúde, o viés financeiro não caminha muito melhor. Os debates sobre o subfinanciamento do SUS e suas fragilidades não são de hoje. O histórico de insuficiência de recursos do sistema ao longo de toda a sua existência foi profundamente agravado pela Emenda Constitucional n. 95 - conhecida como teto de gastos. Ela representa uma barreira para a ampliação do financiamento da saúde, que não pode receber mais recursos sem que estes sejam cortados de outras políticas no âmbito federal.


A precariedade decorrente do descaso com que é tratado o sistema de saúde no país não poderia deixar de atingir a APS, que sofre com a ausência de mecanismos para garantir sua sustentabilidade. Tamanha a sua preponderância no financiamento das funções de atenção à saúde, a União, através da modulação da alocação de recursos, influencia diretamente na efetividade e velocidade com que a atenção primária responde às emergências de saúde pública. Nesse cenário, a redução da participação do governo federal, que concentra o maior poder de arrecadação e repasse ao SUS, resulta na debilitação dos serviços prestados à população - criticamente durante a pandemia.


Na emergência causada pelo novo coronavírus, a lentidão e o atraso na resposta governamental ao déficit orçamentário do sistema de saúde atuaram como majoradores da crise. O aumento da dotação orçamentária direcionada ao SUS só aconteceu a partir da segunda quinzena de maio, após a segunda mudança no comando do Ministérios da Saúde, e só a partir de julho e até meados de agosto é que os recursos foram transferidos em maior volume para estados e municípios, quando o país já contabilizava mais de 100 mil óbitos pela doença.


Apesar de sofrer com uma negligência preocupante, enfrentando inúmeras deficiências, o SUS mostrou sua importância incomparável durante a pandemia. A emergência sanitária evidenciou, mais uma vez, a urgência de um financiamento adequado para o sistema. Além disso, a centralidade da APS na garantia do acesso à saúde em momentos de crise como esse demonstra como o seu reconhecimento enquanto protagonista no sistema de saúde e, consequentemente, o trabalho de fortalecimento dos seus atributos, é imprescindível ao enfrentamento da COVID-19.


A capacidade do sistema de saúde para salvar vidas afetadas pelo novo coronavírus depende não apenas do número de leitos de UTI e respiradores, mas de uma organização e coordenação entre os níveis de atenção que garantam o acesso oportuno e ágil a esses equipamentos, diminuindo as chances de complicações decorrentes da doença. Nessa lógica, para atuar de forma efetiva no combate à pandemia cumulativamente à manutenção do fluxo de atendimentos precedente, a APS precisa ter capacidade operacional de detectar e tratar casos leves e moderados em tempo hábil, bem como encaminhar os casos graves rapidamente para os hospitais de referência.


A defesa dos especialistas é de que apenas uma APS forte e conectada aos demais pontos de atenção será capaz de minimizar os danos causados pela pandemia, ressaltando a importância de se adotar estratégias que possibilitem às suas equipes maior atuação comunitária e efetiva coordenação do cuidado. Enquanto isso, o necessário engajamento coletivo da população, gestores e profissionais da saúde deixa a desejar, com o egoísmo de multidões aglomeradas em festas e a perversa negligência do presidente debilitando ainda mais a capacidade do sistema de conter o aumento do rastro de mortes deixado pelo coronavírus.


Revisão: Cedric Antunes

Imagem da capa: Marcello Casal/Agência Brasil



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Referências:

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