O nosso Código Penal possui um crime chamado “vilipêndio de cadáver”, que visa proteger a honra e o respeito aos mortos, punindo aquele que de alguma forma traz humilhação e desprezo contra o cadáver ou as cinzas de alguém. Eu não pretendo discutir este crime, mas sim torná-lo uma analogia a uma triste realidade no Brasil: o quanto vilipendiamos a nossa história. E aqui adoto o termo “vilipendiar”, justamente porque a tratamos como um ente morto, uma carcaça, e viabilizamos o seu desrespeito e constante manipulação. Esse é o caso do tratamento oferecido à liberdade religiosa em nosso país, com plena desconsideração de sua trajetória histórica.
Quando falamos sobre liberdade religiosa no Brasil, diversos casos recentes vêm à mente¹, geralmente de grupos religiosos hegemônicos, como os cristãos, que buscam assegurar que suas ideologias não serão alvo de críticas, e que o discurso de ódio deve ser protegido enquanto dogma religioso a ser aplicado a todos.²
Segundo pesquisa do Datafolha de 2020, 50% dos brasileiros são católicos, 31% evangélicos, 10% não têm religião, 3% são espíritas, 2% umbandistas, candomblecistas ou de outras religiões afro-brasileiras, 1% são ateus, 0,3% judeus e 2% escolheram a opção “outra”.³
Atualmente, o direito à liberdade de culto está previsto no artigo 5º, inciso VI da Constituição Federal de 1988, nos seguintes termos: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
No entanto, diferentemente do que os casos recentes nos levariam a acreditar, sua origem não era propriamente sobre proteger religiões hegemônicas e com influência política em nossa sociedade. Aliás, a liberdade religiosa como a conhecemos veio por meio da luta de um comunista, muito conhecido por nós como o autor de “Capitães da Areia”: Jorge Amado.
Ao final do Estado Novo de Getúlio Vargas, durante a presidência de Gaspar Dutra, Jorge Amado foi eleito deputado federal de São Paulo pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Amado foi um dos políticos dedicados a reverter medidas repressivas do governo Vargas, especialmente quanto à supressão da liberdade de imprensa.⁴
Enquanto parlamentar, apresentou 15 emendas a serem incluídas na nova Constituição (1946), dentre elas: a isenção de tributos para a importação de papel para publicação de livros e jornais (Emenda nº 2.850), a não obrigatoriedade de ensino religioso nas escolas (Emenda nº 3.062), a supressão da censura prévia para publicação de livros e periódicos (Emenda nº 3.064), e, por fim, a liberdade de culto religioso, a Emenda nº 3.281⁵. Pouco tempo depois, o PCB seria colocado na clandestinidade e Amado teria seu mandato cassado.⁶
A Emenda nº 3.281 incluiu o seguinte texto, que se tornaria o parágrafo sétimo do artigo 141 da Constituição de 1946: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil.”. Nesse sentido, fixou-se que o Estado não pode proibir a prática de uma religião ou obrigar que uma em específico seja adotada por seus cidadãos. Isso é muito importante ao considerarmos a realidade brasileira na época, em termos jurídicos e fáticos. Sem perder de vista a laicidade, Amado foi contrário ao preâmbulo da Constituição que utilizava a expressão “proteção de Deus”.⁷
E como nasceu essa Emenda? A trajetória pessoal de Jorge Amado, que testemunhou desde jovem a repressão às religiões de matriz africana no Brasil, especialmente pela polícia, por fanáticos cristãos e pela imprensa, em muito contribuiu para que o político e escritor tivesse essa iniciativa disruptiva dentro do próprio partido e na Assembleia Constituinte. ⁸
Segundo dados da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro, 70% dos 1.014 casos de ofensas, abusos e atos violentos registrado no Estado entre os anos de 2012 e 2015 foram contra praticantes de religiões de matrizes africanas⁹. Entre uma série de exemplos de intolerância, pode-se citar caso que ocorreu em 2015, quando uma menina de 11 anos foi atingida com uma pedrada na cabeça ao voltar para casa após um culto, trajando vestimentas religiosas do candomblé. Nesse mesmo ano, um terreiro de candomblé foi incendiado em Brasília¹⁰. Em agosto deste ano, uma mãe perdeu a guarda de sua filha de 12 anos, após a criança participar de ritual de candomblé, o que só foi revertido após forte mobilização de movimentos sociais.¹¹
Conforme informações coletadas do Disque 100, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, foram registrados, entre 2011 e dezembro de 2015, 697 casos de intolerância religiosa nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Estudo da PUC-Rio sugere que esse tema enfrenta uma grande subnotificação: em diálogo com 847 terreiros, revelaram-se 430 relatos de intolerância, com apenas 160 sendo notificados e 58 levando a uma ação judicial¹². Portanto, a situação é pior do que indicam os registros oficiais.
É necessário destacar, no entanto, que a laicidade do Estado e algum grau de liberdade religiosa já eram previstos em outras constituições e normas brasileiras, não sendo uma contribuição unicamente de Jorge Amado.
A Constituição de 1824, da época do Império, trazia o seguinte em seus artigos 179 e 5º, respectivamente: “V. Ninguem póde ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado, e não offenda a Moral Publica” e “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo”. Diante disso, definia-se a religião católica como aquela a ser adotada no Império, limitando as demais práticas religiosas a locais específicos. Ainda, conforme o artigo 94, inciso III, aqueles que não fossem católicos não poderiam ser eleitos deputados¹³. Apesar de ser uma forma limitada de liberdade, foi o primeiro espaço para se existir legalmente fora da hegemonia cristã.
Anos depois, em 1890, o Decreto nº 119-A tornaria o Brasil um Estado laico, trazendo em seu artigo 1º: “E' prohibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e crear differenças entre os habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas.”. Tal fórmula daria base para diversas outras normas sobre laicidade que viriam a ser feitas, estabelecendo que o Estado não deve definir religião oficial, como ocorria no Império, muito menos vedar ou trazer empecilhos a alguma fé e seus praticantes.
No ano seguinte, a Constituição de 1891 traria em seu artigo 11, nº 2, a proibição de que os Estados e a União atrapalhassem, inviabilizassem, financiassem ou estabelecessem o exercício de cultos religiosos. Já o artigo 72, em seu parágrafo 3º, determinaria: “Todos os individuos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum”. O parágrafo 7º positivaria que nenhum culto ou igreja poderia receber subvenção oficial do Estado, nem com ele ter relações de dependência ou aliança (curioso destacar que o Brasil de 2020 violaria até a Constituição da Primeira República...).
A partir desse breve panorama histórico, percebemos como uma liberdade tão necessária, criada pensando na intolerância contra minorias religiosas do Brasil, é historicamente utilizada para viabilizar violências perpetradas por religiões em posição hegemônica. Mesmo havendo previsão legal, o respeito à liberdade de culto das religiões de matriz africana é fracamente concretizado, sendo vivida uma realidade distinta daquela que a lei prega. O Estado não apenas é incapaz de manter-se laico através de seus agentes eleitos, como assegura e protege justamente a perseguição dos que mais deveria proteger.
Texto por: Laura Kirsztajn
Imagem da capa: Bancada do PCB na Assembleia Constituinte de 1946 - Centro de Documentação e Memória da UNESP. Na primeira fila, o sexto é Carlos Marighela; Na segunda, o primeiro é Jorge Amado, o terceiro é João Amazonas, seguido de Luiz Carlos Prestes, biografado por Jorge Amado em O Cavaleiro da Esperança.
______________________________
¹ FALCÃO, Márcio. VIVAS, Fernanda. AGU pede ao STF para esclarecer se criminalização da homofobia atinge liberdade religiosa. TV Globo. 14 out. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/10/14/agu-pede-ao-stf-para-esclarecer-se-criminalizacao-da-homofobia-atinge-liberdade-religiosa.ghtml
² ROSSI, Neto. Religiosos que questionam aborto não fazem nada para combater estupro, diz teóloga. Ponte Jornalismo. 18 ago. 2020 https://ponte.org/religiosos-que-questionam-aborto-nao-fazem-nada-para-combater-estupro-diz-teologa/
CERIONI, Clara. TJSP: associação de religiosas pró-aborto não pode usar ‘católicas’ no nome. Jota. 27 out. 2020. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/justica/tjsp-proibe-uso-catolicas-organizacao-pro-aborto-27102020
³ 50% dos brasileiros são católicos, 31%, evangélicos e 10% não têm religião, diz Datafolha. G1. 13 jan. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/13/50percent-dos-brasileiros-sao-catolicos-31percent-evangelicos-e-10percent-nao-tem-religiao-diz-datafolha.ghtml
⁴ RESENDE, Roberta. Jorge Amado, 100 anos UOL Migalhas. 8 ago 2012. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/quentes/161328/jorge-amado--100-anos
⁵ RESENDE, Roberta. Jorge Amado, 100 anos UOL Migalhas. 8 ago 2012. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/quentes/161328/jorge-amado--100-anos
⁶ A união com Zélia e a atividade política. Jorge Amado. Disponível em: http://www.jorgeamado.com.br/vida.php3?pg=1
⁷ RESENDE, Roberta. Jorge Amado, 100 anos UOL Migalhas. 8 ago 2012. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/quentes/161328/jorge-amado--100-anos
⁸ PRANDI, Reginaldo. Religião e sincretismo em Jorge Amado. Disponível em: http://www.jorgeamado.com.br/professores2/05.pdf
⁹ PUFF, Jefferson. Por que as religiões de matriz africana são o principal alvo de intolerância no Brasil?. BBC Brasil. 21 jan. 2016. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160120_intolerancia_religioes_africanas_jp_rm
¹⁰ PUFF, Jefferson. Por que as religiões de matriz africana são o principal alvo de intolerância no Brasil?. BBC Brasil. 21 jan. 2016. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160120_intolerancia_religioes_africanas_jp_rm
¹¹ BASSETTE, Fernanda. Mãe perde guarda da filha de 12 anos após ritual de candomblé. Época. 7 ago. 2020. Disponível em: https://epoca.globo.com/mae-perde-guarda-da-filha-de-12-anos-apos-ritual-de-candomble-24571523
¹² PUFF, Jefferson. Por que as religiões de matriz africana são o principal alvo de intolerância no Brasil?. BBC Brasil. 21 jan. 2016. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160120_intolerancia_religioes_africanas_jp_rm
¹³ Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, abeis para serem nomeados Deputados. Exceptuam-se III. Os que não professarem a Religião do Estado.
Comments