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A ORIGEM RACISTA DA CLASSIFICAÇÃO "CAUCASIANO" (E O QUE O CÁUCASO TEM A DIZER)

Todos já se depararam com o termo “caucasiano”, mas quem realmente conhece a sua origem? A nossa redatora Laura Kirsztajn dilucida a origem moralmente irresoluta do termo e sua repercussão ideológica. Atenção especial às recomendações de músicas de origem caucasiana no final da nota


Muito provavelmente você já viu um filme em que descreviam o suspeito como “caucasiano”, ou já preencheu algum formulário que tinha a opção “caucasiano” como raça ou cor. De fato, aqui no Brasil e em vários lugares pelo mundo, esse termo é utilizado como sinônimo de branco e, até, de europeu. No entanto, a origem dessa palavra é bem controversa e bebe de fontes racistas, além do seu uso ser completamente errado em termos lógicos. Para compreender melhor o porquê, irei explicar em maiores detalhes a história por trás da palavra.


O Cáucaso é o nome atribuído a uma região localizada entre Europa Oriental e a Ásia Ocidental, abrangendo territórios de vários países e repúblicas autônomas, entre eles Rússia, Turquia, Armênia, Albânia, Azerbaijão, Geórgia, Ossétia do Sul, Abecásia, Chechênia e Irã. Essa região tem uma diversidade étnica e cultural gigantesca, tendo sido influenciada pelas civilizações árabe e bizantina (séculos V a XV), dominada por turcos seljúcidas (século XI) e invadida pelos mongóis (século XIII). Durante o século XVI, foi controlada pelo Império Otomano e, no século XVIII, foi invadida pelo Império Russo. Além disso, durante a Segunda Guerra Mundial, foi alvo de ataques alemães. Às pessoas nascidas ou originárias dessa região, é atribuído o nome “caucasiana”.


Superada essa breve introdução, passo agora à história da origem racista de “caucasiano”, que surgiu graças a Christoph Meiners (1747-1810). Meiners foi um filósofo e historiador alemão especializado em antropologia, o qual adotava a teoria poligênica, ou seja, uma teoria sobre a origem humana que sustenta que cada raça humana tem uma origem distinta. Sua obra serviu de base teórica para a formação ideológica nazista, dado seu conteúdo racista e segregacionista (essa história não é muito diferente da origem do que seriam os “arianos”).


Seus estudos consistiam num tabelamento das diferentes “raças” humanas segundo características morais, físicas e mentais, sendo a “beleza” ou a “feiura” consideradas fatores essenciais na caracterização da raça. Com isso, criou duas categorias em que a humanidade estaria dividida: a “bela raça branca” e a “feia raça negra”. Entre os grupos que ele categorizou como feios e inferiores, estão negros africanos, indígenas americanos, eslavos, povos do Oriente Médio e da Ásia. Por outro lado, o pseudocientista argumentava que o povo do Cáucaso tinha a pele mais branca, bela, delicada e brilhante de todas as estudadas, tendo como referencial os brancos da Geórgia.


Johann Blumenbach (1752-1840), um médico e antropólogo alemão também associado à pseudociência racista da época, utilizou-se da obra de Meiners (de forma não explícita), complementando-a ao dividir as raças humanas entre caucasianos (ou brancos), mongóis (ou amarelos), malaios (ou marrons), etíopes (ou pretos), e americanos (ou vermelhos, tratando-se dos indígenas americanos), segundo o estudo de seus crânios. A partir da sua análise de crânios, sustentava que o povo do Cáucaso (especificamente aquele da Geórgia) era o mais bonito que existia, o que o tornaria o berço da humanidade.


Diferentemente do outro pseudocientista, Blumenbach adotava a teoria monogenista, que acredita que a humanidade tem uma só origem ou descendente em comum. Para ele, Adão e Eva eram caucasianos habitantes da Ásia, e as outras raças teriam surgido a partir de “degenerações”, como excesso de sol e dieta inadequada (“teoria das degenerações”). Mesmo assim, por criticar alguns aspectos da obra de Meiners, não se considerava racista, já que não explicitava que as outras raças eram inferiores.


Aqui, percebe-se que essas teorias racistas influenciaram muito a forma como vários países classificam as diferentes cores de pele ou “raças”, chegando ao ponto de serem socialmente aceitas até os dias atuais. Entretanto, além de ter uma história discriminatória, o uso da classificação “caucasiano” como sinônimo de “branco” não leva em conta o próprio contexto étnico-cultural do Cáucaso.


Conforme explicado anteriormente, o Cáucaso é uma região que comporta mais de 50 grupos étnicos, sendo falados vários idiomas, como armênio, ossetiano, azerbaijano, cumique, russo, carachaio-bálcaro e osseto. Entre as religiões adotadas pela população, há os ramos sunita e xiita duodecimano do islamismo, o cristianismo ortodoxo, crenças nativas, xamanismo, o cristianismo armênio e o judaísmo.


As pessoas que vivem no Cáucaso têm as mais diversas origens, muitas sequer da Europa Ocidental, sendo várias de etnias euroasiáticas, tendo em vista a influência dos mongóis na região. Os ossetianos, por exemplo, descendem de nômades iranianos (citas e sármatas).


Dentro do contexto europeu, especialmente pensando em países como a Rússia e a Ucrânia, que têm muitos cidadãos originários do Cáucaso, vários indivíduos caucasianos não são vistos como brancos, sendo tratados como grupos nativos euroasiáticos (para facilitar a compreensão, seriam como os povos indígenas e tradicionais aqui no Brasil).


Cabe mencionar que, entre os grupos descritos nas viagens dos pseudocientistas, entre eles Blumenbach, os tártaros, ainda que caucasianos, tiveram suas características físicas menosprezadas e inferiorizadas, especialmente por vários terem a pele mais escura. Os povos da Geórgia que tinham a pele mais branca eram tidos como belos, ao passo que os Kalmuck eram considerados “a incorporação da feiura”, em razão dos traços euroasiáticos. É por esse motivo que utilizar uma classificação racista e associada ao branco europeu ao mesmo tempo em que é a designação da origem desses povos é extremamente ofensivo e sem bases fáticas.


Como é perceptível, essa classificação das etnias e povos foi amplamente adotada por países de todo o mundo. Os Estados Unidos, por exemplo, utilizaram as diversas categorias desenvolvidas por Blumenbach para justificar a escravidão e a segregação de povos “não caucasianos”. Inclusive, um caso muito curioso sobre o significado desse termo tomou conta da Suprema Corte dos EUA. Em 1928, por apenas caucasianos poderem tornar-se cidadãos estadunidenses, um homem indiano entrou com uma ação alegando que, pela noção antropológica de “caucasianos”, indianos também poderiam ser inclusos nessa categoria. O tribunal, no entanto, decidiu que “caucasiano” somente incluiria brancos europeus, negando a ele a cidadania estadunidense. Com isso, caucasiano passou a ser legalmente interpretado como “pessoa branca com ancestralidade europeia”. Além disso, como mencionado, a Alemanha Nazista utilizou-se desses escritos para a construção da sua base teórica eugenista.


O propósito deste texto não é policiar a linguagem alheia ou as formas de expressão cotidianas, muitas vezes distanciadas das origens do termo em questão. Entretanto, é preciso repensarmos quais tipos de expressões cabem a nós mantermos, sabendo que elas simbolizaram uma forma de discriminação de diversos grupos, que não deixaram de ser minorias nos tempos atuais.


Muitos termos com forte peso histórico e racista, inclusive, são amplamente usados na sociedade brasileira, simplesmente por falta de conhecimento sobre a sua origem, como é o caso da palavra “judiação” (“tratar como os judeus foram tratados”, apesar de questionar-se se essa expressão não seria uma referência também a Judas).


Parte da construção de uma sociedade plural e progressista envolve uma recusa à manutenção de tradições e elementos com vestes discriminatórias, pois é preciso fazer com que todos se sintam acolhidos e aceitos. Trata-se de uma inclusão efetiva e incondicionada, que não depende de estruturas de períodos antidemocráticos, escravistas e segregacionistas. Minorias não devem implorar para que ganhem espaço e recebam tratamento igualitário e com respeito às suas particularidades.


É preciso lembrarmos que não só as palavras não são isentas de uma ideologia racista, como é o caso das teorias antropológicas pseudocientíficas da Europa, mas também as instituições formuladas dentro desses contextos, justamente pelos agentes dentro do poder que dela se utilizaram para a manutenção do seu status. Por isso, se estamos tratando de convenções sociais, isso significa que temos em nossas mãos a capacidade de alterá-las e de extirpar símbolos históricos do colonialismo e da discriminação, que nada de positivo podem trazer para a sociedade, especialmente às minorias por eles afetadas.

Gostaria de agradecer especialmente à Morgana Zorić por ter me educado tanto sobre o Cáucaso, sendo a responsável por eu ter escrito este texto.


Referências:

Shaila Dewan: Has ‘Caucasian’ Lost Its Meaning?. History News Network, Columbian College of Arts Sciences. Disponível em: http://historynewsnetwork.org/article/152511

Um vídeo que explica bem a questão, de forma didática: https://www.youtube.com/watch?v=GKB8hXYod2w&feature=youtu.be

Nell Irvin Painter. “Why White People Are Called 'Caucasian’?”. Disponível em: https://glc.yale.edu/sites/default/files/files/events/race/Painter.pdf

Tod Perry. “The Racist Origins of The Word ‘Caucasian’”. Disponível em: https://www.good.is/articles/the-last-country-to-still-use-the-term-caucasian

Mica Pollock, Thea Abu El-Haj, Eduardo Bonilla-Silva, Ron Ferguson, Patricia Gándara, Vivian Louie, Sonia Nieto, Pedro A. Noguera, Sanjay Sharma, Christine E. Sleeter, Beverly Daniel Tatum, Angela Valenzuela, entre outros. “Everyday Antiracism: Getting Real About Race in School”. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=BMLcVcgn2V4C&pg=PT28&lpg=PT28&dq=degenerate+forms+of+god%E2%80%99s+original+creation.&source=bl&ots=NFglPYW536&sig=8dr-wQlleWWnolIKsICMEL5Nuvw&hl=en&sa=X&redir_esc=y#v=onepage&q=degenerate%20forms%20of%20god%E2%80%99s%20original%20creation.&f=false

Frances Larson. “Severed: A History of Heads Lost and Heads Found”. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=9B6MAwAAQBAJ&pg=PT127&lpg=PT127&dq=blumenbach+245+human+skulls&source=bl&ots=keBjA_9YNH&sig=ALJxBkJgMepT_dTVHCgjvib3CEY&hl=en&sa=X&redir_esc=y#v=onepage&q=blumenbach%20245%20human%20skulls&f=false

Anastasia Stepanova. “The Ossetians: from nomads and warriors to the artists of the Caucasus”. Disponível em: https://www.rbth.com/politics_and_society/2016/10/28/the-ossetians-from-nomads-and-warriors-to-the-artists-of-the-caucasus_643015

Músicas e cantores de origem caucasiana:

https://www.youtube.com/watch?v=zMTwB5iI3uE Trio Mandili - Erti nakhvit (grupo musical da Geórgia)

https://www.youtube.com/watch?v=PkqfKt5m4c0 Trio Mandili – Apareka

https://www.youtube.com/watch?v=R1TsgF5Sf7I Trio Mandili – Malika

https://www.youtube.com/watch?v=wEzuuB59khY Trio Mandili – Chito-Gvrito

https://www.youtube.com/watch?v=UAE9-VfkwaI Sevak Amroyan - Axpers u es / Ախպերս ու ես (“Meu irmão e eu”, música do cantor Sevak Amroyan sobre o genocídio armênio)

https://www.youtube.com/watch?v=UF9BcOvBwfM Inga & Anush - Jan Jan (cantoras armênias)

https://www.youtube.com/watch?v=HhUOoLrc9lA Когда мы были на войне. Кубанский казачий хор. (Kogda My Byli na Voyne - Quando estávamos em guerra – Coral Cossaco de Kuban)

https://www.youtube.com/watch?v=Gy7E2Gv4tOQ Пелагея и Кубанский казачий хор - Любо, братцы, любо (Pelageya [cantora russa] e o Coro Cossaco de Kuban)

https://www.youtube.com/watch?v=RPGLTHJrbLI Ойся, ты ойся - Московский Казачий Хор (Oysya ty Oysya – Coral Cossaco de Moscou)

https://www.youtube.com/watch?v=EuPfXQEhomo ახალი კლიპი რაჭაზე - Welcome To Georgia, Racha (música da Geórgia)

https://www.youtube.com/watch?v=wNECV2h-y58 Jamala – 1944 (cantora ucraniana de origem tártara da Criméia e armênia)

https://www.youtube.com/watch?v=3ApupQzeXOU Dima Bilan - Про белые розы (cantor russo da República da Carachai-Circássia – Sobre rosas brancas)

https://www.youtube.com/watch?v=zcoGTd6I1PM Дима Билан - Невозможное возможно (Dima Bilan – O impossível é possível)

https://www.youtube.com/watch?v=JdSueGGUs98 Chingiz Mustafayev – Bir sozle (cantor do Azerbaijão)

https://www.youtube.com/watch?v=bRuPHf4ljWM ЦIеста кIудал - Ризавди Исмаилов (música chechena)

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Nossa, quanta bobagem !

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