AVES INSONES
- Enrico Romariz Recco
- 29 de mai.
- 6 min de leitura
(Música para leitura:
Passaredo – Chico Buarque)
Por mais que eu tente, eu ainda não achei uma maneira de ter uma boa rotina de sono. Idealmente, parece uma ideia maravilhosa dormir quase que instantaneamente quando o relógio bate 22h (só nos dias úteis, claro), mas a realidade é que ou estou ocupado e sabe-se lá quando eu vou dormir ou eu só... não durmo. Eu também não me ajudo às vezes, não é? Mas no meio das minhas peripécias noturnas, rolando na cama para ver se Morfeu me encontra, durante essas sessões da madrugada, escuto sempre uma coisa das mais inesperadas pela minha janela: o canto dos pássaros ecoando pelas árvores.
Mas, pera lá, pássaros? De madrugada? Cantando? É, então, eu fiquei tão surpreso quanto você, mas nunca fui atrás para descobrir o porquê. Apenas ficava escutando e apreciando a beleza. Mas, como a curiosidade é um negócio insistente, um dia eu decidi dar uma olhada sobre o motivo desses pássaros cantarem a essas horas. Pelo visto, são Sabiás-Laranjeira, uma ave típica no Brasil e que, de acordo com pesquisas feitas com moradores da cidade de São Paulo por volta de 2013, as aves trocaram o dia pela noite e começaram a cantar de madrugada, atrapalhando o sono dos paulistanos que se sentem “incomodados” pelo canto.
Bom, já dá pra começar por aí, porque dizer que odeia canto de passarinho é mau-caratismo na certa. Certamente um monstro, mas o meu editor também me informa que os outros têm uma rotina de sono bem organizada e não escrevem textos às 2:40 da manhã sobre uns pássaros que eles escutam na janela. Enfim, eu acho os cantos as coisas mais bonitas que tem, imagine ir dormir com pássaros ao fundo? Dá um ótimo sonho. Estão até te ajudando, seu Morfeu.
Mas o que mais me intrigou sobre essa história inteira é o porquê de os pássaros terem se tornado sonâmbulos: eles estão com estresse de viver em São Paulo e eu não estou nem inventando essa parte! Se compararmos os horários dos cantos dos mesmos pássaros no interior e na capital, só os da capital é que cantam de madrugada, isso porque, talvez, quem sabe, não sei, São Paulo seja apenas a maior cidade do hemisfério sul, “a cidade que nunca dorme”. O trânsito interminável da cidade (junto com as luzes dos postes e outros fatores) fizeram com que os pobres pássaros perdessem as horas e cantassem de madrugada. Aqui a gente percebe claramente como o ambiente molda os que convivem nele, o estresse humano causado pela cidade, a principal característica de SP, passou até para os pássaros. A que ponto chegamos? Portanto, minha solução: vamos abandonar isso tudo, urbanismo já tá virando meio demodê mesmo. Fugere urbem, cambada!
Ok, vamos dar um passo para trás. Nem sei quem quero convencer com essa ladainha. É claro que somente abandonar a causa não resolve problema algum. Afinal de contas, identificar bem o problema é apenas metade da solução—e acho que nem isso fizemos direito. Não podemos, assim do nada, decretar que São Paulo vai só funcionar em horário comercial; que as luzes serão desligadas após às 22h e que agora haverá toque de recolher: a cidade é quase um ser vivo, tem vontade própria, vontade essa que é influenciada pelas decisões tomadas pelas suas mais de 12 milhões de células pensantes.
Lembrem-se: a natureza sempre dá um jeito. E para todas as causas, existe um número significativo de consequências. Você acha que aquela sua atitude não vai dar em nada, mas no outro dia reclama porque os pássaros estão acordando muito cedo. “Como assim eles estão cantando agora?”, indignado. No frigir dos ovos, aquilo que compõe a cidade é justamente aquilo que queremos, assim como o resto do planeta. Agir de forma imprudente e depois se chocar com a resposta da Mãe Natureza é sem sentido, até irracional.
Enchemos as ruas cada vez com mais carros, todos os dias, daí olhamos para cima e vemos aquele céu permanente cinza com ar de espanto. Passamos pela marginal Tietê e fechamos a cara ao sentir o odor nem um pouco prazeroso do nosso rio e ainda achamos ok largar um papelzinho na rua—é só um, né? Não faz mal. Vai nessa. Sentimos a temperatura aumentar a cada dia e então? Paramos para pensar nas nossas ações? Vai ver São Paulo é só caótica mesmo. O aquecimento global não é característica exclusiva desses Campos de Piratininga, somos mais uma vítima. Ou melhor, mais um conivente, já que a vítima é quem sofre mais. E lá se vão os pássaros…
Parece óbvio, mas se a natureza se ferra, além de ser nossa culpa, estamos juntos nessa com ela. Vai todo mundo ralo abaixo. Ela sempre acha um jeito, foi isso que aprendi com o tempo—e com Jurassic Park. Seja para o bem, seja para o mal, ela vai encontrar uma solução. Os humanos estão emitindo muitos gases poluentes? Então vou destruir a camada de ozônio! Eles estão cultivando plantas repletas de agrotóxicos que acabam danificando a planta também? Pois vou dar um jeito dessa mesma planta poder reter um pouco do agrotóxico e, quem sabe, infectar um ser humano! Vamos todos andar em plena marginal às 2:00 da manhã a 90km/h? Perfeito, deixa eu só acabar com o sono dos pássaros que eu te libero.
Quando casos como o do túnel da Sena Madureira vêm à tona e vemos gente abraçando árvores para impedir as máquinas, já vêm gente chegar para querer dizer que estão querendo “interromper o progresso”. Mas quando impedir uma área de interesse social e proteção ambiental de ter suas árvores centenárias derrubadas e os cerca de 200 moradores da região despejados é considerado “deter o progresso”, eu não sei onde enfiamos a cabeça. No chão, repleto de asfalto impermeável? Na água, poluída e inabitável? Ou na consciência, cheia de piche?
Quando vemos o transporte público ser cada vez mais sucateado, vendido a empresas que nada querem saber da eficiência e cuidado com o público, também contribuímos para isso. Quando temos um sistema de trens que gera falhas regularmente, podemos culpar quem pega um Uber para chegar a tempo no trabalho? A consciência tem de pesar, mas infelizmente o bolso pesa mais. Afinal de contas, cuidar do meio ambiente também envolve garantir que todos tenham as mesmas condições de se preocupar com ele.
Quando se estabelece uma meta de ter uma frota de ônibus na qual 20% funcionarão a energia limpa, mas só se entrega 3,7%, que reação temos de ter? “Paciência, o Estado é ineficiente mesmo”. “Tinha que entregar para a iniciativa privada”. Eu sempre reparo em um adesivo colado em todos os ônibus da cidade, perto da porta dianteira. “Transporte: direito do cidadão, dever do Estado”. Ver um sistema quebrar e transferir a bucha para o mercado não exime ninguém, e nem sempre resolve. Mas no final do dia: o que eu tenho a ver com isso? Eu faço minha parte! Separo meu lixo, ando pouco de carro, uma vez ou outra jogo uma embalagenzinha de chocolate na rua, mas também ninguém é de ferro. Não é culpa minha!
Quando ninguém é culpado, todos somos culpados.
Longe de mim querer a minha própria mutilação e a do resto da espécie humana, mas isso tudo serve como um aviso para nós e todas as futuras gerações que virão. Não se pode brincar com a natureza, porque ela vai brincar de volta e, na maioria das vezes, não vai ser de um jeito bom. Agora é o momento certo para agir para que diminuamos o nosso impacto no planeta, deixá-lo mais a sós, sem uma interferência que cause mais dano do que ajuda, e nós temos maneiras de fazer isso acontecer. Mas, como quase tudo nessa vida, às vezes não vale somente milhares de pessoas pedirem desesperadamente por algo se algumas 10 pessoas não quiserem uma real mudança.
Ninguém ama essa cidade mais do que eu. Talvez apenas nossa querida Rita, mais paulistana que o santo, mas até ela não iria aguentar ver o que estamos fazendo com ela e o catalisador nacional—quiçá mundial—que ela está se tornando. E justamente por essa quase devoção a SP é que adoraria ver ela ser mais bem cuidada. Mais do que isso: ver sua natureza vibrar. A convivência em sociedade necessita que deixemos de lado algumas de nossas vontades egoístas em prol de todos, e contribuir para cada vez menos poluição é sempre um benefício.
Então, enquanto for assim, teremos o aquecimento global e o canto dos sabiás eternamente sendo a irritação de alguns. Quanto a mim? Eu até gosto do canto deles, mesmo entendendo o sofrimento, a confusão natural de que ele deriva. Minha melhor sugestão então agir o mais rápido e de qualquer maneira que podemos para que possamos mudar isso.
Ou também há sempre os tampões de ouvido, algo que, pelo visto, já está sendo usado por muitas pessoas. Nunca usei, não sei se funciona tão bem.
Quer tentar?
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Autoria: Enrico Romariz Recco
Revisão: André Rhinow
Imagem da capa: http://olimpiareisresque.blogspot.com/2014/11/lendas-e-curiosidades-o-sabia-laranjeira.html
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