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CAMPO DE GUERRA





Os ferimentos de Danilo Fernandes, goleiro do Bahia, após o atentado contra o ônibus da equipe baiana. Imagem: Instagram do jogador



Começou com um estrondo. Em janeiro de 2021, antes de uma partida válida pela 32º rodada do Brasileirão contra o Coritiba, o ônibus do São Paulo foi vítima de uma emboscada no caminho ao estádio. O trajeto usual do time havia sido alterado antes do jogo e, mesmo assim, o ônibus foi atacado na altura da ponte Eusébio Matoso, na zona oeste da capital paulista. Uma investigação posterior da Polícia Civil apontou a participação de um conselheiro do clube, que forneceu aos agressores o trajeto da equipe até o estádio do Morumbi. Naquele dia, mesmo com o atentado, houve jogo: um empate de 1x1 entre o time paulista e a equipe paranaense.



Isso foi ano passado. Em 2022, a temporada do futebol brasileiro mal começou e episódios de violência no ambiente do futebol já se multiplicaram: um torcedor são paulino entrou armado no gramado em um jogo da Copinha entre Palmeiras e São Paulo, e foi na direção dos jogadores palmeirenses; o assassinato de um torcedor palmeirense por um agente penitenciário, após a final do Mundial de Clubes; um atentado contra o ônibus da equipe do Bahia, que quase cega o goleiro da equipe baiana. Só no mês de fevereiro, outros episódios de violência também tiveram como alvo jogadores do Grêmio, Náutico, Paraná e Cascavel.



O clima beligerante no futebol brasileiro não é novidade. Com o esporte que é paixão nacional, a nossa relação com ele sempre esteve mais próxima de um relacionamento abusivo do que de um vínculo efetivamente amigável. A própria alcunha de "país do futebol" de certa forma expõe a fragilidade de quanto realmente somos apaixonados pelo esporte nacional: é possível amar os nossos jogadores, clubes e técnicos ao mesmo tempo que os tratamos com tamanha violência?



Não são só as pedras nos ônibus, ou as invasões aos centros de treinamento: todo o discurso proeminente sobre o futebol nas bocas de dirigentes, jornalistas e torcedores é impregnado de ódio, raiva e rancor. No estádio, é entendível que o torcedor comum se exalte e profira aos jogadores e ao técnico ofensas mais genéricas como "vagabundo", "mau-caráter" ou "lixo". Esse tipo de discurso, porém, torna-se um problema quando ultrapassa o ambiente estressado dos estádios e aterrissa no vocabulário de jornalistas e influenciadores nas mídias tradicionais e sociais, cujo alcance é inegavelmente maior, atingindo milhares de pessoas, que também passam a propagar ódio à determinadas figuras.



É natural que uma experiência tão vivida e sentida como a futebolística por vezes nos faça agir de maneira irracional. Mas o que é evidente aqui é como comportamentos violentos no meio deixaram de ser apenas exceções, e se tornaram parte recorrente desse ecossistema. A mídia tradicional sempre foi um vetor de toxicidade nesse sentido, com apresentadores e comentaristas que recusam qualquer ponderação e atacam os técnicos e os jogadores como se estivessem falando de um conflito armado. As redes sociais só pioraram essa condição: a aparição de influenciadores de cada torcida, que encontram nas inevitáveis frustrações causadas pelo esporte um meio para promover ódio e raiva direcionado aos jogadores sem nenhum compromisso ético, abalam cada vez mais a relação entre os jogadores e torcedores. Não à toa, com esse espaço entre torcida e atletas sendo diminuído, tornou-se incrivelmente recorrente jogadores sendo alvo de todo tipo de comentário criminoso em suas redes, com muitos bloqueando sua caixa de comentários para evitar essa conduta.



Essa lógica do nosso futebol certamente guarda semelhanças com aspectos violentos da sociedade brasileira, mas atribuir todos os problemas do futebol a essa conjuntura social não deixa de ser uma muleta para a permissividade com esses comportamentos. Ora, mesmo que seja influenciado por tendências e práticas comuns à vida brasileira, o futebol no Brasil não é apenas uma parte da nossa sociedade, mas também um meio fechado em si mesmo, com ritos, regras e costumes. É uma indústria que, de tão grande, muitas vezes opera fora da lógica do esporte no país. Desse modo, torna-se muito conveniente colocar a culpa de todos esses problemas do futebol na nossa sociedade, e ignorar que este é uma esfera com atores específicos, que não só são permissivos com a violência, como também a encorajam, reproduzindo-a frequentemente.



Villasanti, meia do Grêmio, após atentado ao ônibus gremista. O jogador paraguaio sofreu traumatismo craniano e uma concussão. Imagem: Grêmio/Divulgação



Mesmo quando mecanismos de fora dessa esfera se manifestam, visando combater atos de violência de torcedores, os resultados foram pífios. Talvez o grande fracasso nesse sentido, pelo menos no estado de São Paulo, foi a adoção de torcida única nos clássicos. A decisão tomada pelo Ministério Público em 2016, e acatada prontamente pela Federação Paulista de Futebol, partia de um pressuposto quase ingênuo: se as torcidas de times rivais não estivessem no mesmo estádio, o número de confrontos entre as torcidas se reduziria. Besteira. Seis anos se passaram e episódios de violência envolvendo torcedores de futebol continuam a acontecer, o que prova que, no final das contas, a sociedade precisava apenas de um bode expiatório ao qual a culpa seria imediatamente atribuída – nesse caso, as torcidas organizadas (TOs) –, para depois fechar novamente seus olhos para o real problema.



As TOs certamente tem sua boa dose de culpa – no já citado jogo da Copinha entre São Paulo e Palmeiras, alguns torcedores foram alvo de racismo, ameaças e agressões por uma torcida organizada são paulina. Mas se torna muito confortável para a imprensa, os clubes e as federações elegerem as TOs como inimigo único quando estas são mais sintoma do que causa de um ecossistema corrompido pela violência, especialmente considerando que esses atores têm parcela semelhante de culpa em alimentar esse ambiente de ódio. Sendo as TOs imediatamente atribuídas como culpadas desses problemas, muitas de suas práticas comuns no estádio, como o uso amplo de bandeirões, sinalizadores e faixas, foram por tabela proibidas, em um esforço em par com a elitização dos estádios brasileiros. O ingresso médio aumentou, estádios tradicionais foram substituídos por tradicionais arenas, a festa popular na arquibancada foi reprimida. Mesmo assim, a violência no nosso futebol não acabou.



O futebol, que deveria ser a nossa grande festa popular, se torna um ambiente marcado por ressentimento e medo, com conivência e participação de clubes, federações e imprensa. Assim, acabamos por inviabilizar o dia a dia dos torcedores, reprimindo condutas banais como usar camisa do seu time em dia de clássico, e criando um ambiente em que jogadores e técnicos são sempre os inimigos, os culpados, que devem ser destruídos com xingamentos, pedras e socos.



No presente momento, a situação é insustentável: jornalistas esportivos como PVC e Carlos Eduardo Mansur sugerem que os jogadores devem entrar em greve. A ideia é ótima e 100% plausível, afinal, não faz sentido que uma categoria diariamente ameaçada continue trabalhando, não até que medidas reais de combate à violência no futebol sejam tomadas, como punições específicas para os agressores. O futebol ser movido pela paixão está longe de ser um defeito – pelo contrário, esse é o seu maior apelo. Mas essa paixão não pode ser usada como conduto para comentários e comportamentos violentos, e é necessário que, como sociedade, busquemos meios eficientes de coibir a violência no futebol, para que o números de vítimas não aumente enquanto assistimos sentados à tragédia da semana.



Autoria: João Pedro Fernandes Revisores: André Rhinow e Guilherme Caruso

Imagem de capa: Instagram do jogador Danilo Fernandes, goleiro do EC Bahia




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