top of page

QUEM TEM MEDO DO ABOLICIONISMO PENAL?

O texto da nossa redatora, Laura Mastroianni Kirsztajn, traz à tona um tema em que reina a desconfiança social e prevalecem as opiniões majoritariamente contrárias. Poderíamos deixar de punir um indivíduo por algo que fez de errado?

“Nunca houve uma transformação social significante na história que não tenha sido considerada irreal, estúpida ou utópica pela grande maioria dos especialistas, mesmo antes do impensável se tornar realidade.” Sebastian Scheerer


Muito se fala de prisão e punição, mas pouco se discute seriamente as alternativas ao modelo que possuímos. Aqueles que ousam fazê-lo são tomados como lunáticos ou idealistas, e a impressão que se passa é que isso é algo plenamente irreal e novo, quando, na realidade, há uma gama gigantesca de sustentação teórica e empírica sendo feita há décadas. É justamente essa a proposta do texto: tornar ao menos uma parte desse debate algo menos superficial e distante.


Primeiro, vamos ao básico, dando os devidos nomes: o Abolicionismo Penal é uma vertente da teoria criminológica crítica formada por diversos pensamentos teóricos e posicionamentos políticos, cujo ponto em comum é a adoção da diretriz da supressão da pena de prisão e da pena autoritariamente imposta. Seu surgimento teria ocorrido após a Segunda Guerra Mundial, em que se deu a retomada de debates humanistas. Essa vertente tem uma série de autores, e aqui me limito a citar a estadunidense Angela Davis (1944), os holandeses Louk Hulsman (1923-2009) e Herman Bianchi (1924-2015), e os noruegueses Nils Christie (1928-2015) e Thomas Mathiesen (1933). Nesse texto, tomarei como base a abolicionismo penal proposto por Mathiesen.


Mathiesen é professor de Sociologia do Direito na Universidade de Oslo e foi criador da KROM (Organização Norueguesa Anti-carcerária), dedicando-se à criminologia radical, com trabalhos sobre prisão, política criminal, mídia e sistemas de vigilância surgidos com a modernização. O seu trabalho não se limitou à Noruega, ganhando atenção por todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos, país que é recorrentemente seu objeto de estudo em razão da sua imensa população prisional.


Em seu texto de 1997 “A Caminho do Século XXI – abolição, um sonho impossível?”, Mathiesen almeja mostrar ao leitor que o abolicionismo, assim como a queda do Império Romano e a escravidão moderna, é uma transformação social possível, ainda que desacreditada em nossos tempos. Além disso, ele aponta como a prisão é irracional em seus objetivos, e como isso é um fator chave para o seu questionamento e a sua manutenção: trata-se de um segredo mantido a sete chaves.


A partir disso, o sociólogo norueguês traz um exemplo histórico sobre mudança cultural, a abolição da caça às bruxas na Espanha, como uma hipótese que demonstra como todo um sistema penal, aparentemente sólido e duradouro, foi desintegrado e desapareceu em um período de apenas quatro anos. Teria existido uma mudança cultural no interior da Inquisição Espanhola em razão de uma preparação ou moderação cultural contra a maior parte dos tipos de caça às bruxas, o que resultou na abolição completa desse sistema.


Nas primeiras décadas do século XVII, havia uma febre intensa de bruxas no Norte da Espanha, com bruxas francesas cruzando as fronteiras e sendo perseguidas. Cabia a um tribunal local julgar os casos de bruxaria, e da parte deles haveria uma carnificina. Ocorre que, quando os membros do tribunal local discordavam na tomada de decisão, cabia à La Suprema, a autoridade responsável pelo sentenciamento na Inquisição, intervir, e sua postura era extremamente moderada. Nesse contexto, o inquisitor Salazar realizou uma grande investigação sobre bruxas na qual se descobriu que não havia provas de bruxaria. Com esse descobrimento, La Suprema suspendeu os casos de bruxaria, sendo feitas novas regulamentações que colocariam fim a essa perseguição em 1614, muito antes do resto dos países cessarem a caça às bruxas.

Diante disso, tem-se que a mudança cultural na Inquisição se deu por meio da vitória de uma cultura alternativa e a compreensão dentro do sistema inquisitório. Partindo para a atualidade, a mudança cultural no sistema penal tem como fator importante a mudança em direção a um senso de responsabilidade pessoal por parte dos que nele trabalham. Porém, apenas isso não é suficiente: o ponto central de Mathiesen é que o sistema penal é elaborado por políticos, sendo muito mais dependente de um contexto geral da “opinião pública” e dos meios de comunicação de massa.


Mathiesen entende que o sistema prisional é “um gigante sobre um solo de barro” (expressão norueguesa), um sistema aparentemente sólido com pilares deficientes, muito semelhante à escravidão, ao Império Romano e à legislação soviética em seus estágios finais. O solo de barro da prisão, seu calcanhar de Aquiles, é sua total irracionalidade em termos de seus próprios objetivos estabelecidos, assim como uma caça às bruxas sem provas. É por isso que esse autor sustenta que a prisão não contribui em nada para a nossa sociedade e o nosso modo de vida.


A prisão tem cinco objetivos que são usados como argumentos para o encarceramento, e que Mathiesen comprova que, na realidade, em nada são alcançados. O (i) primeiro é a reabilitação, que é derrubado por meio dos diversos estudos empíricos da Sociologia e da Criminologia que mostram que o uso do aprisionamento não reabilita o infrator encarcerado: a prisão é contraprodutiva na reabilitação. Outro objetivo é a (ii) intimidação do indivíduo, que sustenta que o transgressor trazido para a prisão ficará assustado e afastado do crime por ter sido levado para lá, o que é rebatido por estudos que evidenciam que essa intimidação não ocorre, especialmente levando em conta o sistema social de reclusão e sua subcultura.


O terceiro, (iii) a prevenção geral, trataria dos efeitos de intimidação, educação ou formação de hábitos na sociedade em outros que não foram punidos ou não estão para serem punidos no momento. Esse efeito é menos certo e significado na determinação do desenvolvimento do crime na sociedade do que seriam as políticas econômicas e sociais, afetando de maneira diversa estratos diferentes de grupos populacionais. A severidade esperada da punição não mostra efeito algum, talvez somente um efeito da experiência subjetiva do risco de detenção detectada em pesquisas de Karl Schumann.


Ainda na prevenção geral, Mathiesen comenta que a ineficiência preventiva da prisão é um problema de comunicação, posto que a punição é o modo pelo qual o Estado busca comunicar uma mensagem, especialmente a grupos particularmente vulneráveis na sociedade. No entanto, esse método é extremamente rude, e a mensagem é difícil de ser transmitida, em razão da incomensurabilidade da ação e da reação. A mensagem é filtrada e deturpada, sendo confrontada com uma resposta cultural nos grupos, que a desconsideram, terminando por neutralizá-la.


O objetivo de (iv) interdição do agressor se dá em dois âmbitos: a interdição seletiva e a coletiva. A primeira seria uma predição individual de transgressores violentos de alto risco com base em critérios de antecedentes específicos. Em contraposição a ela, há os estudos que demonstram que realizar esse tipo de predição é difícil e que as taxas de falso positivo e falso negativo (os erros de predição) são extremamente altas. A interdição coletiva seria o uso da prisão contra categorias inteiras de prováveis reincidentes. É a noção de se trancar as pessoas e “jogar a chave fora” com o objetivo de tirar os transgressores do círculo social. Essa foi uma filosofia adotada nos EUA, e o resultado foi direto: entre 1973 e 1982, a quantidade de prisões dobrou, enquanto a taxa de crime cresceu em 29%. Outra falha dessa lógica é esquecer que “a geração atual de delinquentes não é a última”, ou seja, que mesmo se houvesse uma redução na taxa de criminalidade, ela seria logo apagada.


O último objetivo falho da prisão é a (v) justiça equilibrada. Essa é a ideia de que a prisão pode balancear o ato repreensível, equalizando os “pesos da justiça”. A isso, Mathiesen questiona: a prisão realmente pode fazer esse balanço? Ao que se responde: não, esse tipo de ato não pode ser balanceado com precisão. Temos a transgressão criminal de um lado, e o tempo do outro; são entidades incomensuráveis e a balança da punição não é capaz de ser ancorada com segurança. Ademais, a escala de punições é algo construído sobre o barro e muda conforme os ventos políticos e, outro fator central, é que a balança de punições dá a vítima pouca ou nenhuma satisfação nesse cálculo. Assim, o que é decisivo, mais do que qualquer busca por justiça, é o vento político.


Após serem evidenciados todos esses fatores, por que ser cético em relação às prisões é algo visto como lunatismo? Para Mathiesen, isso se deve ao fato de o conhecimento da irracionalidade da prisão ser, em grande parte, secreto. Se as pessoas soubessem com quanta fragilidade as prisões as protegem, e como elas somente criam uma sociedade mais perigosa por produzirem “pessoas mais perigosas”, haveria um clima para desmantelamento da prisão. Mas não bastaria uma informação fria e seca sobre isso, é preciso que essa falha seja sentida em um nível emocional profundo, fazendo parte da definição cultural sobre a situação. Esse novo clima seria representado em dois âmbitos: uma ênfase renovada no apoio real às vítimas e em recursos e serviços sociais ao agressor.


No sistema atual as vítimas não recebem absolutamente nada e, nesse novo contexto, o reverso seria feito. O apoio às vítimas seria dado de diversas formas exemplificadas pelo autor: por meio de compensação econômica do Estado; um sistema de seguro simplificado; o apoio simbólico em situação de luto e pesar; abrigos para onde levar as pessoas quando necessitarem de proteção; centros de apoio para mulheres vítimas de violência, entre outras possibilidades. Logo, ao invés de se aumentar a punição do transgressor de acordo com a gravidade de sua transgressão, haveria um aumento do apoio à vítima na medida da gravidade da transgressão.


A procura de recursos para o transgressor seria feita numa transição do que temos hoje como “guerra contra o crime” para uma “guerra contra a pobreza”. Isso seria feito por meio de moradias decentes, programas de trabalho, educação e tratamento não baseados na força, além de uma mudança na política de drogas. Haveria uma legalização das drogas, tornando-as disponíveis sob condições sanitárias e supervisionadas, neutralizando o mercado ilegal e reduzindo drasticamente a quantidade de crimes relacionados às drogas.

A pergunta aqui, é: quem pagaria por tudo isso? E a resposta é simples: as prisões. O desmantelamento das prisões daria somas vultuosas de dinheiro que serviriam para as vítimas e os transgressores. Ainda, em termos de metas presentes, assumindo que alguns indivíduos ainda permanecerão encarcerados, a ideia é lutar para que os critérios sejam alterados, estabelecendo-se um limite absoluto para o número de celas fechadas para tais pessoas.


Sem deixar de ser cético em relação a cenários políticos complicados para a sua pauta, o sociólogo norueguês diagnostica que os meios de comunicação em massa são a principal chave que protege a prisão e mantém a sua irracionalidade em segredo. Assim, se a mídia mudasse o conteúdo de um divertimento superficial para um conhecimento crítico, seria criada uma mudança cultural básica com repercussões em todas as áreas, atingindo a todos, até aqueles que se beneficiam do sistema carcerário atual. A linha de ação por ele defendida é o alternativ offentlighet, um espaço público alternativo na política penal, em que a argumentação e o pensamento honesto e escrupuloso representariam os valores dominantes.


Com isso, a teoria de Mathiesen delineia em vários níveis o que seria uma proposta abolicionista ideal aos seus olhos, bem como os caminhos mais básicos para que isso seja de fato possível, e não apenas um sonho. Longe de ser algo “metafísico”, essas proposições têm forte base empírica, suporte esse que cresce constantemente, tendo em vista que o sociólogo elaborou esse trabalho no final dos anos 1990, e após esse período muito mais conteúdo foi produzido apoiando cada uma de suas teses.


A irracionalidade da prisão é de fato um segredo, mas eu acredito que ao menos a alguns de nós ele já foi revelado, e que isso deve ser um incentivo para que nós espalhemos esse segredo para o máximo de pessoas possível. A prisão pode ser irracional, e nós bem temos os nossos bugs comportamentais que minam parte de nossa racionalidade, mas, na situação em que nos encontramos, devemos nos agarrar ao pouco de método, ciência e racionalidade que ainda possuímos no espaço social, especialmente quando tudo isso se encontra sob ataque.

bottom of page