O texto de hoje é uma crônica de nossa redatora Laura Kirsztajn, que faz parte do seleto grupo de alienígenas que escrevem com a mão esquerda.
Quando eu nasci, o meu irmão disse que eu era uma alienígena. Provavelmente porque eu tinha aquela cara estranha de bebê, que parece um joelho (não que isso tenha melhorado). Alguns anos tiveram que se passar para que eu pudesse efetivamente contestar a tese do meu irmão, porque, para isso, seria necessário saber falar e entender o que é um extraterrestre. O problema é que foram nesses anos que eu me dei conta de que era efetivamente uma alienígena.
Quiçá isso seria perceptível nas primeiras garfadas, ou, até, nos primeiros rabiscos na parede. Mas você só descobre que é uma extraterrestre quando encontra os terráqueos, certo? Por isso eu suspeito que foi na escola que eu percebi que naquela sala eu era a única a desenhar com a mão esquerda, e, nos jantares de família, que só eu tomava a sopa de kneidl segurando a colher com essa mesma mão.
O problema foi ler estudos que diziam que, geneticamente, para eu ser quem eu sou, deveria ter canhotos na minha família... e eu não achava os outros alienígenas, recessivos misteriosos. Investiguei cada garfada, cada colherada, cada anotação, e nada de algum canhoto se revelar. Desprovida de muito intelecto, eu não fiz o básico: perguntar. Depois de anos, certa de que eu era efetivamente um E.T., a minha avó contou aleatoriamente como que sua professora batia em sua mão esquerda para que ela aprendesse a escrever com a direita. Chegava até a amarrar pesos para que fosse inviável usar essa mão. Era a mão errada. Pois bem, de fato funcionou, porque em todos esses anos ela era destra para nós. Talvez canhota de coração?
A descoberta foi relativamente tardia, porque eu já tinha iniciado a minha Escola do Professor Xavier reversa: treinamento intensivo para ser normal. À noite, antes de dormir, eu pegava uma mini-lousa e treinava como escrever com a mão direita. Em minha defesa, eu não havia sido alfabetizada na escola nessa época, então não tinha muitas alternativas de frases que desenvolvessem uma habilidade destra decente. Mas dava para enganar.
Resumindo muitos anos em poucas palavras: a missão não deu certo, porque eu fui alfabetizada e descobri que a minha letra com a mão esquerda já era suficientemente feia e ilegível. Nesse meio tempo, eu encontrei outros canhotos por aí, já que saí da minha escola minúscula de bairro. Somos 10% da população, então, era só uma questão de frequentar outros espaços.
Aí é que começou um novo problema... acostumada a ser a herdeira única de todas as carteiras para canhotos que surgissem em uma sala de aula, deparei-me com a concorrência. Na mente dos destros, uma mísera carteirinha com braço esquerdo era suficiente para cada turma. Resultado: guerra. E foi numa disputa por carteira de canhoto que eu precisei me explicar para a coordenadora da escola.
Canhotos não são um grupo homogêneo: você tem os assimilados ao mundo destro, os revoltados e os chatos. Eu já fui os três, mas a minha dor nas costas demandou menor assimilação. Aquela sala devia ter umas quatro canhotas: duas assimiladas, duas revoltadas. Nós, canhotos, não somos uma classe unida.
Para os destros, bastava sentar no mesmo lugar por uma semana que aquela carteira era sua; para os canhotos, era o estado de natureza descrito por Hobbes. Uma carteira de destro poderia mudar para qualquer lugar da sala que não existiria conflito, talvez nem percebessem. No entanto, a carteira de canhoto muda de local, mas não de dono. Todos os canhotos têm legitimidade para reivindicar aquela carteira, não importa onde ela esteja. E é aí que nascem os conflitos: os canhotos assimilados têm tanto direito quanto os revoltados? Quem chegar primeiro tem a posse da carteira?
Não foi a discussão da qual eu mais me orgulho na minha vida, mas ela me instigou bastante. De fato, a melhor solução não era acampar na escola 2h antes do início da aula para ser a primeira a reservar a carteira de canhoto. Foi aí que eu me entendi como a revoltada que eu sou: canhotos do mundo, uni-vos! Por que brigar com três canhotas, se eu posso incomodar 90% da população com a minha chatice?
Minha alternativa foi bem reformista, vou confessar: entrei no site da Câmara dos Deputados e encontrei uma caixa para enviar mensagens para os parlamentares. “Caros deputados, passei por uma situação inconveniente na escola, o que me fez perceber que a forma como distribuem carteiras de canhoto nas salas de aula não funciona e só causa conflitos.”, devo ter escrito algo assim. Sem o mínimo método científico, argumentei de forma confiante: “Canhotos são 10% da população, então 10% das carteiras têm que ser para nós. Façam uma lei obrigando as escolas a garantirem esse número de carteiras. Chega de injustiça.”. Como era esperado, nunca me responderam. A democracia burguesa começou a decepcionar bem cedo aqui em casa.
Para ampliar a imersão no universo alienígena canhoto, vou contar uma grande insatisfação que eu tenho: ser perfeccionista e, ao mesmo tempo, ser canhota. Todo mundo sabe do drama de manchar o papel e a mão com a tinta da caneta, não vou falar disso. O nosso vilão se chama tesoura. Pois é: a lâmina da tesoura é disposta de tal forma que quem manuseia com a mão direita vai ter uma boa visão do que está cortando; já quem usa a esquerda é abandonado à própria sorte e perseverança.
Crente de que não estava sozinha nesse infortúnio laminado, surpreendi-me com o deboche de canhotos que aprenderam a manusear a tesoura com a mão direita. “Seus professores não te ensinaram?”. Não, Karen, eles não receberam o memorando. Foi assim que eu descobri que não apenas havia canhotos assimilados, mas também traidores de classe.
Serei sincera agora: tive meu grau de assimilação. Sei usar o mouse do computador do lado direito melhor do que qualquer destro. E já tentei, sinceramente, fazer o mesmo que as crianças canhotas que recortavam com a mão direita.
Quando eu decidi aprender a tocar violão, estava determinada: agora você vai ser normal, Laura, você não vai inventar de ser o Jimi Hendrix. Na primeira aula, informei o professor de que era canhota, porém, queria tocar como os destros, por ser mais prático. Ele me respondeu que o certo era tocar na posição que fosse mais instintiva e confortável para mim: “Segura o violão”. Certa de que enganaria o professor e acabaria me assimilando como destra, segurei o violão, satisfeita. “É assim que os destros tocam violão, né?”, ao que ele respondeu: “Não. Vamos inverter as suas cordas”.
O Dia Mundial do Canhoto é comemorado em 13 de agosto, tendo sido inventado por um grupo de canhotos no Reino Unido como uma forma de conscientização sobre a existência desses alienígenas. No passado, éramos associados ao Diabo, àquilo que era desajeitado, torto, errado, gauche (tipo Drummond), sinistro... em síntese, tudo que há de ruim no mundo. Hoje em dia, cabe a cada canhoto reivindicar esses estereótipos para si.
Já fiz minha parte.
Foto da capa: Seymour Chwast
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