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TORNAR-SE MULHER




Quando você nasce menina, parece que a sua família já tem pronta uma lista de marcos necessários até você virar mulher. Ela vai mais ou menos assim: primeira menstruação, primeira paixão, primeiro namoradinho, primeiro beijo e festa de quinze anos – não necessariamente nessa ordem. Tem também os pequenos ritos, como pintar as unhas, depilar-se, usar salto alto, um vestido bonito e maquiagem. Isso do ponto de vista binário e heteronormativo dominante na sociedade brasileira, claro.


Pode ser muito bom tornar-se mulher. Eu adoro fazer parte da roda de conversas feminina que parece involuntariamente se formar nos eventos de família e, à medida que cresço, ser incluída nos assuntos mais sérios. É gostoso se arrumar para uma festa com as amigas. Colocar aquela roupa um pouco mais arrumada, talvez não tanto do seu estilo. No ensino médio, as festas de quinze costumam ser bem divertidas, quer você opte por um momento mágico, de princesa, uma viagem inesquecível ou só por um "parabéns" um pouco mais caloroso com amigos e família. Menstruar, TPM, cólicas – por mais desagradáveis que sejam – não deixam de inspirar certa solidariedade feminina. Quem nunca dependeu do absorvente ou remédio para cólicas dado por outra mulher? E tem também o primeiro beijo, o primeiro flerte, os namoros oficiais e os incertos. Aquela confusão do deixar de ser criança e o sentimento agridoce de ficar cada dia mais velha.



Tem a parte menos agradável de se tornar uma mulher. É perceber que sua mãe cuida de quase tudo em casa: supermercado, louça, cozinha e faxina, geralmente com uma ajuda mínima de seu pai. É perceber o medo que nos foi incutido desde cedo, mais ou menos explicitamente. A mãe de uma amiga que avisa do homem estranho visto no banheiro feminino, “não deixem as meninas irem sozinhas”. Pegar um Uber, nunca só, especialmente se for de noite. Não andar sozinha à noite. Tomar cuidado ao passar por um grupo de homens. Não usar roupa muito curta no transporte público. Na verdade, sempre pensar duas vezes antes de colocar uma roupa decotada. Nunca ninguém me disse a maioria dessas frases, mas elas fazem parte do meu dia a dia e da série de cautelas que tomo toda vez que saio de casa.


Apesar de todos os alertas, sinto que esqueceram de me avisar devidamente dessa parte de virar mulher. Que, muito além de menstruar, fofocar no banheiro com as amigas, debutar e namorar, tornar-se mulher é sofrer assédio pela primeira vez. É ouvir sua amiga contar sobre o cara do metrô, o homem estranho na balada, o sujeito que insistiu mesmo depois do “não”. Isso se você mesma não for essa amiga. Pergunte a qualquer mulher que você conheça, tenho certeza que ela já teve uma experiência traumática com um homem. E, ao mesmo tempo, uma experiência de assédio pode parecer tão pequena. Como explicar que aquele cara na rua não estava apenas elogiando sua beleza?


Para esse “rito” de tornar-se mulher não há festa. Ficamos quietas. Não se chega em casa e fala “mãe, me assediaram pela primeira vez hoje”, mesmo que isso seja tão parte de tornar-se mulher quanto o (meio desesperado) “mãe, acho que comecei a menstruar” ou (feliz) “estou namorando”.



Autoria: Gabriela Veit Barreto

Revisão: André Rhinow e Anna Cecília Serrano

Imagem de capa: Pintura Habitada, 1975. Col. Fundação de Serralves - Museu de Arte Contemporânea, Porto. Aquisição em 1999



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