“Gente, preciso ir. A moça que trabalha lá em casa chegou para me buscar”. Essa foi a frase que ouvi de uma amiga da escola, no meu segundo mês estudando em um colégio cuja mensalidade era maior do que o salário dos meus pais. Fazia pouco mais de dois meses que havia ganhado uma bolsa de estudos e caído de paraquedas em um universo ao mesmo tempo fascinante e aterrorizante, muito diferente daquele com que eu estava acostumado. Penetrar a classe média alta paulistana e, por vezes, a blindada elite paulistana é uma missão quase impossível. Como um homem cis branco, oriundo de uma familia estruturada e letrada, claro, a tarefa foi mais fácil para mim do que possa ter sido para outros colegas. Ainda assim, sempre houve um incômodo. Um exponencial e sufocante incômodo.
Aprendi a transitar entre dois mundos completamente diferentes e que nunca, em hipótese alguma, se misturaram. Era a fórmula perfeita. Com o passar do tempo, o choque de realidade se tornou mais fácil de ser suportado. Eu só não contava com aquele maldito incômodo. “A moça que trabalha em casa não passou minha camisa”; “A Marli ajuda a gente com a limpeza da casa”; “Ela é minha babá desde que eu nasci”. Seria normal me sentir tão mal com cada frase proferida pelos meus jovens amigos de escola? Tarde demais, pois as sensações de raiva e estranhamento, quase um não pertencimento, estavam despertas. Ao mesmo tempo, tudo isso evocava saudosismo de uma época em que as coisas eram mais simples para mim.
A cisão final do universo perfeitamente equilibrado que eu havia criado a fim de atravessar três anos de ensino médio veio no momento, quase fatídico, em que eu conheci pela primeira vez a empregada de um dos meus amigos. Fim. O relato poderia acabar aqui. Seco, sem aprofundamento e, acima de tudo, sem tocar em feridas que machucam todas as partes que compunham a história: eles, os patrões. Elas, as empregadas. E eu, preso entre a dualidade do choque desses dois universos. Às empregadas dos meus amigos ricos: sinto muito.
Muito antes de ingressar em um colégio caro ou visitar apartamentos em bairros nobres, eu também já tive contato com uma “moça que trabalha lá em casa”. Um contato realmente profundo e sentimental, que não se resumia a algumas ordens mal dadas e um presente de Natal no fim do ano. Minha avó, Eliane, foi a minha primeira e maior referência de uma empregada doméstica.
Ela sabia ler, escrever e se comunicar muito bem. Uma brilhante exceção para mulheres pobres de sua geração. Sabia relativamente bem o inglês — aprendeu durante os quase vinte anos em que trabalhou em um hotel de luxo em São Paulo — e a matemática. Era uma mulher preta, embora muito provavelmente nem ela mesma se reconhecesse assim. De seus 61 anos de vida, trabalhou por 47. A maioria deles como empregada doméstica de famílias de classe média alta e alta de São Paulo. Famílias que, anos mais tarde, também cruzaram o caminho de seu neto mais novo, mas de uma forma muito diferente.
Acompanhei minha avó em ao menos três empregos. Enquanto criança, nunca me senti acuado ou mesmo questionei aquele sistema, tão antigo no Brasil quanto a missa de domingo. Chegar por volta das 7 horas da manhã — saindo de casa às 5h30 para tal — passar na padaria para comprar o pão, cumprimentar o porteiro da manhã e subir pelo elevador de serviço até o andar em questão. Entrar por uma cozinha fria e apertada, se trocar no quarto de empregada e, finalmente, ocupar uma ampla e bem decorada sala para limpá-la. Muito entusiasmado, eu a acompanhava nesses pequenos rituais. Sorrindo, alegre por estar no trabalho da minha vó. Uma mudança na rotina entediante da escola.
“Dona Eli, arruma isso, por favor?”; “Eli, faz o almoço antes dela ir para a escola?”; “Dona Eli, te amo”. As frases que, anos mais tarde, reverberam na boca dos meus colegas de classe foram proferidas primeiro pelos patrões da minha avó.
Cresci. Mudei. Minha avó, finalmente, se aposentou. Infelizmente, mal aproveitou a sua liberdade. Morreu pouco mais de um ano e meio depois que fechou a porta de serviço da última casa para a qual trabalhou. Mesmo antes disso, eu já havia passado a notar todas as imensas problemáticas das dinâmicas estabelecidas em relações de trabalho doméstico. Das dinâmicas entre os patrões, seus filhos e as “moças que trabalham lá em casa”. Esse termo, já no ensino médio, seria um dos maiores mastros de incômodo interno de minha parte. Há um pacto feito entre os ricos de se evitar a palavra empregada. O medo gerou as mais diversas alterações absurdas de uma palavra tão simples. Não é ruim ser empregada. Ainda assim, há um acordo em apagar o termo de seu vocabulário – vergonha? Por isso, os eufemismos exacerbados a fim de tornar mais branda a imagem de uma classe abastada acostumada com a ajuda da babá no jantar ou com a faxineira buscando os filhos dos patrões na escola.
Passei a criticar aquelas famílias que me receberam em suas casas. Claro, como o neto da empregada. O mundo que minha avó – e antes dela a minha bisavó – conheceu era tudo o que havia de errado neste país. Não seria um pedaço de bolo e um sorriso simpático de alguma médica ocupada que mudaria isso.
Quando ingressei no meu ensino médio, era com os filhos criados por minha avó que eu iria estudar. Como eu disse antes, não foi tão difícil. Demorou até que alguém notasse que eu andava até o ponto de ônibus para voltar para casa. Conhecia um mundo além dos limites daquele bairro arborizado e limpo. Com o tempo, os temores da não aceitação foram se esvaindo. Percebi que estava conseguindo fazer bons amigos e me incorporei – mesmo que parcialmente – naquele mundo.
No entanto, o incômodo ainda estava ali. As “moças que trabalham lá em casa” evocavam em mim a revolta acumulada sempre que eram citadas. Era fácil, no entanto, esquecer disso nas 11 horas que passava dentro da escola.
O problema estaria resolvido se ele permanecesse apenas na escola. Eu não contava, porém, que a intimidade com meus amigos me levaria a adentrar mais uma vez o espaço que eu já conhecia, só que de outra posição. Os porteiros da manhã, os apartamentos em um andar alto, as cozinhas cinzentas apertadas e as salas bem decoradas. Agora eu era convidado, diretamente pelos donos daqueles lugares, a permanecer ali.
De repente, minha avó saía de algum canto para me cumprimentar e sorria timidamente frente a um grupo de adolescentes brancos ocupando a sala que ela havia acabado de limpar. “Essa é a moça que trabalha aqui há anos” ou qualquer coisa desse tipo logo saía da boca do meu anfitrião e ecoava por uma sala ampla. Silêncio. Após cumprir seu papel de forma exemplar, minha avó voltava para a cozinha. Ela havia morrido fazia um ano e, ainda assim, sua figura estava ali, viva, em pé e trabalhando. Como ousava deixar para trás as pobres crianças que ajudou a criar? Como poderia deixar na mão sua patroa tão ocupada e dependente? Simples: não poderia nunca abandonar tal posto. Seria recriada em outras mulheres de origem parecida, e o status quo seria mantido, como todo o resto, por ela.
A ruptura que ocorreu naquele momento era simbólica e, ao mesmo tempo, destruidora. Me retraía timidamente frente à figura daquela mulher que, anos antes, poderia ser a que eu acompanharia em um ônibus rumo a um apartamento como aquele. Provavelmente, é a mesma que eu poderia encontrar horas depois no ponto de ônibus, voltando para o mesmo lugar que eu.
O tempo passou, mas os encontros com as empregadas dos meus amigos ricos nunca se tornaram mais fáceis. Pelo contrário, quanto mais eu crescia, mais forte era aquele incômodo. Quanto mais eu adentrava o mundo da classe alta, mais eu me segurava desesperadamente nas lembranças infantis e idílicas de uma visita ao trabalho da minha avó.
Outra fase na faculdade, pensava eu. Com mais bolsistas e, com sorte, mais gente com quem compartilhar essas dualidades. Ao mesmo tempo, mais gente que só conhece a “moça que trabalha lá em casa” da porta de serviço para dentro, com Marlis que os criaram, com Sonias que cozinhavam para eles, com Cleides que passavam suas roupas. Com Elis que faziam tudo isso.
Por um momento, fui tentado a acreditar na ilusão de que a vida em uma faculdade cuja mensalidade era maior até mesmo do que a do meu colégio – que por sua vez era maior do que o salário dos meus pais – seria muito mais fácil. Eu ainda era o neto da moça que trabalhava na casa dessas pessoas. Elas, claro, nunca mostraram se importar com isso. Eu, por outro lado, achava torturante a experiência de estar em um mesmo espaço que essa moça, dessa vez como visita, amigo dos filhos dos patrões. Não mais seu neto.
Embora seja muito difícil desvincular a crítica, a revolta e o ataque desse relato pessoal, não é minha intenção primária fazer você, leitor, que talvez esteja nesse momento em um apartamento que foi limpo pela minha avó, se sentir desconfortável. Talvez você saiba de toda a problemática histórica em volta das relações empregadas/patrões. Talvez só não seja tão difícil para você se livrar disso, desse meio, quanto para mim é tentar me livrar das lembranças.
Somos amigos, claro. Frequentamos a mesma faculdade, as mesmas festas, os mesmos lugares. Há, entretanto, um abismo social que nos separa, das formas mais sutis possíveis. A mais improvável coisa que pode nos conectar nesse abismo é a moça que trabalha na sua casa. A sua empregada. Exaustivamente, eu luto contra a angústia de ter que equilibrar as visitas ocasionais que faço a você, em sua sala ampla, olhando para a cozinha cinzenta que, por vezes, era a minha entrada na sua casa. Não é culpa sua, nem minha.
Não há um final feliz para esse relato, justamente porque ele não acaba aqui. Serão anos à frente com encontros incômodos com suas empregadas. Serão semanas intermináveis nas quais ninguém parece entender as agonias dos netos delas. Servirá como um desabafo, então. Um respiro no qual posso despejar em vocês as agonias acumuladas de pelo menos quatro anos, coitados.
A vocês: fim, obrigado pela leitura. Às empregadas dos meus amigos ricos: o ônibus passa às 18h. Podemos pegar ele juntos, já que vamos para o mesmo lugar.
Autoria: Arthur Quinello
Revisão: André Rhinow, Anna Cecília Serrano e Luiza Parisi
Imagem de capa: Camila Izidio/Carol Rocha- reprodução
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