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A CULPA É DOS RICOS! E OS RICOS SÃO OS OUTROS



Na última semana, uma notícia causou muita discussão nas bolhas de política e de economia do Twitter. O ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio, prestes a se aposentar, soltou a frase: “Enriquecer nunca foi meu objetivo. Se fosse, não teria abraçado a magistratura, [que] é praticamente um voto pela pobreza” [1]. O fato do ministro, que ganha um salário de 39.293 reais [2], considerar a sua carreira um voto de pobreza me lembrou o não tão famoso Teorema de Góes, que diz o seguinte:


Teorema de Góes: a linha da riqueza para um determinado indivíduo será dada por:

Linha da riqueza = renda do indíviduo + k

tal que k>0


Traduzindo: não importa quão alta seja sua renda ou quão maior seja seu salário em relação ao restante da população, os ricos são sempre os outros - aqueles com renda maior que a sua - você é no máximo classe média alta. Sempre vai existir alguém com uma renda mais alta para culpar pelas mazelas da sociedade e pela desigualdade social gritante no país. Aliás, a distribuição de renda no Brasil é algo que foge muito à noção dos ricos de “classe média”.


Se pudéssemos enfileirar todas as pessoas do Brasil que trabalham a partir da renda – da pessoa com o menor salário à pessoa com o maior salário – o cidadão exatamente no meio na fila teria uma renda mensal de 1.113 reais – 35 vezes menor do que o salário do ministro Marco Aurélio. A pessoa que ganhasse mais de R$6.024 estaria entre os 5% primeiros da fila, e a partir de R$15.048 estaria entre os 1% mais ricos [3].


Isso, porém, não conta a história toda. Afinal, nem todas as pessoas trabalham ou recebem algum tipo de renda e o salário de uma pessoa na grande maioria das vezes é gasto com toda sua família. Precisamos, então, olhar para a renda familiar per capita, e o que encontramos é que metade das famílias tem renda de míseros R$757 mensais (ou menos) por pessoa [3].


Pode parecer chocante para muitos de nós, mas é com no máximo essa renda que assustadores 103 milhões de brasileiros vivem. E não é preciso tanto quanto se imagina para estar entre os mais abastados: se sua família tem renda de R$2.551 por pessoa você está nos 10% mais ricos do país e se tem renda de R$4.016 por pessoa está entre os 5% mais ricos do país [3]! O que isso mostra é que o Brasil não é somente um país desigual, mais do que isso: o Brasil é um país pobre e talvez você, caro leitor, tenha descoberto que é mais rico do que pensava.


Apesar dos dados mostrarem a triste realidade de que o Brasil é o Brasil, a maioria de nós ainda acredita que o Brasil é a França. Em pesquisa da Oxfam Brasil de 2020, metade dos brasileiros acreditava que estaria entre os 10% mais ricos com renda de R$20 mil, valor muito distante dos “modestos” R$4.000 realmente necessários [3]. Incríveis 85% acreditam estar entre os 50% mais pobres do país [4].


Curiosamente, na mesma pesquisa, 0% dos entrevistados disseram ser ricos [4]. Zero! Absolutamente ninguém é rico! Entretanto, a maioria acredita que “os ricos” devem pagar mais impostos para financiar educação, saúde e moradia. Ora, mas se ninguém é rico, quem vai pagar esses impostos? É fácil atacar o privilégio de alguém se você acredita que tem sempre gente suficientemente mais abastada que você para pagar a conta – os ricos são os outros.


Aqui já fica bem claro o problema de política de distribuição quando ninguém é rico. Obviamente, a grande maioria das pessoas acredita que a renda deve ser distribuída dos ricos para os pobres. Porém, se as pessoas têm uma noção tão errada de quem está em cada grupo, como convencer um privilegiado de seu próprio privilégio? Como convencer alguém que seus R$10.000 mensais, por mais que não sejam suficientes para comer lagostas todo final de semana e viajar pra Europa duas vezes por ano, o colocam numa situação melhor do que 196 milhões de brasileiros? Quem são os ricos que vão abrir mão de seus privilégios e ter sua renda distribuída aos pobres? Não é por acaso que o Brasil gasta apenas 0,5% do PIB em Bolsa Família [5]e quase absurdos 10% do PIB com previdência [6].


Outro caso semelhante ao do ministro ocorreu ano passado, quando o ator Bruno Gagliasso disse que se considerava classe média e que não estava no topo da pirâmide. Assumindo que o ator tem uma renda de R$20 mil (o que é uma estimativa bastante pessimista), sabemos que ele está entre os 1% mais ricos. Além disso, por mais que sua renda seja de R$20 mil, essa é apenas uma fração de sua riqueza.


Aliás, a diferença entre renda e riqueza é outra coisa que faz muitos ricos perderem a noção do próprio status. Com uma mansão luxuosa em Paraíba do Sul, a riqueza de Bruno está tranquilamente na casa dos milhões de reais [7]. Ou seja, o ator, que é de “classe média”, não só tem uma das maiores rendas do país como também é milionário. Quando falamos, por exemplo, em impostos sobre grandes fortunas, estamos falando de impostos sobre riqueza. Nesse caso, nem mesmo os milionários se enxergam como milionários.


Ainda na questão dos impostos sobre grandes fortunas, mesmo em países que os aplicaram, a alíquota tende a ser baixa pelo simples fato de que a maior parte do patrimônio está de maneira não líquida, isto é, assim como a mansão do Bruno Gagliasso, as fortunas não podem ser vendidas e transformadas em dinheiro tão facilmente. Países como a Noruega e a Suíça, por exemplo, que instituíram esse imposto, possuem alíquotas de 0,7% e de 1% e em ambos os casos a arrecadação do imposto não chega a representar nem 1,5% do PIB [8]. Em nenhum país do mundo a alíquota do imposto passa de 2% do patrimônio e sua arrecadação não chega a representar 2% do PIB em nenhum desses locais.


E aqui não estou falando contra o imposto sobre grandes fortunas, muito pelo contrário, considero-o bastante válido, especialmente com o aprofundamento das desigualdades pós-pandemia. Contudo, não podemos achar que esse imposto vai resolver todos os nossos problemas de arrecadação e redistribuição – se não serve de fonte de arrecadação em países com quantidade muito maior de ricos, quem dirá no Brasil, onde o potencial arrecadatório seria muito menor.


Uma fonte mais eficaz de redistribuição seria por meio de uma tabela mais progressiva do imposto de renda, pela tributação de lucros e dividendos e pela distribuição da própria renda – que ocorre em programas como Bolsa Família. Será muito difícil, porém, construir políticas públicas de redistribuição se o topo da nossa pirâmide não só se chama de “classe média” como também acha que deve ser beneficiado por algum tipo de privilégio que vai ser pago pelos “verdadeiros ricos”. O problema é que os “verdadeiros ricos” são o próprio topo da pirâmide. Se quisermos realmente ver as desigualdades diminuir, fazer uma distribuição de renda equitativa e construir um Estado de bem-estar social, os ricos terão que pagar a conta. E os ricos somos nós.


Revisão: Guilherme Caruso e Julia Rodrigues

Imagem de capa: Emiliano Ponzi


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Referências:








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