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A DITADURA MILITAR PELOS OUVIDOS DA MPB





“Apesar de você amanhã há de ser outro dia. Você vai ter que ver a manhã renascer e esbanjar poesia” - Chico Buarque



A música popular brasileira, a famosa MPB, surgiu na década de 1960 no Rio de Janeiro através de uma espécie de revolução musical: com o declínio da Bossa Nova e a chegada de novas inspirações do jazz norte-americano, os artistas brasileiros passaram a produzir um novo estilo musical que se distanciava dos gêneros comumente produzidos no país, como o samba e a marchinha, passando a direcionar os caminhos da história musical brasileira rumo a um cenário repleto de originalidade.


Com a instauração da ditadura militar no Brasil em 1964, a classe artística, cuja importância para a formação da opinião pública sempre foi de grande relevância, teve sua voz censurada por mecanismos governamentais repressivos. Por meio da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), órgão criado em 1934 pelo presidente Getúlio Vargas e fortalecido durante a ditadura militar, a Polícia Federal brasileira tornou-se responsável por fiscalizar os conteúdos bibliográficos, culturais e midiáticos reproduzidos no país durante o regime. Tais mecanismos deram forma e legalidade para todo o aparato repressivo do regime militar, juntamente ao AI-5, que dava ao representante do Legislativo o poder de suspender os direitos políticos de cidadãos considerados “subversivos”, além de constitucionalizar a prática da censura prévia dos conteúdos midiáticos. Assim, foi moldado todo o aparato repressivo do regime militar, que garantiu não somente a censura das obras musicais, mas a perseguição e o exílio de seus compositores.


Entretanto, isso não impediu que os artistas formassem uma espécie de frente ampla contra o governo militar. A resistência cultural fez com que a MPB passasse a ser mais do que apenas um gênero musical: ela constituiu também um movimento político e social ao representar parte da população em suas críticas, muitas vezes escondidas de maneira engenhosa em meio ao lirismo das canções, que denunciavam as situações de injustiça política e social, o estado de vulnerabilidade da população e, especialmente, a censura governamental.


O uso de figuras de linguagem, como metáforas, eufemismos e neologismos, foi um recurso utilizado pelos artistas para transmitir suas mensagens, mesmo com toda a represália governamental. A música Tropicália, de Caetano Veloso, exemplifica de maneira excepcional o uso desses recursos linguísticos. No segundo refrão da canção, a repetição do fonema “ta, ta, ta, ta” remete ao som de uma arma de fogo, acusando a violência do regime. No decorrer da canção, há um outro jogo de palavras com o fonema “ia”, que ao ser cantado várias vezes de maneira contínua, passa ao ouvinte a impressão de que o cantor está falando “ai”, fazendo referência aos gritos de dor das vítimas do regime.


A música Cálice de Chico Buarque, ao se aproveitar da semelhança sonora entre o título da canção e o verbo “calar-se”, também exemplifica as críticas contidas na MPB contra a censura vigente no período da ditadura. Apesar de Você, também uma composição de Chico, representa talvez uma das críticas mais evidentes ao regime militar. Na estrofe inicial da canção “Hoje você é quem manda // falou, tá falado // não tem discussão, não”, o artista retrata o caráter autoritário do regime e, mais tarde, no verso “Você que inventou o pecado”, o compositor apresenta sua interpretação sobre como o AI-5 foi o mecanismo responsável por categorizar condutas como uma espécie de pecado para o regime por meio da criminalização. Entretanto, a canção segue com a seguinte mensagem: "Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”, demonstrando outro papel essencial da MPB nos tempos da ditadura militar: manter a chama da esperança acesa, representada por mensagens exaltando tempos de maior liberdade.


Considerada um hino da resistência popular, a música Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, compositor que, assim como Chico Buarque, precisou se exilar após sofrer perseguição pela composição, também representa uma função fundamental da Música Popular Brasileira nos tempos da ditadura militar: a convocação popular para manifestações políticas. A estrofe “Vem, vamos embora // Que esperar não é saber // Quem sabe faz a hora // Não espera acontecer” relata o tom de urgência e o chamado pela realização de movimentos populares.


As músicas do período também serviram como um porta-voz para as denúncias dos casos de tortura protagonizados pelo governo. A canção “O Bêbado e a Equilibrista”, famosa na voz da cantora Elis Regina na versão de 1979, representa um período já de declínio do regime. No trecho “Choram Marias e Clarisses // No solo do Brasil”, a cantora faz referência a Maria de Lima, filha do operário Manoel Fiel Filho, e a Clarice Herzog, esposa do jornalista Vladimir Herzog. Os dois homens foram presos políticos durante o regime militar e passaram por inúmeras sessões de tortura no prédio da DOI-CODI, órgão subordinado ao Exército, responsável pela inteligência e repressão de civis que se opunham ao governo. Ambos os casos acabaram nos assassinatos dos presos políticos, e foram registradas oficialmente, mas de maneira falsa, como suicídio.


A arte transcende o seu papel como mecanismo capaz de nos afastar da realidade, sendo também um elemento responsável por trazer à tona discussões e reivindicações sociais, e é esse caráter reivindicatório que fez com que ela se tornasse um elemento fundamental para a resistência, não somente durante a ditadura militar, mas durante toda a história. A arte, seja ela uma representação visual ou sonora, é uma ferramenta de inclusão e de formação social que permite que pautas marginalizadas ganhem espaço através da divulgação em rádios, na televisão e nas performances públicas. Nos dias de hoje, as canções e as narrativas desses artistas revolucionários que marcaram a história da MPB servem como registro de um período emblemático da história brasileira e são também responsáveis por manterem vivas as lembranças de tempos sombrios por meio da sensibilidade lírica das melodias e do peso da luta que elas representaram e continuam representando no âmbito sociocultural brasileiro.


Autoria: Victorya Pimentel

Revisão: Bruna Ballestero, André Rhinow, Artur Santilli, Glendha Visani


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Referências:


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