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AINDA ESTAMOS AQUI?


(Música para leitura: 

“É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo” – Erasmo Carlos)


Esses dias me veio uma reflexão: será que sei quais foram todos os filmes sobre a ditadura que tivemos? Me vieram à cabeça Marighella e O Que É Isso, Companheiro?, mais algum? Eu não sabia, não conseguia me lembrar. Estava pensando nisso quando os créditos começaram a rolar e as pessoas iam se levantando de seus assentos. O filme era Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, que tomou os cinemas de todo o País durante semanas a fio. Mas já parou para pensar no impacto disso? Porque eu só comecei depois que o vi.


Não há quem possa negar que o filme é uma febre, eu nem me lembro ao certo de onde começou, parece que veio meio do nada. Estávamos todos nós lá, vivendo nossas vidinhas e do nada PÁ: tem Fernanda Torres sendo aplaudida em pé por 10 minutos no festival de Veneza. E todo mundo pensou: “Minha nossa! Mas que filme é esse?” E antes que pudéssemos fazer algo PÁ: o filme foi o escolhido da Academia Brasileira para representar o País no Oscar 2025 e agora, pela primeira vez em 25 anos e pela segunda vez na história, uma brasileira poderia concorrer ao Oscar de melhor atriz. E então todo mundo pensou: “QUE FILME É ESSE?” Pois rapidamente o povo brasileiro descobriria que filme era esse e digo mais: não se desapontaria.


Para os que ainda não o viram, o filme conta a história de Eunice Paiva, esposa de Rubens Paiva, engenheiro e ex-deputado cassado durante a ditadura militar. Uma família de classe alta da sociedade carioca, que um dia se viu em desespero quando alguns homens armados levam Rubens para um “depoimento de rotina” que aparenta durar muito mais do que algo rotineiro. É um filme que além de tratar das brutalidades da ditadura, retrata a força e a luta interna de Eunice tentando manter a família e si mesma sã, apesar de tudo que vinha acontecendo. Algo que mudou sua vida da água para o vinho em um piscar de olhos. Além das sequelas horrendas da tortura, este filme nos mostra os efeitos da ausência que os torturadores causaram àqueles que ficavam. A profundidade do filme ainda é complementada com atuações brilhantes das nossas maravilhosas Fernandas: Torres e Montenegro, no papel de “Eunice”, e o incrível Selton Mello como “Rubens Paiva”. Além da própria história ser capaz de deixar todos boquiabertos, a atuação fidedigna de cada um e o fato de que a obra toda foi uma adaptação do livro de mesmo nome, escrito por ninguém menos que Marcelo Rubens Paiva, filho caçula do casal, torna tudo mais intenso, dado o jeito como os acontecimentos são retratados: com um olhar não tão somente histórico e emocional, mas familiar.


Eu poderia ficar horas aqui falando da grandeza deste filme como obra cinematográfica (e meus amados leitores cinéfilos o poderiam fazer mil vezes mais ainda), mas o que eu achei interessante particularmente foi a minha reflexão: quais eram os outros filmes? Assim que voltei para casa, fui pesquisar e, para minha surpresa, a quantidade de títulos era maior do que esperava. Batismo de Sangue; Lamarca; O dia que durou 21 anos; e Zuzu Angel, para fazer referência a alguns, mas a lista continuava. Apesar disso, até agora esse fato não parece que se assentou direito comigo. Como isso é possível? Como pode um País produzir tantas obras que exponham os horrores dos porões podres e covardes da ditadura com tanta clareza e, ainda assim, ser um País tão esquecido de seu passado? Atento, ativo e conivente ao mesmo tempo. Não faz sentido. Né?


Eu fui assistir ao filme pela primeira vez com uma amiga, a Julia (um beijo, Ju!), e quando saímos do cinema, eu acho que estávamos tão atônitos que ela só virou para mim e perguntou: “Você quer andar para casa ao invés de pegar o metrô?” Eu aceitei, tinha muito que pensar, tinha muito que digerir. As lágrimas que caíram do meu rosto durante a sessão, por mais que visivelmente tivessem parado, corriam soltas dentro de mim. Sei que existem outros filmes mais brutais do que Ainda Estou Aqui, passando suas mensagens de forma muito mais gráfica e fixante, é verdade. Mas o ponto do filme não era mostrar sangue e tortura em HD, até porque nem seria necessário. Todos já estavam na ponta de suas cadeiras a partir do momento em que Rubens foi levado e estão lá até hoje.


O momento do filme que mais resume a sua força como obra, para mim, são as cenas da Fernanda Montenegro. Ela não fala uma palavra. Apenas expressões faciais e gestos sutis com a cabeça. E ainda assim, deve ser, provavelmente, uma das partes mais emocionantes de toda a obra. Nos tornamos todos conectados com ela e com tudo que sentia por alguns instantes. Por alguns instantes, somos todos Eunice Paiva, tendo vivido uma vida com alegrias e diversos sofrimentos, chegando, então, ao fim. Em um momento tão distante de tudo que se passou que poderia ser apenas fruto de uma imaginação fértil de criança. Mas, então, como em um gesto espiritual, a TV liga e ele aparece na tela, Rubens. Anos se passaram, e naquele momento, percebemos que havia tudo acontecido há algumas horas. Como se tudo tivesse sido ontem.


Esse momento profundo com Eunice (como se o resto do filme não fosse poderoso o suficiente) talvez seja minha maior fonte de pensamentos sobre este filme. Essa nossa aparente descoberta de que tudo aconteceu, praticamente, ontem. Há algumas horas. Há não muito tempo, essa história não estava nos livros, estava nas manchetes. A brutalidade que tanto repreendemos no filme aconteceu agora pouco, em uma esquina, e mal percebemos isso direito. Não é novidade para ninguém que o Brasil é um País mal resolvido com seu passado, mas este filme escancara isso melhor do que qualquer outra coisa.


Tomamos como garantidas nossas liberdades democráticas, das quais tanto usufruímos hoje em dia, nunca vão tirar isso da gente, não podem, não conseguem. “Ele só fala besteira, mas ele nunca daria um golpe, né gente?” ...né? Tratamos da estrutura da democracia brasileira como se ela fosse feita de um metal robusto, inquebrável, imbatível, quando na verdade não é mais resistente do que uma mísera folha de papel vegetal. Ou talvez melhor: não mais resistente do que papel manteiga, sob o constante risco de que escorreguemos e façamos um estrago do qual não haverá mais volta. Pensamos que estamos seguros, que o perigo já é distante, mas é justamente aí que ele te pega.


Recentemente, houve uma tendência na internet de jovens que estavam se descobrindo conservadores. E como forma de demonstrar o crescimento desse grande movimento político, eles mobilizaram a criação de vários vídeos que demonstravam como eram apenas jovens com opiniões políticas diversas da maioria e como estavam sendo perseguidos por isso (!!!). E ainda por cima: eles me colocam a música Como nossos pais de Belchior, mas na versão de Elis Regina. Ou seja, apenas a música mais conservadora cantada pela artista mais pró-ditadura que existe! (Pode bater a sua mão contra a testa agora).


Mas acho que isso faz parte de um problema maior: interpretação. E não, não vou começar a dar dicas de como passar no ENEM. Eu estou falando da interpretação de mensagens em geral. Assistir Ainda Estou Aqui, ouvir Como nossos pais na voz de Elis ou Belchior ou ler Anos de Chumbo do Chico Buarque e não compreender a mensagem equivale a não ter feito nada disso. O que são essas obras sem as suas mensagens? Mensagens de luta, de resistência, de aversão a tudo de mais desumano, brutal e vil que existiu no regime da ditadura militar. Quem tolera todas essas atitudes são aqueles que nunca souberam entender a mensagem. Aqueles que nunca deram muita bola para artista, considerando-os somente como um bando de “vagabas”. Aqueles que nunca entenderam a real agonia e sofrimento dos que passaram pelo pior. Aqueles que trabalhavam no departamento de censura, que deixaram essa música e algumas outras passarem porque, simplesmente, não entenderam que a piada era com eles.


Isso me faz lembrar de um outro momento no filme (sério, vai ver o filme que eu vou estragar tudo aqui pra você). Quando Eunice finalmente consegue a certidão de óbito de seu marido, por conta da lei Nº 9.140/1995, que reconheceu como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas de setembro de 1961 a agosto de 1979, uma jornalista no filme pergunta se, devido à recente redemocratização, o País não tinha questões mais urgentes do que remediar o passado, ou alguma versão dessa pergunta. A resposta dela é curta e direta: “Não”. E, verdadeiramente, o que de mais importante teria para se fazer do que propriamente entender o que passou e reconhecer todos os erros e abusos do Estado? O Brasil tinha acabado de sair de uma experiência traumática, e ninguém, nem por um instante, achou que seria uma boa ideia sentar um pouco, tomar um gole d’água e pensar: mas o que acabou de acontecer aqui? Ninguém pensou que seria uma boa ideia dar uma olhada nos tais “defensores da pátria” que rondavam as ruas e faziam o que bem entendiam, e os responsabilizar por seus atos? Claro que pensaram. Eles pensaram. Já ouviu falar sobre a lei da anistia?


Mas isso é, para bem ou para mal, uma característica do Brasil político: para que remediar o passado? Todo mundo já entendeu, não precisa tirar a sujeira de debaixo do tapete, deixa ela lá. É só besteira, ela não vai dar um golpe de verdade, né?... né? Ao invés de enfrentarmos nosso passado como um país e um povo responsável, preferimos passivamente conviver com sua existência, presumido que todos entendemos o recado, quando, na realidade, as verdadeiras forças subversivas riem, fumam seus charutos, vestem seus pijamas glorificados e ficam por aí imprimindo minutas auditáveis de golpes. Mas fiquem tranquilos, a gente entendeu a mensagem…


A atitude mais responsável que podemos fazer é aprender com o nosso passado, mas aprender de verdade, e não somente absorver conhecimento sentado em uma carteira de escola. Enfrentar o passado é confrontar os agressores, dar voz às vítimas, colocar medidas para que nunca mais ele se repita e, constantemente, mostrar a todos que ser conivente com um passado monstruoso é dar brecha para que, um dia, ele levante sua cabeça horripilante novamente. Afinal, para quem não sabe de onde veio, qualquer caminho serve, até dar meia-volta.


O mais curioso disso é que, pelo que eu vejo, quem mais se empenha em resolver esse passado são os mais jovens, aqueles que não o viveram, apenas ouviram falar. Em um momento em que deveríamos aprender com aqueles que vieram antes de nós, estamos tomando uma liderança impressionante. Claro que existem muitas pessoas que viveram pela ditadura e hoje lutam, ao lado desses jovens, para que isso não aconteça mais, mas essa, infelizmente, não é a norma. Uma vez, ouvi uma grande acadêmica dizer que não aguenta mais conversar sobre a ditadura com os jovens, pois eles não sabiam de nada. Eu quase disse a ela para que revisse os jovens com quem conversa, até porque hoje em dia tem muita criança sabendo muito mais que seus pais. E outras que ainda são as mesmas e vivem como eles.


Mas afinal de contas: e a minha reflexão do começo? Você se lembrou de mais algum filme? Em um momento de distração, fui mexer no Twitter (eterno Twitter) e encontrei um fio sobre Ainda Estou Aqui, no qual o autor dizia sobre o quão saturados todos estamos de filmes sobre a ditadura militar no Brasil. Mas estamos? Estar saturado implica que estamos cansados, que essa história já foi passada tantas vezes que não aguentamos mais ouvir falar dessa tal de tortura e de um tal fulano de “desrespeito grosseiro aos direitos humanos”. Mas estamos? Ou só não queremos enfrentar nosso passado e, quando uma corajosa alma nos coloca de cara com ele, escrevemos posts na internet dizendo que estamos “saturados”? Se queremos nos tornar um País responsável, maduro e resoluto, devemos enfrentar nosso passado para nunca ficarmos “saturados”, porque falar sobre o passado é aprender com ele, algo que sempre nos beneficiaría.


Ao final da sessão, ouço gritar: “Sem anistia pra golpista!” Todos aplaudem, eu também. Mas me pergunto, quantos de nós vão só sair deste cinema e não pensar mais sobre o assunto? Quantos realmente entenderão a mensagem do filme? Quantos realmente irão levar para o coração o que viram e entender que “É preciso dar um jeito, meu amigo”? Eu me pergunto:


Ainda estamos aqui?



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Autoria: Enrico Romariz Recco

Revisão: André Rhinow, Isabelle Moreira e Laura Freitas


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