Se dentre todos os meus sonhos utópicos um pudesse ser realizado, seria o de tornar a meritocracia uma realidade. Como seria bom se o sucesso das pessoas dependesse apenas de seu esforço, se seu saldo bancário não te definisse, se seu tom de pele fosse apenas uma cor, se seu gênero não importasse e se sua origem fosse apenas um detalhe na sua jornada. Para minha tristeza, talvez essa seja a maior das utopias. Infelizmente, a meritocracia não existe. Sua ineficiência está na vida de milhares de brasileiros, podendo ser ilustrada por um simples exemplo, não tão fictício por ser baseada em relatos de bolsistas de universidades particulares de São Paulo.
Um homem e uma mulher: vamos chamá-los de Julio e Marina. Julio é um homem branco e de família com alto poder aquisitivo, cujos pais eram empresários de sucesso. Ele estudou em escolas particulares por toda a vida, sempre se dedicou muito aos estudos, sua escola era puxada e ele se esforçava muito. Seu esforço teve resultado e passou na primeira chamada de uma das faculdades particulares mais concorridas do país, dentre outras, podendo escolher qual o agradava mais. No primeiro dia de aula, logo se sentiu em casa, sempre esteve acostumado com o nível de exigência acadêmica e tinha base o suficiente para lidar com as demandas. Ele morava a 15 minutos da faculdade e ia todos os dias de uber, podendo acordar 1 hora antes de começar a aula e ir com tranquilidade. Assim ele se dedicou às disciplinas do curso e nunca pegou nenhuma dependência (DP).
Marina, por outro lado, é uma mulher negra, cuja família tem poucos recursos financeiros. Ela sempre estudou em escola pública e, mesmo se dedicando aos estudos, sentia-se muito prejudicada pelas vezes que não tinha professor nas aulas ou pela falta de livros didáticos. Depois que se formou, começou a trabalhar pela comunidade na qual mora, mas nunca desistiu do sonho de sua família: ser a primeira geração a ir para a faculdade. Sabendo de um cursinho gratuito, se inscreveu e passou a se preparar para a faculdade no cursinho noturno enquanto trabalhava de dia. Foi assim por dois anos, até que foi aprovada no vestibular de uma das melhores faculdades particulares do Brasil.
Depois de toda essa luta, o esforço de Marina valeu a pena, mas estava condicionado à concessão da bolsa de estudos. Passou por todo o processo de concessão de bolsa e finalmente o primeiro capítulo do sonho de sua família se inicia. Junto a isso, os esforços para se manter na faculdade também. Logo de início Marina percebeu que a realidade da faculdade era muito diferente de tudo que viveu antes, as pessoas e os professores, as demandas e as pressões. Já no primeiro semestre percebeu que não tinha base acadêmica para acompanhar as disciplinas, mesmo estudando como nunca, não conseguiu escapar das dependências que atrasaram seu curso. Para completar, Marina morava a 2 horas da faculdade, tendo que pegar 3 conduções para chegar ao seu destino, perdendo horas de sono e de estudo diariamente por acordar antes do sol raiar. Mesmo com todas as dificuldades, conseguiu se formar e foi a primeira de sua família a concluir o ensino superior.
Julio e Marina iniciaram a faculdade no mesmo semestre, no mesmo curso. Marina demorou dois anos a mais que Julio para iniciar o curso e se formou um ano depois. Depois de formados, Julio e Marina assumiram o mesmo cargo em empresas distintas, mesmo assim, Julio passou a ganhar mais que o dobro que Marina. Por que disso? – você pode estar se perguntando. Porque as oportunidades não são iguais, e nunca foram. Marina teve que lutar e muito para chegar onde ela chegou, teve que ir contra as estatísticas e quebrar ciclos de desigualdades que uma parcela ínfima da sociedade consegue vencer. É fato que Julio teve que se esforçar para chegar onde chegou, mas as circunstâncias sempre estiveram a seu favor. Nem Julio, nem Marina escolheram suas realidades e cada um fez o melhor dentro de suas possibilidades, mas é fato que essas são muito distintas. Mesmo quando aparentemente estavam na mesma largada – ambos no mesmo curso, da mesma universidade privada – suas chegadas não foram as mesmas.
Em prol de uma maior concretude a esse exemplo, uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV) realizada em 2023 revela que a remuneração média das mulheres negras equivale a 48% do que homens brancos ganham em média. Ademais, as mulheres negras ganham 62% do que as mulheres brancas recebem e 80% do que os homens negros. É nítido que a mulher negra enfrenta um duplo preconceito, de cor e de gênero, sendo sempre a última na largada da vida, atrás dos homens brancos, mulheres brancas e homens negros, respectivamente.
Além disso, foi realizado um levantamento pelo Insper com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre 2016 e 2018. Esse aponta que, a depender da profissão, homens brancos chegam a ganhar mais que o dobro que as mulheres negras para realizar o mesmo trabalho. Nesse levantamento foram analisadas profissões nas quais as mulheres negras recebem menos do que homens brancos, negros e mulheres brancas, mesmo ocupando os mesmos cargo: engenharia, arquitetura, medicina e administração.
Portanto, por mais que acreditar que a meritocracia existe seja mais fácil e tranquilize a consciência geral da nação, sinto-lhe dizer que ela não existe. E nem existirá até que todas as mazelas estruturais enraizadas nas diversas desigualdades do país deixem de existir. Essa é a meritocracia: tão perfeita e iludida quanto uma linda utopia pode ser.
Autoria: Giulia Lauriello
Revisão: Enrico Recco e Artur Santilli
Imagem de capa: Toda Matéria
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