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A PRINCESA REDENTORA: UM CONTO DE FADAS BRASILEIRO

Quando decidimos que a nova revista física da Gazeta trataria do Brasil, enumerei alguns assuntos que não poderiam deixar de ser abordados no desenrolar de um projeto que leva o nome do nosso país. Racismo foi um deles. Resolvi que escreveria sobre a abolição da escravidão por se tratar de algo aparentemente intuitivo, que é familiar à maioria dos brasileiros que frequentou a escola, mas que ainda é erroneamente interpretado. Durante uma rápida pesquisa sobre o tema, logo me deparei com uma manchete que lia “Princesa Isabel agiu por abolição e encarou o machismo, dizem estudiosos”. Antes de abrir a matéria em questão, imaginei que havia desenterrado uma peça de escrita antiga, uma relíquia dos primórdios da internet, ou então uma sátira que tirava sarro daqueles que ainda acreditavam no conto da bela princesa que nasceu na terra encantada do açúcar, destinada a lutar contra os homens maus do império em prol da liberdade dos africanos escravizados e indefesos. Para a minha surpresa, o artigo datava de novembro de 2021 e não continha nem mesmo um pingo de ironia.


Isabel de Bragança regeu o Brasil por pouco mais de um ano, devido ao adoecimento de seu pai, Dom Pedro II, Imperador do Brasil. Durante seu reinado, ela foi responsável por assinar a Lei Áurea, que declarou extinta a escravidão no Brasil no dia 13 de maio de 1888. De acordo com o autor da referida reportagem, a grande redentora real teria enfrentado o repúdio dos fazendeiros escravocratas e o machismo da época em nome dos milhares de escravizados que trabalhavam nas lavouras de cana-de-açúcar. Bruno Cerqueira, historiador e coautor do livro “Alegrias e tristezas: estudos sobre a autobiografia de D. Isabel do Brasil”, e Regina Echeverria, jornalista e autora da biografia “A História da Princesa Isabel: amor, liberdade e exílio”, também acreditam que a participação da princesa no processo abolicionista foi um ato heroico. Na carta que enviou ao Imperador no dia em que a lei fora promulgada, Isabel teria declarado seu comprometimento com a causa quando confessou que “foi com o coração mais aliviado” que havia partido para o Rio de Janeiro a fim de assinar a grande lei. Cerqueira afirmou, inclusive, que a princesa “era abolicionista, de modo privado, desde muito nova”.


Depois que li isso, o conto a Princesa e a Ervilha passou a fazer mais sentido. Da mesma forma que a princesa sentiu a ervilha por baixo de dezenas de colchões grossos, Isabel, filha do líder da nação que mais escravizou africanos e seus descendentes no mundo, percebera a barbaridade do grande crime escravocrata quando era apenas uma criança. O truque é que ela só decidiu contar a todos sua brilhante realização quando o resto do mundo já havia extinguido a escravidão e a Inglaterra fazia uma pressão terrível na economia brasileira para que o trabalho forçado acabasse. O escritor e historiador Teju Cole apelidou isso de Complexo Industrial do Salvador Branco, em suas palavras: “esse mundo existe simplesmente para satisfazer as necessidades das pessoas brancas”. Segundo ele, esse fenômeno não se trata da conquista de justiça em nome dos marginalizados, mas da validação do privilégio daqueles que afirmam defendê-los. É como se a abolição da escravidão no Brasil fosse muito mais sobre o caráter piedoso da princesa de Portugal e muito menos sobre a luta dos negros contra o abuso secular. O que muitos custam a mencionar, no entanto, é que o documento assinado por Isabel previa o mínimo de reparação histórica para os ex-escravizados, que ela decidiu revogar antes de aprovar a ementa. Depois do 13 de maio, as forças estatais abandonaram a população negra, recentemente libertada, sem providenciar indenizações nem qualquer tipo de amparo social que a auxiliasse na integração ao mercado de trabalho que emergia no Brasil no início do século XX.


Ao passo que a Lei Áurea salienta o papel de benfeitor do Estado, ela renega ao povo negro o direito de considerar o fim da escravidão como uma conquista. Muito antes do ato redentor da princesa de Portugal, o movimento abolicionista, que ganhou força no início da década de 1880, organizou manifestações artísticas, revoltas e fugas massivas de escravizados: em 1859, Maria Firmina escreveu o primeiro romance abolicionista do Brasil, Úrsula; o Clube dos Mortos escondeu e auxiliou inúmeros escravizados fugidos; Francisco José do Nascimento (o Dragão do Mar), condutor de embarcações e membro do Movimento Abolicionista Cearense, comandou uma greve de jangadeiros que conseguiu paralisar o tráfico negreiro por alguns dias durante 1881; o ex-escravizado Luís Gama se especializou em direito e conquistou as alforrias de mais de 500 pessoas por meio de ações que movia na Justiça antes de sua morte em 1882. Para o professor da Universidade de Campinas e pesquisador do Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, Matheus Gato, o 13 de maio é uma armadilha ideológica que celebra muito mais a antiga monarquia do que a luta afro e afrodescendente pela liberdade.


O Urban Dictionary usa a palavra girlboss para descrever alguém que é reverenciado como um ícone feminista, independente do fato de ser extremamente imoral ou antifeminista. Normalmente, o termo acompanha mulheres que atingiram objetivos aparentemente nobres para uma causa em prol de um benefício próprio, dinheiro normalmente. No caso da abolição da escravidão no Brasil, parece ter havido uma girlbossificação de Isabel de Bragança, essa figura que fora alavancada ao status de ícone abolicionista, graças a sua condição de mulher branca da aristocracia portuguesa. A princesa não é um símbolo feminista porque “enfrentou o machismo” em prol do povo africano e é muito menos uma representante da luta negra. Ela recebeu o título de regente do Brasil quando seu pai, o Imperador, encontrava-se incapaz de governar, porque nasceu do privilégio. A progressão do dia 13 de maio nada mais foi do que uma resposta às pressões dos ingleses, que, durante a Revolução Industrial, se deram conta de que o trabalho assalariado era mais lucrativo do que a escravidão, e às agitações que o movimento abolicionista promoveu. É extremamente ofensivo e inapropriado reduzir anos de escravizados fugidos e de resistência a um conto de fadas cuja ilustre redentora faz parte do mesmo grupo de pessoas que condenou milhares de africanos e seus descendentes a uma vida de servidão em solo brasileiro.

Autoria: Beatriz Nassar

Revisão: Bruna Ballestero, André Rhinow e Guilherme Caruso

Arte: Taunay, Nicolas Antoine

Referências/Fontes:

COLE, Teju. The White-Savior Industrial Complex. The Atlantic, 2012. Available at: <https://www.theatlantic.com/international/archive/2012/03/the-white-savior-industrial-complex/254843/>. Access on: 8 jan. 2022.


COSTA, Camilla; ROSSI, Amanda. Muito além da princesa Isabel, 6 brasileiros que lutaram pelo fim da escravidão no Brasil. BBC Brasil, 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44091469>. Acesso em: 10 jan. 2022.


FERREIRA, Luiz Cláudio. Princesa Isabel agiu por abolição e encarou o machismo, dizem estudiosos. Agência Brasil, 2021. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-11/princesa-isabel-agiu-por-abolicao-e-encarou-machismo-dizem-estudiosos>. Acesso em: 8 jan. 2022.


GIRLBOSS. Urban Dictionary, 2021. Available at: <https://www.urbandictionary.com/define.php?term=Girlboss>. Access on: 8 jan 2022.


SANTIAGO, Spartakus. Porque a Princesa Isabel não é a Elsa de Frozen. Mídia NINJA, 2019. Disponível em: <https://midianinja.org/spartakussantiago/porque-a-princesa-isabel-nao-e-a-elsa-de-frozen/>. Acesso em: 8 jan. 2022.


SUDRÉ, Lu. Liberdade pelas mãos do povo preto: a verdadeira história do 13 de Maio e da Abolição. Brasil de Fato, 2021. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/05/13/liberdade-pelas-maos-do-povo-preto-a-verdadeira-historia-do-13-de-maio-e-da-abolicao>. Acesso em: 10 jan. 2022.


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