“We were girls together.”
— Toni Morrison
“Nós fomos meninas juntas.”
— Toni Morrison
Eu sei que posso te ligar a qualquer momento que você vai atender. Foram poucas as vezes que você não atendeu — você estava em aula, salvo engano. Ou dormindo. Um dos dois.
E você pode me ligar também. Sempre. Mas a nossa comunicação por mensagem de texto tem diminuído, então acho que não preciso nem falar das ligações. A gente se vê uma vez a cada dois meses, promete marcar alguma coisa no próximo fim de semana e volta cada uma para a sua vida. Em cidades diferentes.
Não lembro da última vez que escutamos música juntas. Lembra o quanto a gente fazia isso? Eu baixava as músicas naquele aplicativo pirata que nós duas tínhamos e separava a letra para que você a lesse enquanto escutava, e você trazia o fone. Os meus fones nunca funcionavam — só de um lado, lembra? Sempre bem vagabundos. E, quando eu tinha um fone que prestava, ele ficava em casa: eu morria de medo de perder.
De qualquer forma, você trazia o seu fone, nós sentávamos uma do lado da outra, e você lia as letras enquanto a gente ouvia as músicas. Eu olhava do celular para você e de você para o celular e esperava as reações, animadíssima. Acho que tinha dias que você nem queria ouvir, mas você ouvia e depois me contava suas opiniões e a gente passava todos os intervalos falando daquele verso e daquele acorde e daquela mudança de tom.
Aquele aplicativo pirata parecia um espelho entre os nossos celulares, ouvíamos todas as mesmas músicas. Eu sei que posso te ligar a qualquer momento que você vai atender, mas não faço ideia de como anda seu gosto musical.
Você sabe que sou propensa à nostalgia e ao pensar demais nos tempos que já foram, mas sei que você também sente falta. Na sua negligência e na minha falta de cuidado, a nossa mais recente discussão nos levou à conclusão de que temos medo da distância que parece se alongar mais e mais conforme os meses passam. Acho que nossas vidas andam muito separadas.
Não foi por mal nem por escolha, óbvio. Nunca faríamos isso conosco. Mas os dias são difíceis e o inverno é mais gelado sem você por perto, sempre trazendo um casaco a mais porque sabia que eu esqueceria o meu. É uma merda isso do tempo passar, das coisas mudarem. Queria retornar às festas do pijama na sua casa, quando a gente assistia Avatar: A Lenda de Aang no salão e as suas cachorras deitavam no meu colo e eu morria de alergia.
Morro de medo de perder. Às vezes, aterrorizo-me pensando que um dia vamos sair para tomar um café e não teremos nada a dizer. Que um dia não teremos assuntos em comum — falar do paradeiro dos nossos colegas de escola se tornará mundano, fazer psicanálise dos nossos outros amigos perderá a graça, contar e recontar anedotas da faculdade parecerá bobo. Aí o que acontece? Aí o que eu faço? Aí onde eu coloco todo o carinho que sinto por você, toda a familiaridade e todo o amor que a gente compartilha?
Não somos mais as meninas de quinze anos rindo na sua festa de aniversário, abraçadas em vestidos bonitos. Não é horrorizante? Nunca mais seremos aquelas meninas. Nunca mais estudaremos juntas, nunca mais nos veremos diariamente, nunca mais teremos a mesma rotina. Estamos conquistando sonhos e descobrindo quem queremos ser, mas a que custo?
Você diria que eu sou o drama em pessoa e nem estaria errada. Ninguém morreu e a gente ainda se vê quando possível, e eu sei que posso te ligar a qualquer momento que você vai atender. Mas você sabe que eu sou meio assim, propensa à nostalgia e ao pensar demais nos tempos que já foram. Tenho pensado muito nisso, na mudança. Deve ser porque fiz vinte anos umas semanas atrás e a transição dezenove-vinte pesou na minha consciência. Independentemente, queria dizer que tem muito de você em mim. E que eu te procuro nas coisas, para suprir um pouco da ausência e da saudade.
Como você sabe muito bem, sempre gostei de ter barulho de fundo para fazer as coisas. Música, uma série qualquer que não exija muita atenção, algum vídeo bobo no YouTube — falamos disso naquela vez que você tinha acabado de voltar de um encontro da Liga de Saúde Mental da sua faculdade e veio me contar que tem certeza que eu tenho TDAH. O barulho me ajuda a concentrar, sei lá. Só sei que ando meio obcecada em usar os vídeos no YouTube desse cara que faz reações a álbuns de música. Esses dias percebi que é porque ele me lembra de você.
É o jeito que ele fala das músicas, acho. As reações, o tom de voz, as coisas nas quais ele repara. Ele pega as letras das músicas para ler enquanto escuta e fala do mesmo jeitinho que você falava quando a gente sentava no intervalo e dividia o seu fone de ouvido. Me traz um conforto enorme.
Ainda tenho vontade de te contar sobre cada segundo dos meus dias e de saber de cada segundo dos seus. Você era a primeira a ler os meus textos, lembra? Quando eu escrevia contos e crônicas no meu caderno da escola e te dava para olhar. Sei que você guarda aquelas folhas de caderno até hoje, assim como eu guardo seus desenhos e bilhetinhos.
Você é parte de mim. Talvez seja a pessoa que mais ouviu dos meus dramas, das minhas dores, das minhas alegrias e dos meus sorrisos. E eu, dos seus. Com prazer. Sinto falta do seu abraço, das nossas discussões, das nossas conversas, das nossas trocas de olhares e das nossas piadas internas. Nós fomos meninas juntas. Espero que sejamos mulheres juntas, também. Mesmo em cidades diferentes.
Eu sei que posso te ligar a qualquer momento que você vai atender. Talvez eu ligue essa semana.
Breve adendo
Eu e a Laura somos amigas desde 2015, quando tínhamos 11-12 anos. Ela é toda inteligente, então cursa Medicina no interior do estado. Escrevi este texto uma semana antes de sua publicação e acabei ligando mesmo. Ela vai passar o feriado do dia 7 comigo em São Paulo. Acho que somos mulheres juntas.
Autoria: Anna Cecília Serrano
Revisão: Laura Freitas, Luiza Parisi e Enrico Recco
Imagem de capa: Foto por Anna Cecília Serrano, 16 de janeiro de 2016
Maravilhoso , amor de amigas verdadeiras não acabam jamais, só ficam mais fortes, mesmo estando distantes.