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CASO MARI FERRER: UM RETRATO DA CULTURA DO ESTUPRO BRASILEIRA



A cultura do estupro


A cultura do estupro existe no Brasil desde os tempos da escravidão. Em um momento em que negros e indígenas foram reduzidos à mercadoria com valor produtivo, o corpo feminino, além de ser ferramenta para a produção de riqueza, era também instrumento de prazer dos senhores de escravos. Sobretudo, o estupro se dava como um forte mecanismo de dominação dos brancos sobre outras “raças”, consideradas inferiores.


O resultado de um estudo realizado pelo projeto DNA do Brasil, publicado em setembro deste ano, ilustra esse cenário: 75% da herança genética paterna dos brasileiros veio dos homens europeus, enquanto 36% da herança genética materna veio das mulheres africanas, e 34% das mulheres indígenas. Vemos que o estupro é enraizado na sociedade brasileira desde a sua formação.


Em números atuais, apenas em 2019, foram registrados 66.123 casos de estupro, dos quais 85,7% das vítimas são do sexo feminino e 70,5% dos casos foram registrados como estupro de vulnerável - dos quais, mais de 50% foram praticados contra menores de 13 anos. Esses números se traduzem em uma realidade assustadora: uma pessoa - geralmente, mulher - é estuprada a cada oito minutos no Brasil. E mais, embora não haja estudos e pesquisas suficientes sobre o problema, estima-se que esses números possam ser até dez vezes maiores do que os são de fato registrados.


Um caso recente que revela uma importante face da cultura do estupro no Brasil é o de Mariana Ferrer.


O caso


Em setembro desse ano, o juiz Rudson Marcos absolveu André Cargo de Aranha, em primeira instância, pelo crime de estupro de vulnerável praticado contra Mariana Ferrer, por falta de provas contundentes de que o réu tivesse conhecimento de que a vítima não apresentava condições de consentir ao ato sexual. O caso ocorreu em 2018, em Florianópolis, quando o acusado teria tido conjunção carnal com a jovem após a mesma ter sido drogada. Dada a incapacidade de Mariana para consentir ou resistir a qualquer ato sexual, o Ministério Público inicialmente indiciou Aranha por estupro de vulnerável, conforme o art. 217-A,§1 do Código Penal.


O caso já havia ganhado proporções nacionais devido ao uso dado por Mariana às suas redes sociais para expor sua história e as provas do ocorrido. A partir daí, sucedeu-se uma grande mobilização que clamava por justiça nas mídias digitais, tendo sido #JustiçaporMariFerrer uma das hashtags mais comentadas no twitter brasileiro na época em que primeiro se ouviu falar do caso publicamente.


Quando Aranha foi inocentado, houve uma nova onda de indignação popular, especialmente em relação ao argumento de que não haveria provas suficientes para embasar a condenação. Dentre as provas dispostas no caso se encontravam vídeos da noite, imagens da jovem, laudos periciais, exames toxicológicos e testemunhas. É essencial entender que, em casos de estupro, dificilmente o laudo peridical é positivo, o que ocorreu nesse caso, dado que muitos ocorrências são reportadas dias, meses ou até anos após a ocorrência do fato, não havendo mais nenhum, ou quase nenhum, vestígio do crime no corpo da mulher. Assim, em um processo penal por estupro, a palavra da vítima tem valor de prova - em outros crimes o testemunho das vítimas é importante, mas não recebe o mesmo peso de uma prova na deliberação do juiz - mostrando a importância de se ouvir o que a vítima tem a dizer.


O capítulo mais recente dessa história se deu na terça-feira (3), quando o jornal The Intercept divulgou um vídeo trazendo novos elementos da decisão e mostrando cenas de uma audiência de julgamento do processo.


Estupro culposo?


Primeiramente, é importante ressaltar que o The Intercept havia dito que o juiz teria considerado que a conduta do acusado teria sido condizente com um "estupro culposo". Na prática, o juiz, de fato, fez algo similar. Porém é primordial ressaltar que em nenhum momento da decisão há menção à referida expressão. Quando um crime é cometido, ele pode, simplificadamente, ser doloso, quando há a intenção de cometê-lo, ou culposo, quando não há essa intenção. Para que uma conduta possa configurar crime culposo, é necessário que a lei penal preveja expressamente a modalidade culposa do crime, do contrário, só poderá se punir aquele delito se ele for cometido dolosamente.


Estupro de vulnerável é um crime que não admite modalidade culposa, assim, para que alguém possa ser condenado por esse delito, deve tê-lo cometido dolosamente. O promotor do caso, Thiago Carriço de Oliveira, propôs a tese de que o acusado não teria como saber que a vítima não tinha condições de consentir ou oferecer resistência ao ato sexual. Assim, ele não teria tido o dolo de estuprá-la e, portanto, como é requerido o elemento dolitivo na configuração do estupro de vulnerável, Aranha deveria ser absolvido por erro de tipo - quando o agente desconhece ou se equivoca sobre algum elemento do tipo penal. O juiz acatou a tese, afirmando que as provas eram insuficientes para provar que teria havido dolo e ainda citou a frase: “melhor absolver cem culpados que condenar um inocente”. Ainda assim, o motivo primário da absolvição foi a falta de provas, o que por si só já aparenta ser algo contraditório, uma vez que a autoria e materialidade do crime foram reconhecidas.


Tal argumentação gerou polêmica, uma vez que cria o precedente de que, se não for possível saber com certeza se uma pessoa pode ou não consentir ao ato sexual, poderia-se considerar que mesmo que ocorra um estupro, este teria sido cometido sem dolo (“culposo”), o que absolviria o autor do crime.


Tratamento de Mariana na audiência


Além do veredito, algo que chamou muito a atenção foi o modo como o advogado de defesa, Cláudio Gastão da Rosa Filho, tratou Mariana durante a audiência divulgada pelo The Intercept. Ao assistir ao vídeo, a impressão é de que a ré em questão era a jovem, e não Aranha. Algumas das falas tentavam desacreditar a alegação de Mariana de que ela era virgem quando o estupro ocorreu, mesmo havendo um laudo comprovando que o rompimento do hímen da vítima havia sido recente. O advogado ainda mostrou fotos supostamente sensuais da jovem como se fossem provas de que ela não seria virgem na data do ocorrido, pretendendo, com isso, inferir que eventuais experiências sexuais anteriores implicariam que ela teria consentido com o ato sexual, desmerecendo o relato da jovem que nega ter consentido. Quando a jovem chorou, ele disse: "Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso, e essa lábia de crocodilo."


Houve também diversas críticas ao comportamento tanto do juiz quanto do promotor de justiça do caso, por não terem intervido enquanto Gastão interrogava a jovem agressivamente. O Ministério Público de Santa Catarina pediu que o sigilo do vídeo original fosse retirado, afirmando que o vídeo publicado pelo The Intercept teria sido adulterado, tendo sido retiradas as intervenções do promotor e do juiz.


O sigilo foi quebrado na manhã de quinta-feira (05), mostrando que em alguns momentos, de fato, houve intervenção dos demais presentes nas manifestações do advogado. Um desses momentos foi quando o advogado de defesa se disse agradecido por não ter uma filha do nível de Mariana, e o juiz ameaçou suspender a audiência se ela continuasse daquela maneira. No entanto, houve também diversos momentos em que não ocorreu qualquer intervenção, como quando Mariana suplica por respeito, mas encontra somente silêncio.


Ocorreram fortes reações às cenas. Na esfera jurídica, foi protocolada, na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), uma representação contra Gastão. Além disso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) abriu uma investigação preliminar para apurar a conduta do magistrado no caso.


A revitimização da mulher pelo judiciário


Há muito se fala sobre as dificuldades enfrentadas por uma mulher para denunciar um caso de assédio, e o vídeo da audiência provou esse ponto publicamente. A humilhação sofrida por Mariana Ferrer demonstra como o sistema judicial brasileiro reiteradamente culpabiliza e silencia a mulher, mesmo nos casos em que ela é a vítima. Assim, a jovem acabou revitimizada - o que ocorre quando, mesmo após o fato traumático, a vítima continua a sofrer uma violência, agora institucional e social - pelo sistema que deveria protegê-la.


Infelizmente, o modo como Mariana foi tratada não é uma exceção, e isso revela um dos fatores que geram a grande subnotificação de casos de violência contra a mulher no Brasil. Se até mesmo a justiça revitimiza e desacredita essas vítimas, quem irá lhes fornecer o suporte necessário para retomarem as suas vidas após terem vivido situações tão traumáticas, agora com o peso da própria vergonha e da impunidade de seus agressores?


Querer julgar a culpa ou inocência de um acusado de estupro com base no comportamento da vítima antes da agressão é o reflexo de uma sociedade machista, que ainda conserva o imaginário de que o modo como uma mulher age ou se veste implicaria que ela está disposta a ter relações sexuais com qualquer um. A perpetuação desse pensamento é um dos motivos pelos quais tantas mulheres ainda são abusadas no Brasil.


Além disso, cada pessoa reage a um estupro de uma maneira diferente, assim, é impossível julgar se um crime ocorreu ou não tomando por base o modo como a vítima se portou após a agressão. O principal fator para definir um estupro é se houve ou não consentimento: se a pessoa não disse sim explicitamente, ela não consentiu. Quaisquer outros julgamentos a respeito do caráter, atitudes pré ou pós agressão e vestuário da vítima são irrelevantes.



Referências:

Livro: “Sobre o autoritarismo brasileiro” - Lilia Moritz Schwarcz (capítulo 7 - “Raça e gênero”)


Foto da capa: Stephanie Shimerdla


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