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COMO FOI VER DE PERTO O GOLPE MILITAR DE '64



Entro no link do Zoom para encontrar o prof. Luiz Felipe de Alencastro, o qual já estava com um dos planos de fundo que ele sempre usa nas sessões do Cineclube FGV. Ele me explica a diferenciação de planos de fundo que faz para as aulas do dia, da noite, e para as reuniões. Naquele dia, o professor parecia estar num apartamento todo envidraçado, com o litoral francês ao fundo: era Marselha, como ele me contou, porque estava saudoso do lugar.


O prof. Alencastro tem uma ligação bem forte com a França, que pode ser percebida tanto nos momentos em que compartilha a tela para mostrar alguma referência e conseguimos espionar seu Google em francês, como em sua pronúncia dos nomes de cineastas franceses. Seu impressionante currículo também conta com um período de quinze anos de docência na Sorbonne.


Antes de entrar na chamada eu não sabia, mas a história de como o professor iniciou sua relação com a França é consequência, por efeito dominó, dos acontecimentos do dia primeiro de abril de 1964 - dia sobre o qual o convidei para conversar. Eu já havia ouvido-o comentar que, naquele intrigante período, 56 anos atrás, ele, com a idade que tenho hoje, era estudante da UnB. A perspectiva de ouvir a experiência de alguém que vivenciou a mesma fase da vida em que estou, mas num contexto de tempo e local tão absolutamente históricos, me interessou muito e, assim, quis marcar a conversa.

Raquel G.: Então, professor, na verdade acho que é uma contação de história mesmo, não tem muito "pergunta e resposta".... O senhor comentou que estava na UnB no dia em que tudo aconteceu, e eu queria saber a sua perspectiva de alguém que era estudante lá, jovem, como foi presenciar esse marco tão trágico, tão histórico.


Alencastro: Eu tava morando em Brasília, meus pais tinham se mudado pra lá. Eu sou de Santa Catarina, meu pai era médico, trabalhava lá no Pronto Socorro Infantil do hospital, que se chamava "Hospital Distrital", acho que o nome é Hospital Central agora. Eu estudei então no colégio de Ensino Médio lá, ensino público, que era muito bom, se chamava Elefante Branco. Desde o colégio, já tinha um ambiente de politização porque o ano inteiro de ‘62, ‘63 - ‘63 houve o plebiscito e houve a volta ao regime presidencialista, então o Jango assumiu a totalidade dos poderes, você lembra, né?


Já havia me preparado para o trabalho de, depois da entrevista, pesquisar cada uma das inúmeras referências que eram esperadas de alguém que já viveu tanto e sabia tanto, mas acho que esqueci que falava com não só um professor - que, logo, é excelente em explicar -, mas também com um historiador, e daqueles com uma memória impressionante, que lembra cada um dos pormenores e nomes dos acontecimentos históricos.



Alencastro: Em 1961, o Jânio [Quadros] pediu demissão. O Jango [João Goulart] devia assumir, porque era o vice dele, ele estava na China. Mas, aí, o alto comando militar e a direita parlamentar se opuseram à posse dele, e houve um compromisso de fazer um regime parlamentarista. E o Jango nunca aceitou, aceitou provisoriamente pra assumir a presidência, mas ficou combinado que haveria um plebiscito pra ver se ficava o parlamentarismo ou voltava o presidencialismo com o Jango presidente, com a totalidade do poder executivo federal.

Em 1963, houve então a volta do Jango como presidente efetivo, com a totalidade do poder, e começou um debate, já num ambiente de radicalização muito grande. A diferença total com o que acontece hoje - e foi uma coisa que ninguém percebeu na época - é que ninguém se tocou, mesmo depois do golpe, mesmo dois ou três anos depois do golpe, que aquilo ia durar tanto tempo. O Juscelino achou que ia ter eleição em ‘65, e que ele iria ganhar, que o Jango estava lá numa atitude ambígua, saía e [ele] ficava.


Eu só estou contextualizando um pouco porque a gente não percebeu, ninguém percebeu, que tinha uma outra dinâmica totalmente diferente na história da América Latina e do Brasil, que era que a Revolução Cubana* tinha jogado a Guerra Fria pra dentro da política latino-americana e da política brasileira. Antes, então, você era pela reforma agrária, contra a reforma agrária; a favor do movimento sindical, você era contra o movimento sindical; a favor do voto analfabeto, contra o voto analfabeto... Depois, não: você é pró cubano - então você está alinhado com a União Soviética -, ou você é contra essa esquerda em geral cubana e a União Soviética, do lado dos Estados Unidos, uma coisa que o Golbery definiu depois como "fronteira ideológica"; não tem mais fronteira geográfica, tem fronteira ideológica.


Aí isso radicalizou brutalmente, e é isso que não existe hoje, aqui. É só um parênteses - tem essa radicalização, mas ninguém pode dizer que o Lula é pró-soviético, pró-chinês. Dizem que é pró-Maduro, mas Maduro tá caindo aos pedaços, aquilo não é viável, e Cuba não tá interessada em atiçar nada aqui como na época estava, que tinha guerrilha, essas coisas. Então é isso.

Bom, nesse contexto já tava havendo movimentação, aí chegaram as notícias de que a PM e Exército de Minas Gerais, dirigida por um general que chamava Mourão também (risos) - e que depois até ele próprio disse que ele era uma "vaca fardada" em política, porque ele deu o golpe antes do tempo...



Nesse momento, o professor foi pesquisar na internet, para verificar o tal Mourão do golpe em Minas Gerais.



Alencastro: “Olímpio Mourão Filho, um general bem trapalhão”, acabei de ver. Ele sai antes de todo mundo… Esse, então, é o nosso estado de espírito, pra responder a sua pergunta.

Eu tinha acabado de entrar na UnB, no começo de março - como vocês, a gente passava no vestibular em janeiro, eu acho, e eu entrei. Estava no comecinho da UnB, mas eu já estava envolvido no movimento estudantil desde o final do Ensino Médio nesse colégio Elefante Branco. Então, eu cheguei e já conhecia a militância de esquerda lá da UnB. E já tinha colegas, amigos, que tinham entrado no ano anterior ou que entraram junto comigo. A UnB era muito pequena, foi nesse ano que entraram muitos alunos, o ano anterior tinha 50 alunos, eu acho, só. Ela estava começando, e quando nós entramos, entramos 150.


Então houve uma eleição pra FEUB, que era a Federação dos Universitários de Brasília, e eu fui eleito na chapa. Eu era Primeiro Secretário. A gente se reuniu lá na universidade, com aquelas notícias que estavam chegando de Belo Horizonte, de que tinha uma insurreição contra o governo, e a gente achou que até não era ruim, porque se os caras faziam isso de maneira tão trapalhona… Iam ser facilmente isolados, não ia dar certo, e o governo do Jango se livrava dessa ameaça de golpe - era isso que a gente pensou. No fundo, a gente achou que era bom que tinha lá uma PM de Minas dando golpe. Em Brasília não tinha nada! Os generais eram todos ou a favor do Jango ou juscelinistas: todo mundo em Brasília era juscelinista porque o Juscelino era o “top”, ele ia ganhar a eleição em ‘65, era o político mais popular do Brasil, e era um sujeito totalmente moderado e tolerante. Todo mundo tava esperando ele ganhar a eleição em ‘65: ele já era senador, tava preparando a campanha e ia continuar as coisas.


Então é isso, quando veio a notícia, a gente achou bom porque o golpe ia dar errado e a gente tirava essa ameaça militar do horizonte, essa é a primeira resposta... Longa.



Raquel G.: No momento em que vocês perceberam que não era só um “movimento lá de Minas Gerais” e que de fato estava acontecendo um golpe, o que foi a primeira coisa que o senhor pensou, você logo acreditou?



Alencastro: Isso é uma coisa surrealista. Eu devo dizer que eu tive a mesma sensação com o impeachment da Dilma. Você acorda de manhã e diz "Isso não pode estar acontecendo", e tá acontecendo! E acontece. No tempo é uma espécie de pesadelo acordado. E aí, o momento disso é essa cena que eu te falei do Paulo Henrique.


Nós estávamos na universidade, e um amigo vem e nos diz: "Olha aqui, vamo lá pro Congresso que tão votando a vacância do poder, tão dizendo que o Jango saiu do Brasil sem autorização, então o poder tá vago, e eles vão votar a vacância do poder e eleger o presidente provisório". Aí o Mazzili assume provisoriamente, porque é o que tá escrito na Constituição: o Jango já era vice do Jânio, então o presidente da Câmara assume e tem uma eleição indireta pelo Congresso, e aí elegeram o Castelo Branco.


Quando isso aconteceu, houve primeiro na Câmara o voto sobre a vacância de poder, e nesse voto da Câmara, havia muita pouca gente no público, era uma sessão extraordinária, de noite. Eu estava exausto, porque não tinha dormido há três noites por causa dessa agitação, e, quando eu cheguei lá com o Paulo Henrique e com três outros amigos, aquelas cadeiras de veludo, ar condicionado... Eu dormi, dormi pesadamente (risos), e daí me deram uma cotovelada "Vamo embora, acabou a sessão, o golpe está dado". Então eu não vi nada... Depois o Paulo Henrique escreveu "Mas você tava lá!", e outros me disseram, mas eu não lembro de nada.

Mas eu lembro da atmosfera de perplexidade nossa, com essa espécie de pesadelo acordado, e, aí, houve a chegada das tropas de Minas. Eles tinham confiscado uns ônibus de transporte urbano, de banco duro, sabe? Então os soldados vinham todos assim [o professor imitou alguém espremido], nos bancos, nuns calhambeques, uns ônibus bem "estropiados", e com um fuzil no meio da perna - os caras estavam estourados, porque estavam há dias naquele ônibus, ia bem devagarinho.


E aí pronto, começa. Ninguém sabe o que vai acontecer, o pessoal mais comprometido foge de Brasília, vai embora, e aí tem um problema que depois ficou claro pra gente, que Brasília era muito isolada nessa época. Veja bem, não tinha internet, não tinha DDD, DDI e não tinha estrada… Tinham duas estradas: uma estrada que ia para Goiânia e depois vinha para São Paulo, e uma outra estrada que vinha para o sul, para Paracatu, e para Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Então só tinha essas duas estradas, a Belém-Brasília não existia, era só mato, o aeroporto era o aeroporto militar, [que] estava entupido de soldado, então não tinha por onde escapar, porque essas duas estradas estavam cheias de barreiras do Exército, com a lista de gente que eles deviam prender.


Então a gente ficava em Brasília com a sensação de que estava numa prisão, eu, em seguida, cheguei a ser preso e convocado para depor... Fiquei só uma noite lá e não teve violência nenhuma contra mim. Um colega foi ameaçado, e [com] violência, e tentou suicidio, foi uma coisa que me marcou... Mas o fato é que, quando eu saí do BGP, do Batalhão da Guarda Presidencial, encontrei um amigo meu cujo pai tinha sido torturado, ele estava indo visitar o pai. Então havia um clima ruim, o pai dele havia sido torturado em Goiás, em Brasília não havia tortura - eu tô falando de 64 né, logo depois. Mas o fato é que você estava assustado...


Eu voltei para casa, e, aí, aquelas superquadras super isoladas, e tinha soldados na entrada das superquadras. Então você não tava preso; quando você tava lá no BGP você via aquele cerrado ali, infinito, em volta, depois você ia pra casa tinha um cerrado em volta... Você não podia sair da sua superquadra, e Brasília era um lugar de que não dava pra sair também. Então era uma sensação de sufoco muito grande, é isso que aconteceu no começo.


O pai de um amigo meu era ministro do Supremo [STF], nomeado pelo Jango, e ele morava do lado de outros ministros do Supremo nomeados pelo Juscelino e pelo Jango. E tinha um deles, o Hermes Lima, que eu gostava muito, e ele sabia que a gente tava ameaçado porque ele tinha habeas corpus preventivo em nosso favor, eles pediam aos advogados amigos um habeas corpus preventivo que impedia as lideranças estudantis de serem presas - você estava sob ameaça, você tira um habeas corpus antes de ser preso - porque a gente estava sendo convocado.


Um pequeno grupo de dirigentes estudantis era convocado pra depor em vários IPMs, o IPM era o Inquérito Policial Militar, então tinha vários, tinha o do método Paulo Freire, tinha o IPM da UNE [União Nacional dos Estudantes], tinha o IPM do Ministério da Educação, e eles chamavam a gente o tempo todo, pra pressionar.


E, aí, esse ministro do STF, o Hermes Lima, que tinha uma experiência política muito grande, era um socialista, me disse "Isso aqui vai durar. Vai embora" - estou resumindo longas conversas. “Vai embora. Vai estudar na França”, ele era muito francófilo. Aí eu disse “Eu quero, claro, mas como?” Ele se mexeu com outra gente lá que ainda tinha peso, porque a embaixada francesa também não achava que o golpe ia durar, e [achava] que o pessoal ligado ao Juscelino e o Jango iam voltar. Eles me conseguiram uma bolsa francesa para fazer graduação, que não existe. Até hoje não existe, a França não oferece bolsas de graduação.

Aí eu fui, era uma bolsa para fazer Ciência Política, e eu podia ficar ou em Paris ou em Bordeaux, em Grenoble, ou em Aix-en-Provence. Em Paris eu fiquei na casa de um exilado já, ligado ao governo do Jango. O ambiente estava muito tenso, porque alguns dos exilados ja estavam no segundo exílio, era gente que tinha sido exilada nos anos ‘30 na ditadura do Getúlio, e agora... É como se eu, agora, tivesse que fugir. Você imagina meu estado de espírito. Só que eles estavam no poder, eu nunca estive no poder, é ainda mais violento quando você cai do poder, não é como foi o caso do Celso Furtado. Celso Furtado era jovem, era o primeiro exílio dele, mas tinha gente mais velha que estava no segundo exílio.



O professor seguiu, então, me contando de sua trajetória na França a partir daquele ponto: no restaurante universitário, ficou amigo de um casal de estudantes, com o qual comentou sobre Ciência Política: “Vou ter que fazer, porque minha bolsa é para isso, mas eu gostaria primeiro de estudar História porque essa coisa no Brasil é muito mais complicada do que os cientistas políticos imaginam”.


Contou, então, que o casal deu a ele dois conselhos que foram muito bons: "Olha aqui, a sua bolsa é muito pequena. Se você quer estudar História mesmo vá para Aix-en-Provence, porque lá o curso de História é o mais avançado da França nessa altura. Com essa sua bolsa e um Solex você é o rei da cidade [risos], porque é uma cidade pequenininha, muito agradável, a vida é muito mais barata.”


“Solex você não sabe o que é, né?”, me perguntou o professor. “Eu vou escrever aqui e você vai procurar, é uma bicicleta. É uma bicicleta com um motorzinho na frente que era muito popular entre os estudantes. Tinha um tanquezinho pequeno em cima da roda, você punha assim gasolina e ‘tac tac tac’".


Depois desse que diz ter sido o melhor conselho que ele recebeu, o professor Alencastro residiu em Aix-en-Provence por quatro anos, cursando Ciência Política e uma parte do curso de História. Ficou na França por mais 20 anos, visitando o Brasil apenas em duas ocasiões:



Alencastro: “ Eu vim em ‘79, quando teve a anistia, e em ‘69, em plena confusão ainda, correndo risco, porque meu pai estava muito doente, e houve um acordo lá para eu voltar - eu também não era o inimigo público número um [risos]. Eu vim visitar meu pai. Deu uma confusão, eu tive que sair rapidamente, antes do tempo, mas, depois, também, eu vim visitar, mas, a partir de ‘79, eu vinha todo ano. Eu fiquei 10 anos sem vir e não tinha notícia, como eu disse, não tinha nem DDI. Quando meu pai morreu, eu fui saber dez dias depois, um amigo me mandou uma carta, aí eu liguei de lá pra meu irmão, fui pra casa de um professor meu que pediu uma ligação para um número de telefone em Brasília, meu irmão que me contou o que que tinha acontecido, mas eu tive que ficar a tarde inteira na casa do meu professor lá em Aix pra completar a ligação, que não era assim, você tira o telefone e liga. Ele pedia em Paris para a telefonista fazer uma conexão no Rio, do Rio para Brasília, daí, dizia, ela "daqui a 20 minutos, daqui a 1h”, aí, depois, caía... Era assim. Então foi uma coisa...


Sobre a percepção da ditadura já em curso, o professor pontuou: “Eu senti pra valer a violência que tava havendo em ‘70, porque aí eu vim pra Paris e começou a chegar o pessoal que tava fugindo do AI-5, que eu tinha percebido já, em '69 tinha havido o rapto do embaixador americano, e aquilo radicalizou muito. Então começou a chegar gente já torturada, morria gente e tal... Notícia muito barra pesada. E aí é que deu pra ver que a gente tava entrando numa coisa totalmente diferente.


Alencastro tinha 20 anos quando foi para a França, e 40 quando voltou para o Brasil, onde ficou até 1999, quando passou num concurso para lecionar na Sorbonne. Voltou em 2014, para a sorte da FGV, e cá está, dando aula na EESP e coordenando o cineclube. Recentemente, escreveu o posfácio do livro “Celso Furtado: Correspondência Intelectual”, sobre o amigo economista, exilado na Ditadura Militar. Com editoria de sua viúva Rosa Freire D’Aguiar, o livro será lançado na primeira semana de abril.



Alencastro: “A conclusão é que você não sabe o que está acontecendo quando tudo acontece… É uma solução que tem um episódio literário importante no livro La Chartreuse de Parme, do Stendhal: o Fabrice está lá na batalha de Waterloo, e ele vê só uma correria de soldados e de cavaleiros e não sabe que é o fim de uma guerra [risos], da epopeia do Napoleão. Todo mundo é meio Fabrice, mas nem todo mundo descreve um episódio desse, como o Stendhal. Mas quem está em cima do acontecimento não percebe nada. A coisa só fica clara tempos depois.



Revisão: Letícia Fagundes Imagem de capa: Reprodução ArchDaily

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