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CONVIDADO ESPECIAL NA GAZETA: NARCISO



Bruno me pediu que fizesse um texto esse mês. Reclamou de estar desmotivado, sem inspiração. Achei o convite ótimo, tinha algumas reflexões mastigadas sobre como as relações virtuais têm moldado o nosso convívio. Até comecei a escrever sobre um episódio de Black Mirror pela ótica da liquidez de Bauman nos dias atuais – tive uma sacada ótima, mas não sei se todos entenderiam... desisti.


Prometi então que entregaria um texto que explicaria sóis, luas, todos os astros que moldam nossas personalidades, a metafísica coletiva propulsionada por óleos essenciais, até daria uma palinha sobre thetahealing. Aproveitaria a oportunidade tão especial para desmanchar a filosofia do ceticismo, e é claro, revelar suas raízes íntimas no capitalismo burguês.


Outra vez, mudei de ideia. Como escreveria um único texto, achei que seria mais relevante tratar da política nacional, especialmente nestes tempos sombrios que vivemos. Precisaria expor todas as minhas opiniões sobre este (des)governo, opiniões tão singulares, tão necessárias! Não poderia me calar diante dos movimentos da falsa esquerda, aliás, não fosse eu, quem mais denunciaria os hipsters que não apoiam a causa operária? Quem criticaria os 1% mais ricos do Brasil, dos quais eu não faço parte? Quem poderá parar as vozes pretensiosas dos falsos vegetarianos, que eu fui capaz de detectar? E as falsas feministas?


Passaram-se os dias. Já havia escrito uma dezena de textos. Um texto para cada polêmica no meu feed. Não aguentaria postar aquele meu texto analisando os significados obscuros das letras de Bob Dylan, ou aquela minha crônica que ilustra como Bacurau (2019) satiriza Hollywood. Não aguentaria, pois sei que meus leitores ficariam sem saber minhas convicções sobre o consumo ético no capitalismo, sobre minhas impressões a respeito do imposto sobre livros, ou mesmo sobre a politicagem burguesa de Tabata Amaral. E que convicções sólidas! Cheias de nuance, sensatez... absolutamente necessárias.


São tantas vozes ignorantes, tanta hipocrisia que eu poderia desmontar com minhas palavras. Ninguém mais adequado para satirizar esses jovens que se levam a sério demais do que alguém com tanta empatia e habilidade autocrítica como eu. Mas como faria para construir este mesmo pensamento crítico em meu público num único texto? Pasmem: minha tese sobre aromaterapia quase não coube naquela thread do Twitter.


É preciso concentrar forças, não poderia adicionar minhas opiniões menores, dispersando a atenção das causas que de fato importam. Recentemente esse fenômeno se tornou ainda mais claro: somos bombardeados com tantas fake news bolsonaristas que quase deixamos passar despercebido a tentativa do governo de privatizar o SUS! Ainda tentam nos confundir, inventando que não se trata de privatização... firula, puro malabarismo semântico para persuadir os desentendidos.


Nesta missão de tirar os holofotes de mim, de não chamar atenção para as minhas opiniões, decidi não enviar texto nenhum ao Bruno. Envio esta nota de protesto. Espero que eu também inspire outros jovens a exercer um pouco de self-awareness ¹, espero incentivá-los, leitores, a se desapegarem desse sentimento egocêntrico de que suas opiniões e ações são melhores que a dos outros, assim como eu brilhantemente estou fazendo.


 

¹self-awareness – “autoconsciência” em inglês




Imagem da capa: John William Waterhouse

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