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GETÚLIO CONTRA SÃO PAULO

Todo dia que vou estudar na Getúlio Vargas me deparo com uma contradição engraçada. Primeiro, vou andando da minha casa até o metrô Butantã, por onde passo pela Rua Dráusio, ao lado da Martins, para por fim cruzar a MMDC e chegar à estação. Então, depois de uma pequena viagem, ando até a EDESP, passando ao lado do campus de Administração, sediado na 9 de Julho. Sempre me pareceu paradoxal existir uma Fundação Getulio Vargas em São Paulo, ainda mais no lugar da cidade onde ela se encontra, quase 100 anos depois da Revolução Constitucionalista na qual nosso estado deu tudo de si para derrubar o homem que ascendeu ao poder por meio da força. Ainda, estudar Direito em uma faculdade que homenageia um ditador que tinha tão pouco apreço pela lei.


Getúlio Vargas perdeu as eleições presidenciais de 1930 e, inconformado, encontrou a primeira desculpa que pôde para lançar uma revolução, por meio da qual tomou a presidência. Com isso, Getúlio suspendeu as eleições, dissolveu o congresso, rasgou a constituição e passou a governar por meio de decretos. Efetivamente, o governo Vargas não tinha nada de provisório, e seu intuito de não largar o poder ficou cada vez mais claro. Getúlio tratou de entrincheirar suas forças em todo o Brasil, nomeou interventores no lugar dos governadores dos estados e, mais notavelmente, assegurou que São Paulo fosse neutralizado a todo custo, estacionando aqui tropas que lutaram ao seu lado em 1930 e apontando interventores e militares de fora do estado para administrá-lo.


Nesse contexto, João Alberto, tenente pernambucano, foi nomeado interventor, prometendo transformar os casarões de São Paulo em quartéis. Desagradou profundamente as elites, mas também a classe média. Suas políticas foram desastrosas, gerando um déficit ao estado, arrefecendo a economia e colocando tropas nas ruas de forma ostensiva para agradar o governo central. Assim, conquistou o ódio da população em geral, que pressionou por outro interventor, algo que foi sintetizado pela campanha “civil e paulista”. O povo tão somente desejava um interventor que tivesse essas características, o que lhes foi continuamente negado até a nomeação de Pedro de Toledo em 3 de março de 1932. Ele era o sexto a ocupar o cargo em menos de 2 anos.


Sua nomeação foi uma grande surpresa, pois, apesar de cumprir os requisitos impostos pelos paulistas, Pedro de Toledo era diplomata e tinha 72 anos, considerado muito velho para a época. Com isso, Vargas objetivava calar os protestos, mas também entregar o posto a um homem que jamais representaria uma ameaça ao seu regime. Um senhorzinho debilitado que, nas palavras de Getúlio, estava apto somente para ser um “presidente de clube”. Em pouco tempo, no entanto, esse velhinho mostraria do que era capaz.


Para a infelicidade do ditador, os protestos não cessaram e, muito pelo contrário, se agravaram vertiginosamente, com o Dia do Trabalho, 5 de maio, servindo de estopim para uma greve geral que só seria completamente revogada no dia 21. Mesmo assim, os protestos não pararam e, no dia 23 de maio, foi organizada uma grande passeata pelas ruas do centro da cidade de São Paulo, usando de discursos inflamados. A passeata ocorreu pela Praça da Sé, Praça do Patriarca e passou na frente do Palácio dos Campos Elíseos, antiga sede do governo estadual. Diante de Pedro de Toledo, o procurador Ibrahim Nobre bradou: “Estamos algemados, e algemados dentro de uma senzala. E vossa excelência, Sr. Pedro de Toledo, está presa conosco. Vossa excelência deve sair dessa senzala e, com estes homens, vir à rua reivindicar a liberdade perdida”.



O protesto já não podia mais ser parado. Passando pela Sé, ele foi em direção ao número 70 da rua Barão de Itapetininga, onde funcionava uma sede do PPP, partido de Getúlio. Além disso, lá também estava sediada uma Legião Revolucionária, ou seja, um braço militar da Revolução de 1930 em São Paulo. Enfurecida, a população passou a atirar paus e pedras contra o prédio. Os militares começaram a atirar contra os civis e, em resposta, os comerciantes, solidariamente aos manifestantes, abaixaram os toldos de suas lojas para dificultar a visão dos atiradores. O caos se instaurou e o saldo foi de 17 feridos a bala. Dentre eles, Mário Martins, Euclydes Miragaia e Antônio de Camargo, que morreram no local. Ainda, Dráusio de Souza e Orlando Alvarenga foram gravemente feridos e morreriam, respectivamente, 5 e 81 dias depois.


No hospital, antes de morrer, Dráusio teria dito ao seu pai a frase que entraria para a história: “Eu estava destinado para este sacrifício. Se mil vidas eu tivesse, todas as daria pela nobre causa da libertação da terra que me viu nascer”. Os sepultamentos de Martins e Camargo ocorreram conjuntamente e contaram com uma procissão pela cidade que terminaria no Cemitério da Consolação. Paralelamente a isso, ocorria também o sepultamento de Miragaia, seguido pelo de Dráusio apenas alguns dias depois. Já Alvarenga faleceria após algumas semanas.



Tudo que uma revolução precisa para acontecer é de um mártir e São Paulo ganhara 4, Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo, MMDC. A decisão do levante foi tomada naquele fatídico 23 de maio, a voz do povo já não mais podia ser silenciada. Uma sociedade secreta, nomeada MMDC em homenagem aos mortos, foi composta por políticos, militares e pessoas influentes do estado com o objetivo de articular o levante contra o governo central, depor a ditadura de Vargas, chamar por eleições gerais e redigir uma nova constituição. Enquanto São Paulo se articula para lançar uma ofensiva, a tensão crescia em outros estados do país, como Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Mato Grosso e Santa Catarina. Algo estava prestes a acontecer.


A Sociedade Secreta MMDC organizou o levante com ajuda militar e da sociedade civil. Além disso, contou com a contribuição do General Bertoldo Klinger, comandante da 6ª Circunscrição Militar, sediada no Mato Grosso. Ele e seus homens desertaram e se dirigiram a São Paulo. Já no dia 9 de julho, o levante foi deflagrado e, na faculdade de direito do Largo São Francisco, um ponto de alistamento revolucionário foi montado pelos estudantes. Outros pontos de insurgência foram pipocando pelo estado e o último a saber do que se passava foi o próprio interventor que, no final do dia, voltou ao seu gabinete para encontrá-lo cheio. Os presentes ali o informaram do que estava acontecendo, mas em choque, não quis ouvir e se trancou numa sala. Ibrahim Nobre se dirigiu a porta com os demais presentes e disse: “Vossa Excelência está no fim da vida e deve escolher: as trincheiras aos filhos de São Paulo ou um simples epitáfio com uma estátua!”. Após um tempo, Pedro de Toledo abriu a porta dizendo “Está bem! Vamos às trincheiras!”.


A continuidade administrativa estava preservada, no entanto, ao sair daquela sala Pedro de Toledo não era mais um interventor federal, mas sim o governador de um estado independente que, do dia para a noite, se separou do resto do país. Juntamente com uma cúpula militar, os preparativos para a guerra começaram e tropas foram encaminhadas para as fronteiras de São Paulo. Todo o estado se engajou na luta pela constitucionalização do Brasil e a Força Pública Paulista foi mobilizada imediatamente, enquanto Bertoldo Klinger se dirigia à São Paulo e os alistados eram mobilizados. Cerca de 200 mil pessoas se voluntariaram à luta, dos quais cerca de 100 mil seriam efetivamente mobilizados, por uma questão de insuficiência de recursos.


Nas ruas da capital reinava uma euforia desenfreada. Enquanto os homens se alistavam para lutar na guerra, os trens e caminhões não paravam de transportar tropas, sobretudo em direção ao Vale do Paraíba, principal palco dos conflitos e região de fronteira com o Rio de Janeiro. No entanto, as tropas revolucionárias estacionaram ao chegar na divisa com o Rio, no que talvez tenha sido o maior erro da revolução. Desprevenido, o Governo Provisório não tinha a capital devidamente protegida e ela, portanto, poderia ter sido tomada de assalto naquele momento, logo nos primeiros dias de revolução. Todavia, a mentalidade militar ainda era muito moldada pela 1ª Guerra Mundial, focada nas trincheiras e na guerra de atrito.


Pego de surpresa, Getúlio Vargas pensou em se suicidar e, inclusive, chegou até mesmo a deixar uma carta de suicídio pronta caso fosse necessário usá-la. Naquele momento não era possível medir a extensão do movimento e, de fato, pontos de revolta surgiram também no norte, em Minas Gerais, no Rio Grande do Sul e no Mato Grosso, onde a metade sul do estado se separou, se juntando a São Paulo. Apesar de ser chamada de revolução, o movimento de 1932 possuiu características de guerra civil, muito mais do que qualquer outra coisa. O avanço cauteloso das forças revolucionárias deu a Vargas o tempo que precisava para se reorganizar e lançar um contra-ataque. Assim, o exército se entrincheirou do outro lado da fronteira e começou a atacar. Paralelamente a isso, um embargo naval à São Paulo foi imposto, cortando o estado do restante do mundo e impedindo o envio de suprimentos e armas.


Enquanto isso, ambas as aeronáuticas, tanto de São Paulo quanto do Governo Provisório, foram mobilizadas, ocasionando as primeiras batalhas aéreas no continente sul-americano da história, somente 26 anos após a invenção do avião por Santos Dumont em 1906. Aliás, o inventor estava hospedado no Guarujá durante a guerra, quando os paulistas lançaram um desesperado ataque aéreo contra a marinha federal a fim de liberar o bloqueio ao porto de Santos, ao passo em que Getúlio também lançou um ataque aéreo na região. Desesperado, Santos Dumont enviou uma carta ao ditador pedindo que encerrasse o conflito e cedesse às demandas constitucionalistas, o que foi negado. Sensibilizado ao ver sua invenção sendo usada contra seus compatriotas disse ao sobrinho: “Sabe de uma coisa? Eu inventei a desgraça da humanidade”. Dumont se suicidou no Guarujá sem ver o fim do conflito.


Do lado paulista, apesar da euforia geral, a situação ficava cada vez mais precária com o passar do tempo. Bloqueados e cada vez mais limitados, lutaram para financiar a guerra. As rádios haviam sido tomadas e propagandeavam que a vitória viria a todo momento, a fim de engajar a população. Folhetos eram impressos aos montes incentivando o povo à luta, os donos de fábrica doavam seus espaços e matérias primas para a produção de guerra. Enquanto isso, os trabalhadores se alistavam no exército e doavam seu tempo trabalhando nas fábricas. Enfermeiras e médicos foram convocados, as mulheres doavam suas jóias para financiar a revolução e a campanha “Doe ouro pelo bem de São Paulo” virou febre. Paralelamente a isso, os engenheiros da politécnica da USP trabalhavam dia e noite para desenvolver armas, munições e blindagens com o que tinham em mãos. Uma verdadeira economia de guerra estava montada e todos eram mobilizados.


Nesse sentido, a campanha de 1932 contou com amplo apoio da sociedade do estado. Desde as classes mais baixas às mais altas, todos estavam engajados na luta de alguma forma, o que é comumente negado, já que a campanha getulista buscou taxar o movimento de separatista e elitista, assim evitando que tivesse adesão em outras partes do país. De fato, a estratégia surtiu efeito e o apoio à revolução fora do estado contou com apenas focos de resistência e rebeliões que foram desbaratadas, com exceção do Mato Grosso.



Isolado, o estado resistiu tanto quanto pôde, mas gradualmente as trincheiras foram cedendo e as forças paulistas recuando. Com isso, parte de São Paulo passou a ser ocupada por forças federais que agiram brutalmente contra a população local, tratada como sob ocupação. O cerco se fechava cada vez mais contra São Paulo. As tropas federais chegavam aos portões de Campinas, a última linha defensiva antes da capital. Após a queda da cidade, era só uma questão de tempo até a invasão de São Paulo. Todavia, isso não foi necessário, já que o sul caiu antes. Isso porque o coronel Herculano de Carvalho, responsável pelo setor, desertou para o lado getulista antes que fosse tarde demais. Nomeado por Vargas como governador militar, recebeu a ordem de marchar para São Paulo como tropa de ocupação. Era o fim.


A Revolução Constitucionalista de 1932 perdeu a batalha armada, mas seus ideias triunfaram no final. Getúlio não pôde mais tratar São Paulo como derrotado, terminou por anistiar os soldados rebeldes e todos os voluntários e voluntárias envolvidos de alguma forma na campanha. Até mesmo as penas aos líderes da revolução foram mais brandas. A constituição e as eleições ocorreram em 1934, para serem suspensas com o Estado Novo, em 1937. No entanto, os ideais democráticos fomentados pela revolução jamais morreram, bem como a resistência a Vargas, que foi alta em São Paulo até o fim de sua vida. A incrível mobilização criou na sociedade paulista um senso de união e identidade que perdura até os dias de hoje. Na capital, são homenageadas as datas de 23 de maio e 9 de julho, que dão nome a importantes avenidas. Algumas das ruas mais importantes do Butantã são Miragaia, Martins, Dráusio, Camargo, Alvarenga e MMDC. Por outro lado, não existem grandes ruas ou avenidas na capital com o nome Getúlio Vargas, um padrão entre as grandes cidades do país.


Ainda, a revolução e seus mortos são homenageados no Obelisco Mausoléu aos Hérois de 1932. Com 1.932 m², ele é em formato de coração, com sua ponta mais estreita localizado na avenida 23 de maio. Conta com um obelisco, simbolizando uma espada fincada no “coração da mãe terra paulista”, enquanto abaixo, no mausoléu, estão enterrados muitos dos mortos na revolução, inclusive com homenagens ao MMDC, assim como ao governador Pedro de Toledo, a Ibrahin Nobre e a outras lideranças da revolução. Parece, então, que a única homenagem que Getúlio Vargas recebe em São Paulo é a fundação que leva seu nome.


Autoria: Linneo Christe Adorno Scanavacca

Revisão: Anna Cecília Serrano e Artur Santili

Imagem de capa: Acervo Fundação Energia e Saneamento, São Paulo

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


TOLEDO, Roberto Pompeu. A Capital da Vertigem. São Paulo: Editora Objetiva, 2015

LIMA, Luiz Octavio de. 1932: São Paulo em chamas. Editora Planeta, 2018

FAB, Força Aérea Brasileira, disponível em:

ALESP. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, disponível em:

Governo do Estado de São Paulo, disponível em:

Revista Galileu, disponível em:

Revista EXAME, disponível em:

Folha de São Paulo, Acervo digital, disponível em:

O Estado de S. Paulo (Estadão), Acervo, disponível em:

Correio de São Paulo, Hemeroteca Digital, disponível em:

Imagens disponíveis no Acervo da Fundação Energia e Saneamento, São Paulo, disponível em: https://www.energiaesaneamento.org.br/acervo/cessao-de-imagens/

O Estado de S. Paulo (Estadão), disponível em:




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