“CPI DAS BETS” E A NORMALIZAÇÃO DE M DELÍRIO
- Guilherme Neto
- há 12 minutos
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Falar sobre a tal “CPI das Bets” é quase como tentar descrever um sonho febril: aconteceu, e você sabe disso. As imagens estão ali, queimadas na sua memória como um rabisco de cinzas de rolha na testa de alguém que acabou de perder uma rodada de porco. É tudo meio vago, nebuloso, mas a sensação estranha de pensar em algo psicodélico é um chamariz que o cérebro humano não consegue ignorar. Em termos particularmente imprecisos, o absurdo e o espetáculo sensorial são duas das coisas que tornam a política chamativa e, argumento eu, funcional.
Este texto poderia ser sobre como a convocação dos últimos dois influencers, Virgínia Fonseca e Rico Melquíades, ao Senado Federal, foi um completo desastre. Ora, quando você pensa em “Comissão Parlamentar de Inquérito”, você espera quase que um interrogatório, não é mesmo? Mas a primeira dos convocados foi despreocupada, com seu copo Stanley e moletom humorístico, sendo constantemente acalmada pelos parlamentares ao ser lembrada repetidamente que ninguém estava “apontando dedos”; que ela vinha na condição de testemunha; que os parlamentares, para o senador Cleitinho (PL-MG), não tinham propriedade para julgar alguém que gerava empregos, enquanto eles “somente consumiam”[1], logo em seguida pedindo uma foto dela para sua família. Para o segundo convocado, houve uma rodada lúdica de jogatinas entre os parlamentares e o influenciador – claro, para fins investigativos.
Mas, francamente, é improdutivo comentar sobre isso na posição de mero revoltado. É possível, e talvez até provável, que você ache isso uma futilidade tremenda ou uma transgressão da tênue linha entre bom senso e moralismo. Não te culpo; porém, não se pode negar que toda essa história deu público, com mais de 105 mil postagens no X ocorrendo na convocação de Virgínia[2]. As pessoas, pelo menos a parte da população que acompanha as redes sociais mainstream com regularidade, ficaram sabendo do que aconteceu no Congresso.
Enquanto as pessoas de fato ficaram sabendo da CPI, ninguém viu, por exemplo, que a senadora Soraya Thronicke (UNIÃO-MS) tentou introduzir Teoria dos Jogos para a convocada, na tentativa de garantir sua colaboração. E ninguém ouviu os comentários do senador Izalci Lucas (PL-DF), os quais foram tão sem sal que pareceram ter vindo de um senador mesmo. Pior: alguém leu os trabalhos da comissão? Alguém, em algum momento, chegou a ler a nota técnica do Banco Central que fundamenta grande parte dos planos e justificativas para a CPI? Raios, alguém lembra que o representante da organização da sociedade civil que regula a autopropaganda também foi depor?
A questão é que todas essas tecnicidades pouco importam porque uma CPI, de forma geral, tem duas funções: testar os ânimos da população e servir de entretenimento.
Não importa muito o fato de que o Senado, a câmara técnica, sênior e em tese mais responsável, está dando showzinho em uma comissão que fala sobre o Tigrinho. Esse é o reflexo da decisão administrativa tomada no governo de Michel Temer, a de permitir apostas em jogos de futebol por casas sediadas fora do território nacional, que abriu alas para que em 2023, o governo Lula III expandisse a regulamentação das Bets e aumentasse a lista de empresas autorizadas a empreender nessa área[3]. A reação natural de permitir livremente jogos de azar é o aumento de seu consumo, ao menos estatisticamente, e como nós não aprendemos nada nem com a Lei Seca e nem com o Dutra, emergiu a lavagem de dinheiro, a propaganda enganosa e o susto nas finanças da população mais necessitada. Contudo, isso ocorre em um momento em que os bastidores da política correm o risco de estar particularmente mais preocupados com a fraude do INSS, por exemplo, que ainda tem camadas e mais camadas de pano para manga, ou com a paralisação fiscal da máquina pública em 2028, e talvez o bode na sala: as eleições ano que vem[4].
Uma CPI assim pode ser usada para cortina de fumaça para um tema mais espinhoso e ser uma ferramenta valiosa no ganho de tempo. Se esse for o caso, porém, temos uma contradição lógica ao nos perguntarmos o porquê cargas d’água o maior partido da oposição está tão preocupado em causar na CPI. Pode ser um caso de indisciplina parlamentar, claro, mas o PL não é nenhuma agremiação de novatos, e seu líder, Valdemar da Costa Neto, sabe bem que o tempo está passando rápido, e um nome competitivo para a presidência precisa ser armado e preparado para ontem. Por outro lado, os parlamentares do governo provavelmente se sentiram aliviados com o público que a Comissão angariou na internet, conhecendo a sua desvantagem inerente em lidar com as redes sociais. Se pararmos para pensar, na verdade discutir apostas online não lembra os momentos que a direita conservadora quer discutir ideologia de gênero e comunismo no meio da propaganda eleitoral? A “aposta”, com o perdão da piada, é mais ou menos essa: que por algumas semanas a oposição continue sob influência de psicodélicos enquanto os políticos governistas ganham umas vantagens a mais.
Por fim, goste ou não, esses acontecimentos têm uma função social. Eles viraram assunto e têm uma mínima possibilidade de virarem votos. Temas batidos e que exigem a assimilação de informações sofisticadas, como economia, gestão pública, políticas para a educação, saúde, segurança, diplomacia e por aí vai, são esforços conscientes que gastam tempo e energia que muitas vezes não temos. O processo de pensamento político então é forçado a heurística, uma resposta “boa o suficiente” para que o nosso cérebro saiba o que fazer quando perguntado “em quem você vai votar?”. A teoria de mensagens de elites e moldagem desse pensamento é de uma capilaridade e riqueza teórica fascinante, mas a parte que mais chama a atenção é como pequenos pedaços de informação podem mudar a cabeça de um eleitor por completo: quanto mais polarizada a posição das elites, mais forte a mensagem, quanto mais negativa, maior o impacto, e quanto mais exótico o tópico, mais você se importa com a informação, a grosso modo[5].
A CPI não vai mudar os rumos da política nacional, mas vai influenciar em como as pessoas votam, direta ou indiretamente, e vai trazer a cobertura midiática para possíveis fazedores de reis no meio digital, aproximando os políticos do público geral. O seu tio bem conservador pode até não saber o que diabos é uma bet, mas vai ver o Cleitinho falando que a Virgínia gera empregos, e somar isso com o seus conhecimentos prévios sobre o senador, como um integrante do Partido Liberal e “de direita”. Depois, ele vai pensar no preço dos alimentos subindo, na sua vida ficando mais cara e mais difícil, talvez até resgate a indignação com a política que fez ele se importar há alguns anos atrás, e concluir que o senador Cleitinho, ao defender uma milionária que deve morar em um condomínio genérico em Alphaville, está compartilhando de seu saudosismo pela sua própria interpretação de uma economia boa.
O que a CPI vai mudar na sua vida, caro GVniano, provavelmente na primeira metade de seus vinte anos ou chegando lá, com educação universitária, possivelmente de boas condições e, estatisticamente falando, provavelmente um centrista de orientações progressistas? Nada, honestamente. Mas corre o risco de você pensar similarmente ao seu tio – de ver o Cleitinho falar em prol da influenciadora, ou do Rico, ou de algum dos outros que ainda virão, e associar essa dissonância cognitiva a uma burrice de dar nos nervos, que depois vai te lembrar de negacionismo, e do ensino médio que você passou vendo a pandemia na televisão, que depois vai te lembrar o ex-presidente Bolsonaro falando barbaridades – e, por tabela, você definitivamente não vai votar no Cleitinho. Mas corre o risco de votar em alguém que simplesmente não seja ele.
Ano que vem é mais um daqueles anos, e realmente, a política é fatigante às vezes. Dentre as muitas coisas que aconteceram e viraram tema no domingo em família e na mesa de bar, parece que o cinismo tem ganhado espaço entre quem só quer viver e, de preferência, não ser governado por um incompetente. Mas a heurística (bendita seja), vai te fazer não pensar muito sobre em quem votar pela sua obrigação de não corroborar com o idiota mais próximo. De forma geral, se você realmente quer sentir que está além das amarras do seu inconsciente, de vez em quando dê uma pesquisada a mais, cobre o seu deputado ou parlamentar, às vezes, quem sabe, dê uma olhada no que estão fazendo em comissões menores ou em casas legislativas da cidade de seus pais e avôs.
Só não venha me dizer depois que a sociedade está se degenerando por que nossos políticos estão falando groselha – eles sempre falaram. Fazer as pazes com o absurdo às vezes é o primeiro passo para sermos melhores amanhã.
Referências:
[1].Senador interrompe CPI, elogia ‘pré-treino’ de Virgínia e pede vídeo de influenciadora para esposa. Disponível em: <https://www.estadao.com.br/politica/senador-interrompe-cpi-elogia-pre-treino-virginia-pede-video-influenciadora-nprp/>. Acesso em: 24 maio. 2025.
[2]. InvesTalk | CPI das Bets: entenda o caso que levou a influenciadora Virgínia a depor no Congresso. Disponível em: <https://investalk.bb.com.br/noticias/mercado/cpi-das-bets-entenda-o-caso-que-levou-a-influenciadora-virginia-a-depor-no-congresso>. Acesso em: 24 maio. 2025.
[3]. Câmara aprova projeto que regulamenta apostas on-line - Notícias. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/1029089-camara-aprova-projeto-que-regulamenta-apostas-on-line/>. Acesso em: 24 maio. 2025.
[4]. TCU alerta para risco de ‘paralisação’ da máquina pública até 2028, com alta das despesas obrigatórias. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/08/22/tcu-alerta-para-risco-de-paralisacao-da-maquina-publica-ate-2028-com-alta-das-despesas-obrigatorias.ghtml>. Acesso em: 24 maio. 2025.
[5]. DELLMUTH, Lisa; TALLBERG, Jonas. Legitimacy Politics: Elite Communication and Public Opinion in Global Governance. Cambridge: Cambridge University Press, 2023.
Autoria: Guilherme Neto
Revisão: Ana Carolina Clauss, André Rhinow e Isabelle Moreira
Imagem de Capa: Geraldo Magela/Agência Senado
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