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GREEN BRICK ROAD: O QUE VEM DEPOIS DO DÓLAR?

O que você acha de criptomoedas? nossa redatora Carolina Zweig ressalta alguns aspectos importantes sobre o surgimento de uma nova moeda digital.

Em 1900, foi publicado O Maravilhoso Mágico de Oz, que ficou conhecido por ser simultaneamente o primeiro conto de fadas americano e uma manifestação sobre a política monetária da época. Passagens como Dorothy caminhando com seus sapatos que eram prateados na versão original sobre estrada de tijolos dourados, seriam uma defesa à introdução da prata para substituir o lastro em ouro, uma vez que este metal estaria escasso e sob o controle de grandes industriais. Desde então, o dinheiro passou por outras transformações dignas de produção literária – e agora parecemos estar à iminência de mais uma mudança histórica. Desta vez, seria necessário um uma história de ficção-científica para retratar o surgimento de uma criptomoeda chamada Libra.


O dólar americano não é mais lastreado em ouro desde 1971. Até então, muitos países tinham reservas em dólares americanos porque sabiam que poderiam trocá-los à uma taxa fixa em qualquer momento. Temia-se que a retirada dos EUA do padrão ouro levasse os países a se desfazerem dos seus dólares, mas para a maioria dos países isso não aconteceu. Até hoje, a moeda americana ainda é a moeda de reserva do mundo e nenhuma criptomoeda se propôs a quebrar essa hegemonia.


É neste contexto que surge a Libra, uma criptomoeda para substituir a moeda do dia a dia.A Libra surge de um projeto do Facebook mas administrado pela Associação Libra, uma organização sem fins lucrativos composta por 28 membros e sediada em Genebra, Suíça. A partir de 2020, com o lançamento oficial da moeda, o Facebook deixaria de ser protagonista deste projeto e 100 empresas seriam parte desta associação. O objetivo é criar um meio de pagamento que minimize o tempo e custo de transações e não dependa de tantos intermediários, visando atingir principalmente os unbanked e underbanked.


Atualmente, 31% da população mundial não tem uma conta bancária (chamados de unbanked) e muitos tem mas não são ativos em seu uso (underbanked). Essas pessoas muitas vezes afirmam não ter recursos suficientes ou que os bancos sejam distantes de suas casas, com taxas altas e imprevisíveis ou exigindo documentação que eles não possuem. O projeto da Libra visa aumentar então o acesso a serviços financeiros. Em um contexto em que cada vez mais pessoas tem acesso a celulares e a internet, este projeto criaria uma infraestrutura financeira digital: os usuários terão um aplicativo de carteira virtual permitindo que se envie dinheiro por mensagem a custo zero ou baixo.


Há ainda outras aplicações interessantes para a Libra: imigrantes poderiam mandar dinheiro para familiares em outros países sem enfrentar as tarifas proibitivas das transações internacionais. Habitantes de países que sofrem de hiperinflação poderiam proteger o valor de sua riqueza por meio desta criptomoeda. Pessoas de países desenvolvidos poderiam ainda utilizar essa moeda para micropagamentos de forma fácil, barata e rápida.


No entanto, há de se considerar as potenciais consequências desta mudança. Se cidadãos de países em desenvolvimento escolherem manter sua renda em Libra, o poder da autoridade local poderia ser enfraquecido (o que talvez não seria tão ruim em regimes antidemocráticos?). Países com moedas fracas também teriam ainda mais dificuldade em sair de períodos de crise, uma vez que a população poderia optar por utilizar essa moeda digital.


Atualmente, nenhuma criptomoeda é confiável e estável o suficiente para a institucionalização do seu uso. Ao ter sua oferta administrada puramente por algoritmos, moedas digitais como Bitcoin atraíram investidores e entusiastas por causa de sua alta volatilidade. Os seus impactos como meios de pagamento foram bastante limitados. Em contraste com outras moedas digitais, Libra deverá ter baixa volatilidade (uma vez que é lastreada em centenas de verdadeiros ativos como títulos do tesouro americano), trazendo o benefício do aumentar a transparência e diminuir os custos de transações cotidianas.


Há uma série de questões que devem ser resolvidas para uma implementação de sucesso da Libra. Uma das maiores preocupações é em relação à privacidade. O Facebook tem acesso as informações de 2.4 bilhões de pessoas e já uma vez teve sua imagem suja por vazar dados dos usuários. Será necessário que se assegure a separação dos dados pessoais e financeiros dos usuários assim como um sistema antifraude para gerar confiança da população.


Outro risco é ao monopólio dos bancos centrais existentes, que controlam importantes variáveis macroeconômicas dos seus países ou regiões (como é o caso do Euro) e não estarão facilmente dispostos a ceder este poder. Se a introdução desta moeda prejudicar a capacidade dos bancos centrais de policiar o sistema financeiro ou operar políticas monetárias no geral, o uso da Libra pode ser apaziguado logo na data do seu lançamento.


A ideia é que a própria Associação Libra cumpra a função de um banco central, de modo que esta criptomoeda não seja totalmente descentralizada. Mesmo que seja eficiente, esta concentração de poder financeiro em um grupo autodeterminado de grandes empresas é por si só uma fonte de preocupação.

Nenhum grande banco comercial se envolveu ainda com esta moeda e dificilmente vai se envolver enquanto não se garantir a inexistência de brechas para fenômenos como a lavagem de dinheiro, financiamento de terrorismo, evasão fiscal ou tráfico. Também não é conhecido quanto do negócio destes bancos comerciais está ameaçado pelo projeto. Mas sabe-se que o conglomerado da Associação Libra tem vantagem em relação aos bancos comerciais já existentes por causa do enorme alcance da rede social que facilitaria a implementação desta infraestrutura digital. Empresas como Google, Amazon e Facebook conseguem processar transações a custos menores e se mostraram muito capazes de criar novos serviços digitais de sucesso.


Entre os desafios que essa ideia traz para nossa sociedade, estão ainda os que serão enfrentados pelos reguladores mundiais. Cabe a eles tomar decisões que assegurem a proteção dos consumidores, dos investidores e do mercado competitivo. As mudanças tecnológicas podem ocorrer de maneira muito mais veloz que a resposta destes agentes, principalmente para perguntas que já estão em pauta como: Quem vai liderar a Associação Libra? Qual vai ser o nível de controle da Associação sobre a moeda?


É difícil dizer como vai ser o mundo caso a Libra se consolide de fato, mas provavelmente esse seria o fim dos bancos como nós os conhecemos. Cartões de crédito e débito cairiam no desuso e o câmbio seria praticamente automático. As consequências nas economias dos países podem ser enormes, colocando em xeque questões de tributação e dívida pública. A própria educação financeira provavelmente terá que se modernizar e expandir para se adequar à uma moeda mais inclusiva. Mas uma vez que o caminho da moeda digital comece a ser trilhado, não vão ter sapatinhos brilhantes que resolvam.

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