Haile Selassie em Santo André
- Daniel Rocha
- há 5 dias
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Existem eventos que não se explicam. A realidade às vezes se mostra fascinante dada a completa aleatoriedade com a qual ela frequentemente se apresenta. Como que um prédio feio que me chamou atenção durante uma volta numa cidade que pouco frequento me levou a isso?
Olho para cima, desatento, hoje já nem lembro mais o que fazia lá. Talvez estivesse no trem, na Linha Turquesa, mas eu nunca pego a Linha Turquesa. Quem sabe não estava atravessando um viaduto? Ou perdido na Rua dos Operários? Novamente, não me lembro. O que importa é o horror de concreto pintado de azul que invadia a minha vista, pouco consegui olhar para aquela coisa horripilante, mas a impressão marcou minha cabeça.
Lembro que fiquei dias olhando de vez em quando imagens de ruas ao redor do trilho, por onde lembrava ter visto aquele prédio que, de alguma forma, havia me chamado. Calhou que estava escrevendo um trabalho sobre a aparente desindustrialização do ABC Paulista na faculdade e aquele edifício me parecia contar essa história. Precisava saber mais. Há quanto tempo ele estava abandonado? Pois com certeza parecia abandonado. O que produziam ali? Pois ressoava o tempo da produção de algo. Por que ele está aqui? Dado que ali alguém o havia colocado. Até que, bem, encontrei novamente este prédio enquanto explorava o local no Google Maps. Lá estava: O Moinho São Jorge. Ele não estava abandonado (quê?!); produzia pães, massas, biscoitos e… era um palácio?
Mármores, fontes, jardins, estátuas esculpidas a mão, tapetes persas, lustres decoravam o luxuoso salão em fotos que encontrei em baixíssima qualidade ao pesquisar o nome do Moinho São Jorge. Comecei a imaginar as festas suntuosas com as maiores elites industriais locais que deveriam ser financiadoras de um projeto tão luxuoso ao lado de um trilho de trem, em cima de uma fábrica, em meio a uma região relativamente central de uma cidade que devia parecer o centro do mundo moderno, cuspindo veículos e fumaça preta. Cigarros cubanos e uísque escocês deviam preencher essa vista moderna, Os Operários vista de cima, o sonho molhado de Juscelino Kubitschek e ao seu lado o… Imperador Etíope?
A segunda vinda do filho de Deus (para alguns) esteve ali presente, e, talvez, tenha até sido o Espírito Santo que me chamou para pesquisar sobre aquele edifício. Pesquisando qualquer notícia sobre o prédio, encontrei uma breve menção no Diário do Grande ABC à visita de Haile Selassie numa festa no prédio quando, inexplicavelmente, resolveu visitar Santo André na sua única vinda ao Brasil, em 1960, mas que infelizmente foi interrompida em razão de uma tentativa de golpe de Estado em Adis Abeba.
Afirmo: esse talvez tenha sido o momento em que a região, com seus vários nomes de santo, mais perto chegou de Deus.
Hoje, o palácio se encontra completamente abandonado. Não sei como isso aconteceu e também não desejo saber, mas, sem querer ser usado como fonte, imagino: chegou o inevitável momento em que perceberam que o sonho industrial não era um sonho do esplendor oligárquico que aquelas decorações representavam. Não havia por que converter os ganhos da fumaça em mármore que apenas se tornaria manchado. A fábrica deve continuar a funcionar, e funciona — deixemos o resto de lado.
Havia terminado meu trabalho sobre a aparente desindustrialização do ABC Paulista, e novamente — sem nenhum intuito de neste texto ser transformado em uma fonte confiável — notei, por uma exploração porca e uma leitura superficial dos dados do Ministério do Trabalho sobre São Paulo, que a quantidade de empregos industriais na região não havia diminuído no tempo, apenas estancado. Mas olhei ao redor, no ônibus que tomava todo dia, na janela do meu quarto, nas demissões do meu pai — que isso parecia mentira. A cidade é feia, as pessoas tristes, as fábricas largadas e sujas. Mas tudo ainda está lá, decaindo. Não há uma desindustrialização no sentido em que as indústrias estão indo embora, mas há sim um decaimento espiritual que contamina essa análise. Aquele lugar se tornou horrível.
***
Casualmente, num dado dia, alguns anos depois do fato, o Moinho São Jorge aparece no meu TikTok. Dessa vez, era um vídeo de um drone mostrando o interior do palacete abandonado na cobertura da fábrica. Mostra, em detalhes que nunca tinha visto, como o matagal tomou conta do jardim, o quão sujas e empoeiradas estão as pedras e decorações restantes no lugar. São ainda algumas cadeiras, estátuas, quadros e um piano de cauda que permaneceram naquele salão. Rugosidades, como escrevi no meu texto conforme o conceito cunhado por Milton Santos sobre a permanência de eventos no espaço.
Parece que o Moinho São Jorge foi redescoberto ou talvez relembrado pela memória coletiva do povo da cidade, com uma série de outros vídeos explorando o edifício, pessoas contando a sua “história” e uma moção para que o prédio seja tombado pelo seu valor histórico. Lembranças de tempos que já foram melhores, mas que talvez tenha suspeitosamente acompanhado o firmamento de políticos populistas reacionários que assumem a liderança de um espaço onde, era uma vez, surgiu o mais importante movimento sindicalista do Brasil. Por isso, com este texto, tranco novamente o Moinho São Jorge na minha cabeça, mesmo sabendo que o havia notado antes de todas essas pessoas, e aguardo para caso um dia ele venha me encontrar novamente, pois agora já não vou mais atrás de desvendar sua figura. Já basta um pequeno texto sem pé nem cabeça e a vaga memória de seus contornos.
Autoria: Daniel Rocha
Revisão: Isabelle Moreira e André Rhinow
Imagem de capa: Daniel Rocha, desenho digital
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