
Morri ali.
Eram 02h47 do dia 12 de maio quando fui despertada de meu recinto por ruídos do quarto ao lado. Os sons, ásperos aos meus sensíveis ouvidos, sugeriram que fossem almas ardendo. Impossibilitada de retomar a pausa ao meu martírio, cruzei as portas que separavam nossos cômodos e adentrei as labaredas. Dentro do cubículo, retomei a consciência e supus que não gozava de meu post mortem ao ver duas coisinhas expelindo suas dores sem fim. Logo notei que se tratavam dos gêmeos Pedro e Clarisse. As máculas de nascença nas palmas de suas mãos esquerdas não deixavam dúvidas. Lembrei-me que ainda não tinham aprendido a dormir sem companhia: “os nenéns temem ser deixados pelos pais”, algum psicólogo teria me dito. Prontamente, passei a ajeitá-los em suas camas para que cessassem suas incansáveis declarações de guerra à minha paz. Mesmo assim, ambos continuavam a requerer a presença de seus pais. Pareciam não me reconhecer.
“Estranho”, achei. Ninguém nunca havia me contado histórias de filhos que desconhecem suas mães. Teria alguma coisa em mim mudado? Comecei a tatear a minha mão, o meu braço e o meu tronco buscando alguma alteração. Nada. Talvez, na verdade, tivesse emagrecido um pouco, porém nada muito fora do comum. Procurei o espelho, olhei meu rosto iluminado sob a luz da lua, mas também não vi algo que fosse profundamente diferente. Ao redor de minhas janelas, a pele tinha escurecido um pouco, o que era típico da noite que enfrentava. Sobre meu couro superior, menos volume encontrei, por mera questão física: a cor escura que fluía dos cabelos de minha cabeça não refletia aquela luz aos meus olhos. “Esquisito”, conclui.
Continuava a mesma, sem qualquer modificação. Por que aquelas crianças não me identificavam? Por que só não paravam suas súplicas com a minha presença? Que temor seria esse que evocaria a irracionalidade em crer que seus representantes legais deixariam suas responsabilidades à própria sorte? Quanta imbecilidade. Atormentada com essas sirenes, iniciei um canto antigo entonado pela minha mãe quando as cuidava. Talvez Pedro e Clarisse fossem capazes de reconhecer a habilidade materna de sua avó. E assim foi. Bastaram alguns segundos, acalmaram-se.
Com o sucesso de minha ação, corri os olhos ao relógio. Já eram quase vinte para às quatro. Tinha pouco mais de duas horas e meia de interrupção de minha lástima. Retornei ao meu quarto, deitei sobre o que parecia ser minha cama. Ela era idêntica à que eu tinha estado durante os dois últimos anos, mas senti algo diferente. Meu corpo não parecia mais caber naquele espaço. Minhas pernas ultrapassavam os limites daquele móvel. No entanto, nada havia me ocorrido para tal compreensão. Não fiz cirurgia alguma. Não tomei remédios. Nada. Nada. Como podia ter mudado? Como aos 31 anos teria crescido? Era impossível.
Esforcei-me para dormir. Quis acreditar que tudo aquilo apenas era fruto da minha cabeça ou de devaneio causado pelo horário e o alto choro de meus filhos. Mas não consegui. Havia se passado trinta minutos e minha mente não se silenciava. Não entendia o que acontecia. Até um mês atrás, o ato de fechar os olhos era suficiente para que eu acordasse no outro dia. Agora, não. Sentia-me incapaz de realizar a mais simples ação da vida humana: descansar. Estava em estado de alerta constante. Tentei passar ao outro lado da cama, buscando uma nova posição que favorecesse o sono. Essa outra parte, no entanto, aparentava-me ser grande e fria. Devido à sensação, estiquei as minhas pernas procurando uma coberta que costumava deixar ao fim da cama. Não obtive sucesso. Esticava-me e esticava-me e não encontrava o cobertor ou o fim.
Levantei-me. Fazia muito frio daquele lado do quarto. Imaginei que fosse a janela aberta, mas não a achei. Podia jurar que ela ficava ali, mesmo que agora somente enxergasse uma parede vazia. Talvez ela tivesse, portanto, desaparecido. Enfim, decidi pegar uma manta no armário, precisava esquentar-me. No caminho até o guarda-roupa, colidi com a escrivaninha. Tinha sido incapaz de observar que ela estava no trajeto até o armário em razão da penumbra que vigorava no quarto. Nesse momento, notei a existência de um cartão, o qual parecia com uma identidade. Colhi-o com a mão e o levei ao canto da cama, acendendo o abajur que ali se localizava.
Para a minha surpresa, a imagem no documento aparentava-se à da mulher que tinha visto a pouco no espelho. Tinha poucas diferenças. Ela parecia-me menos magra, com a pele mais viva e com mais cabelo. Estranhei, mas decidi continuar a analisar os dados daquele papel. Virando-o, reparei que a sua expedição era datada em 12 de abril e que o nome nele escrito me era familiar. Luisa Dias da Silva, semelhante ao que recordava ser o meu nome: Luisa Dias, apenas. Voltei a questionar-me. Seria aquela identidade minha? Teria eu esquecido desse antigo documento? Porém, como poderia aquilo pertencer-me se aquela mulher não era eu? Ela não tem o meu semblante. Não tem nem sequer o meu nome. Não sou eu aquela mulher.
Rasguei o papel. Apaguei o abajur. Pedro e Clarisse eram suficientes para a minha mente. Não necessitava de mais dúvidas. Retornei ao meu objetivo de pegar a manta no guarda-roupa. Abri suas portas. E, apesar do mau cheiro que dali saiu, não encontrei qualquer barata grossa ou bicho nojento. Na realidade, achei um conjunto de roupas formais masculinas. Vestimentas que não faziam qualquer sentido estarem guardadas no armário do meu quarto. A menos que não fossem minhas. Toquei-as, tentando visualizar qualquer característica que me apresentasse seu dono. Dentro do bolso de um paletó azul-marinho, encontrei uma carteira. No seu interior, também havia um documento que assemelhava-se a uma identidade. Levei os meus olhos à parte traseira do documento, saberia assim o nome de quem todos aqueles trajes pertenciam. Thiago Moraes da Silva.
Neste instante, todas as minhas ações foram paralisadas. Uma forte enxaqueca me acometeu. E o único ato que fui capaz de realizar foi o de correr de volta para a cama em meio aos grunhidos demoníacos que agora vinham de mim. Tratei logo de deitar-me, temendo desmaiar e deixar os gêmeos sem algum responsável. Mesmo jacente, sentia uma dor incessante dentro da minha cabeça. Era como se um buraco expandisse e relaxasse em um ritmo frenético. Dor, dor e dor. Era tudo que eu sentia.
Junto do sofrimento, minha mente transformou-se na sala de exibição de um cinema. Cenas de um filme eram reproduzidas em sequências às dores. Era incapaz de discernir o que meus olhos viam e o que minha mente via. Meus olhos e mente estavam unidos em um só filme. Em uma só natureza: a dor. “Eu te amo” sussurrava um homem no meu ouvido. Aquela sensação subia dos pés à cabeça; atravessava todos os meus tecidos e ossos. Fluía pelas minhas veias até explodir na rosa fora do jarro que ocupava o espaço de meu coração.
Gritava em silêncio no travesseiro. Era incapaz de tolerar qualquer segundo a mais com aquelas vozes. “Olha para o estado do Pedro! Que tipo de mãe você é?” bradava um garoto no meu rosto. “Eu te amo”, “Eu te amo” e “Eu te amo” suplicava o galanteador. Todas essas vozes, todos esses ruídos, todas essas palavras eram, porém, convertidas em sons estrondosos que se chocavam contra minha face e meus braços, os quais murchavam e ardiam. Tentei me levantar da cama, a dor me impediu. Caí no chão. Tentava erguer-me, e fracassava em todos os esforços. Era apenas capaz de desejar que aquele maldito guarda-roupa se fechasse. Era impossível sobreviver a tal tortura por somente mais cinco minutos que fossem.
Contorcia-me no chão do meu quarto. Os meus músculos contraídos passaram a ser o porta voz de toda minha dor profunda. Mesmo assim, as vozes não cessavam. Entretanto, o que me ocorria era que, agora, as vozes eram sutis, faziam-me carinho e esquentavam-me o peito. Os sons entravam e ecoavam pela minha mente como uma sinfonia afiada e pontuda: “Querida, você vai conseguir cuidar das crianças… é só uma questão de tempo! Tenho certeza que o Thiago ainda vai reconhecer a esposa incrível que tem”. Sentia-me melhor. Pela primeira vez em instantes as dores haviam passado, minhas pernas retomavam as suas forças. Acreditava estar plena em minhas capacidades. Meus lábios começaram até mesmo a arquear. Uma terrível tempestade tinha passado, e o Sol começava a surgir entre as nuvens iluminando um belo jardim. Os lírios, no entanto, eram feitos de plástico desde sua origem.
Mal consegui erguer-me. Assim que dobrei meus joelhos, o ciclo se repetiu. As vozes anteriormente amenas, retornavam aos gritos. Meu corpo retomou suas contrações enquanto minha mente convulsionava. “Não fique assim, Lu… o fim de vocês não precisa ser seu fim, o seu amor próprio é suficiente!”. Lutava arduamente para levantar-me, para voltar à cama, para fechar o armário e superar essa noite. Tudo que mais ansiava era o mais puro descanso, a retomada da minha paz. Comecei a rastejar-me pelo chão numa tarefa frustrante de atravessar o cômodo e fechar as portas daquele inferno. Cada centímetro que me locomovia multiplicava a palpitação em meu peito, potencializava os tremores de meus membros.
Finalmente alcancei os pés do móvel. Necessitava apenas erguer-me para fechar aquelas portas e encerrar aquele tormento de uma vez por todas. Ou ao menos era o que eu desejava. Nunca, de fato, havia conseguido me desfazer dos trajes de Thiago desde sua partida. Buscava acreditar que ele voltaria, não poderia deixar nossos filhos. Pedro e Clarisse não cresceriam bem com uma mãe calculista, ele me dissera antes de rejeitar-me para todo o sempre. No entanto, com as semanas que se passaram, notei que isso não se concretizaria. Ele havia partido e, com isso, maculado não apenas as palmas dos gêmeos, mas também a minha alma. Em um mês, tudo em mim havia mudado. Inclusive, o mais básico de uma identidade: o seu nome.
Coloquei minha mão sobre o armário. Embora as minhas energias se destinassem à ineficaz ação de silenciar os urubus me grasnavam, empenhava-me severamente em encontrar forças para reerguer-me. Procurava focalizar os grunhidos sutis, mas meus membros somente tremiam mais e mais, impossibilitando que eu me levantasse. Concentrar-me ou silenciar parcela dos sons era ineficiente, o mal não se calava. Assim, optei por ouvir as vozes e deixar que elas me consumissem. Eu não teria outra escolha. Em meio a essa decisão, comecei a me mover lentamente, tentando renascer o movimento de minhas pernas. Mexia como um baleado que busca um médico. Minha operação seria fechar as portas.
Quando finalmente retomei minha postura, olhei para dentro do armário. As roupas ali contidas não eram as vestimentas de um mero rapaz, elas eram o figurino de cenas do meu filme ou de um dos meus curta-metragens. E por mais que quisesse, o ato de fechar as portas não seria como a remoção de um cartão de memória interno meu. Sabia que aquilo era impossível. Mas também não havia como passar por esse processo sem comprometer o dispositivo.
Voltei meus olhos ao armário, às suas portas. Estava presa naquela decisão. Ao meu entorno, as coisas pareciam ter congelado. A realidade e o tempo haviam se voltado apenas para um ato. Precisava encerrar aquilo, mas ainda era incapaz. Nem mesmo as vozes que por tanto tempo me atordoaram pareciam ter efeito sobre o conflito que enfrentava.
Coloquei minhas mãos sobre as portas, expondo meu peito às roupas com os braços abertos. Senti meu coração palpitar e meus dedos vibrarem. Àquela altura, não tinha mais o que fazer, era isso ou manter o atordoamento sem fim em minha mente. Respirei fundo, juntei as forças que me haviam restado após todos os conflitos daquela noite infernal e empurrei os braços. Fechei as portas.
Imediatamente, senti os músculos espalhados pelo meu corpo relaxarem, tinham se distensionado. Minha cabeça, embora ainda pesada, pulsava suas dores em um ritmo menor. Comecei a dar lentos passos em direção a minha cama. Durante o percurso, voltei meus olhos à parede não mais vazia, a sua janela estava presente.
Sentei-me na cama e antes de deitar-me olhei o relógio, eram quinze para as seis. Decidi dormir mesmo assim. Tinha consciência que essa havia sido somente mais uma luta de minha guerra. Precisava descansar. Assim, deitei-me sobre o móvel.
Segundos depois, acalmei-me nele. Em sequência, Pedro e Clarisse voltaram a chorar. Ignorei-os. E adormeci tendo somente um desejo: morrer ali.
Autoria: Erick Martins Rosario
Revisão: Enrico Recco
Laura Freitas
Imagem da Capa: Pinterest (@saatchiart)
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